sábado, 15 de outubro de 2011

ALI TEM HISTÓRIA - Rogério Almeida


Gilberto chamou e eu fui.

Era uma cantoria em uma fazenda qualquer. Fazia tanto tempo desde o último duelo de poesia. Não ia deixar esse passar batido por nada nesse mundo, mesmo porque soube que lá estariam alguns amigos antigos, novos e futuros, todos debaixo da lua sertaneja que, aposto, ainda morre de saudade de Fabião das Queimadas.

Mal havíamos deixado o asfalto quando vi do lado esquerdo da estrada uma tímida placa onde se lia “MUSEU”. Eu, que tinha saído de casa para uma cantoria, já ia com uma boa conversa entre amigos e, quem diria, um museu no embornal! À ansiedade e à alegria dos dias anteriores se juntou um misto de surpresa e curiosidade. Haviam, sim, mencionado um museu, mas por algum motivo imaginei que fosse apenas um projeto, coisa sonhada que dificilmente iria adiante, como tantas outras iniciativas órfãs de vontade política.

Desejei estar enganado.

E estava.

Bastou sair do carro pra saber que aquele lugar era especial. Olhei pra copa de um pé de algaroba que balançava sereno e tive vontade de ficar plantado ali ao seu lado, hipnotizado pelas nuvens que começavam a passar feito a imensa vacaria das antigas comitivas, tangidas pelo vento na falta de um vaqueiro. Difícil manter-se atado à realidade quando o vento sopra à noite no sertão, pois tudo o que deveria estar adormecido desperta, e o faz como se estivesse prestes a susurrar ao pé de nosso ouvido alguma mensagem do passado, tão mais aconchegante que o futuro, tão mais sedutor que o presente.
À nossa frente se estendia o pátio em que habitam a capela, a casa maior e o armazém contíguo, mais árvores, o parquinho, dois carros de boi, uma moenda e uma obra de arte que Marcos logo tratou de classificar como uma “instalação”, montada com troncos maciços cobertos por ferragens de toda sorte. Em segundo plano há uma casinha de taipa e alvenaria, feita assim para mostrar como se mora na cidade e no campo. Em seu terreiro puseram uma peça bastante sugestiva que, arrisco prever, um dia será um dos pontos altos da visita à fazenda Boa Hora: as duas cangas de boi onde os casais podem colocar seus pescoços e celebrar com uma foto os votos de eterno companheirismo e fidelidade. Trocadilhos córneos à parte, naturalmente.

Pensei no macaco de bronze que monta guarda em uma das pontes da velha cidade universitária de Heidelberg, na Alemanha. Com o espelho voltado para o próprio rosto, lembra a quantos repetem o gesto de vestir sua máscara de como é caricata a condição humana. A insólita escultura à margem do Neckar e a canga de boi na fazenda santacruzense se completam para anunciar em silêncio que de certa forma não passamos, todos, de risonhos bois de arado cortando terra aos pares.

A casa grande impressiona pela austeridade de seu contorno. As paredes brancas e a aura típica doslugares impregnados de lembranças inspiram um profundo respeito. Se o corvo de Poe a avistasse do alto, reconheceria a morada das lembranças, não de Lenore, mas dos antigos Bezerra, e repetiria insistente do alto de uma viga o seu incansável ritornelo, “nunca mais...”. Tentei esquecer a ave agourenta para tentar reconstruir no rio das ideias o cotidiano de quem por ali passou. Acender o candeeiro antes do galo cantar e ouvir as vozes no terreiro na hora da ordenha, quando o vaqueiro chama cada vaca pelo nome. “Nunca mais...”, fez questão de repetir.

A fazenda Boa Hora faz isso com a gente.

A visita começa pela capela, que abriga peças de mobília e esculturas centenárias. Difícil não imaginar o pequeno ambiente tomado pelas rezadeiras de aguda voz em dia de novena. “Viiinde, Espírito Saaanto...”. O padre vinha a cavalo ou de burro, como melhor convém à pobreza do sacerdócio. Os do lugar vinham montados ou a pé pelas veredas. O caboclo apeava-se, afrouxava a cia da sela, tirava os arreios enquanto berrava alguma safadeza para o compadre lá na outra ponta do cercado. Amarrava a montaria e juntava-se ao povo depois de persignar-se tirando o chapéu.

Pedia a Deus tudo o que ainda pedimos, que saúde, fartura e felicidade estavam, então como agora, no centro de todas as preces.

Essas e outras cenas assaltam a imaginação no museu de Dona Auta.

Em seguida temos o quarto dos brinquedos com o pequeno curral repleto de ossos que a meninada batizava, ferrava, engordava e vendia nas brincadeiras como se antecipasse a missão que lhe caberia em breve. Ali a vida chamava, como ainda chama, mais cedo à responsabilidade. Era necessário cavar o sustento antes que o repertório das brincadeiras se esgotasse.O quarto das ferramentas dá testemunho de como se ganhava o pão. Moer o milho exigia o peso de duas pedras maciças sobrepostas que o índio movia já muito antes de ouvir o idioma de Camões pela primeira vez. O arco e a flecha também estão na parede, lembrando que a História do lugar não pertence, absolutamente, apenas ao invasor europeu. Ao lado estão as selas, a indumentária do vaqueiro, as esporas e estribos nos quais descansaram inúmeros pés anônimos. E temos ainda as salas com os rádios, a vitrola, um disco de Luiz Gonzaga com a faixa Corrida de mourão, o mobiliário, quadros, gravuras, o relógio do vigia - mais parecido com um cantil - as colheres, véus solenes para os dias de missa, o par de sapatos de um patriarca, seu terno que só saía do armário para o cumprimento da sagrada missão de votar para que eles se elegessem feito no cordel de Hugo, a santa de traços gregos e olhos negros que muito testemunharam, as correntes de Fabião, a janela de onde se avista o cruzeiro erguido em memória de um menino, o telhado sobre as ripas tortas, queimadas para evitar cupim, os filtros, lamparinas, o tamborete de raspar coco, os fogões a lenha e tantos objetos que ainda hoje sobrevivem nas casas de matuto do poema de Hélio.

São mais de quinze mil peças que Dona Cleudia mostraria outras quinze mil vezes com a mesma satisfação. A mais sertaneja das virtudes não virou artigo de museu na fazenda Boa Hora. Os anfitriões deram uma aula de hospitalidade. Marcelo também gostou, apesar das putarias de Gilberto, que de vez em quando ameaçava: “você vai ter que falar lá na frente. Olhe lá, que já prometi à dona da casa!”.

Como se a noite já não estivesse perfeita, ainda tivemos música, poesia e teatro.

Voltarei sempre.


Veja mais depoimentos sobre o museu e o luau em http://apoesc.blogspot.com/2011/10/sobre-o-luau-do-dia-11-prof-roberta-e.html

9 comentários:

  1. Rogério,

    Que texto extraordinário! Quanta descrição precisa! Quanto sertão! Quanto Nordeste! Quanto cada um de nós, filhos deste belo chão!

    Parabéns!

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  2. Rogério, você descreveu e narrou com perfeição tudo o que o museu trás à lembrança. Visitá-lo é passear pela história do sertão e do nosso povo; é reviver os dias de glória da vida campesina, mansa, ainda não alcançada pela velocidade dos tempos de hoje.

    Parabéns pelo excelente texto.

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  3. Valeu, rapaziada, mas juro que a culpa é toda do museu! rsrsrs

    Rogério

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  4. Vc é lindooooooooooooo!

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  5. Já pensou se esse cabôco vivesse no nordeste.

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  6. Caríssimo amigo Rogério, Gilberto me pediu para escrever algumas palavras, impressões esparsas sobre o belo momento que vivemos na noite imemorial de 11 de outubro, e confesso que depois da leitura de seu brilhante texto, senti-me como um velho professor de história aposentado, feliz e com lágrimas nos olhos, sem nada para dizer, porque ali, em seu texto estava TUDO, e ao contrário da frase final do poema "Escrever o quê?" que recitei naquela noite, esse tudo carregado de tanta energia telúrica, não se acaba em nada, Never More! Como diria o velho Poe!

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  7. Francisca Joseni dos Santos17 de outubro de 2011 às 20:57

    Excelente texto! senti-me transportada para tão importante evento. Parabéns ao autor e aos demais pela idealização deste belo projeto.
    Francisca Joseni dos Santos - Professora

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  8. É bom saber que temos nordestinos que voltam à sua terra, e continuam com sua essência(aliás nossas essências)...Admiro muito pessoas assim!

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