quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRIME E CASTIGO EM MINHA VIDA - Gilberto Cardoso

 



CRIME E CASTIGO EM MINHA VIDA

 

Há tempos planejo escrever algo sobre Crime e Castigo, mas acabo sempre postergando, por diversas razões. Um dos motivos para a procrastinação é me perguntar qual a importância de tal resenha, que impacto terá na vida dos leitores e que interesse despertará. Outra coisa é saber o que e como dizer algo sobre uma obra cujas impressões causadas me são tão indizíveis.

Resenhas, em geral, são vistas como textos secundários. Assemelham-se aos prefácios, tão pouco lidos. Mesmo assim, relutante, buscarei levar a cabo meu projeto.

Foi durante uma Especialização que pela primeira vez  prestei atenção no lacônico título. Um colega, o Alessandro Nóbrega, falou a respeito do autor e de seu romance “Crime e castigo”. Contou-me ele: “Alguém disse que é um castigo ler este livro, mas é um crime não lê-lo”.

Achei interessante o jogo de palavras e senti profundo desejo de devorar esta obra. Para minha alegria, o próprio Alessandro tinha um exemplar e se dispôs a emprestá-lo.

Com o volume em mãos, fiquei a me perguntar o porquê de a leitura ser um castigo. Tratava-se de um calhamaço. Pensei: Se hoje, para alguns, é um crime não ler tal livro, imagine o castigo que foi para o autor escrevê-la sem as facilidades tecnológicas de hoje!

Teria a ver com a quantidade de páginas ou com o estilo? A parte que me motivava era, conforme dissera o colega, o crime de ainda não a haver lido. Por que seria um crime não lê-lo? Em breve iria descobrir, pois o texto me prendeu com certa facilidade. Mas exigiu de mim atenção redobrada para os detalhes, para o fluxo de pensamentos do Rodion Românovitch Raskólnikov, pois era mais um mergulho em sua mente que propriamente em algum cenário russo ou em sequência de ações, embora isto também aconteça. Foi inicialmente estranho, mas logo se tornou bastante instigante e gratificante, uma espécie de alpinismo literário.

Vendo a empolgação, minha esposa decidiu que também o leria. Nos encantamos  com um personagem, o Porfíri Pietróvitch. (Aqui temos um problema para os não iniciados em literatura dostoievskiana e russa: os nomes complicados e apelidos dados aos personagens. Mas nada que não se tire de letra com o tempo).

A leitura desta obra nos rendeu boas conversas, reflexões e risadas.

Posteriormente, fui informado de uma série chamada Columbo, que fora feita tendo como inspiração o citado personagem. Levinson e Link, seus criadores, eram fãs declarados de Dostoiévski e confirmaram esta influência.

Peter Falk, o tenente Columbo, encarnou muito bem a ideia que fazíamos do método de investigação e da personalidade de Porfíri Petróvitch. Não sem razão, a premiadíssima série foi sucesso de crítica e de público em suas dez temporadas. Ao ver esta longa produção, pudemos sentir melhor a força daquele personagem dostoievskiano.

Outro episódio significativo relativo a “Crime e castigo” em minha vida se deu quando minha esposa viajou para a Paraíba. Era próximo do aniversário dela; resolvi surpreendê-la com este romance, impresso em dois volumes ricamente encadernados. No entanto, surpresa maior foi a que tive depois. Ao entrar numa livraria em João Pessoa, ela e minha filha tiveram a ideia de comprar “Crime e Castigo” para mim.

Mutuamente surpreendidos com o excesso de “Crime e castigo”, ficamos contentes ao perceber que eram diferentes traduções. Ainda bem! A tradução em dois volumes fora feita pelo também romancista Rosário Fusco e a partir duma famosa edição francesa.

Além disso, conheci um xará de sobrenome Yoshinaga que me disse haver lido esta obra 14 vezes. Crime e Castigo ajudou a cimentar nossa amizade. É o livro de cabeceira dele. Não cheguei a tanto, mas percebo que esta obra tem me acompanhado e aparelhado minhas percepções desde a primeira leitura.

Recentemente, na praia, em conversa com minha filha acerca de grandes livros e também de fanfics, entendi que Columbo se enquadra no gênero. É uma fan fiction do genial inspetor e tem por padrão a estrutura do romance.

Ao finalizar esta imperfeita resenha, espero que você sinta desejo de dar chance a uma obra que tem encantado a tantos desde 1866 e que se mantém tão atual.

 

Gilberto Cardoso dos Santos

Contatos do autor: Fone 84 999017248;  Gmail, Instagram e Facebook: gcarsantos


Livros de Gilberto Cardoso dos Santos:

CAMPO DE CONCENTRAÇÃO MODERNO

 


CAMPO DE CONCENTRAÇÃO MODERNO


Meu nome é Yara, tenho apenas 10 anos e moro na Faixa de Gaza. Meu mundo sempre foi feito de escombros, barulho de bombas e medo constante. Enquanto outras crianças sonham com brinquedos, eu sonho em um dia poder parar de me esconder.


Minha mãe tenta desviar meu pensamento da realidade, contando histórias de um passado com praias tranquilas, festas em família, porém nada disso combina com o cinza que vejo ao meu redor. As risadas, antes tão comuns, desapareceram com os bombardeios, e tudo que resta é poeira, barulho e silêncio pesado entre um ataque e outro.


Eu tinha um irmão, Sami. Ele era também meu melhor amigo. Fazíamos planos de um futuro fora daqui, todavia numa noite, uma explosão o levou. Desde então, nada preenche a ausência dele.


Quando a noite chega, o frio entra pelas rachaduras do abrigo improvisado. Dormir é um luxo, pois a qualquer momento o céu pode cair.


Estudar está difícil. Às vezes temos aula, às vezes fugimos. A escola vira abrigo, vira alvo, vira poeira. Seria bom ter um lugar onde eu pudesse ser criança, mas nos tornamos reféns, e para ser refém não há idade.


Comer é outra luta. A comida é pouca, e minha mãe finge não sentir fome para que nós tenhamos o que mastigar. Ela divide o pão como se fosse tesouro, e a gente se acostuma a guardar a fome no peito. As filas são longas, e o medo de voltar de mãos vazias é constante. A guerra também acontece no estômago.


Outro dia, acordei com febre, entretanto não havia remédio. O médico da região só consegue atender os feridos. O posto é cheio de corpos e gemidos. Doença aqui é sentença.


O que mais dói é a sensação de que fomos esquecidos. Ouço que em outros países há parques com crianças felizes. Por que aqui é diferente? Esse silêncio do mundo machuca tanto quanto o barulho das explosões.


Escrevo porque quero que alguém, em algum lugar, saiba que existe uma criança assustada, mãos estendidas e um pedido de paz urgente.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.07.2025 - 02h35min.





quarta-feira, 2 de julho de 2025

A FAÇANHA DO FORROZEIRO RAIZ - Hélio Crisanto

 


















INTERSECCIONALIDADE

 


INTERSECCIONALIDADE

Desde pequena, sentia que incomodava. Primeiro, por ser negra; depois, por não conseguir caminhar como as outras; na adolescência, por amar mulheres; mais tarde, por não ter dinheiro.

Já ouvi que minha cadeira de rodas “causa dificuldade” para a empresa, em razão disso, não me contratam. Em outros momentos, percebo olhares fechando portas antes mesmo que eu possa batê-las com minhas mãos gordas.

Ser acompanhada na rua por minha namorada é quase um ato de resistência. Olhares de desprezo, piadinhas, silêncio hostil, dá a perceber que a sociedade tem um roteiro pronto apenas para mulheres brancas, magras, heterossexuais, "femininas", andantes. Eu falho em todas essas expectativas, consequentemente, sou tratada com desprezo. 

No sistema de saúde, milhares de vezes fui ignorada. Teve médico que mal me olhou no rosto e psicóloga que sugeriu que talvez meu sofrimento viesse da "falta de autoestima", sem sequer ouvir o que eu tinha a dizer.

Cansei de entrar em espaços que se dizem progressistas e perceber que não fui pensada para estar ali. O feminismo que me convidaram a seguir falava muito sobre liberdade sexual, mas pouco sobre mulheres negras lésbicas e pobres como eu. Os debates antirracistas, na maioria das vezes, não enxergam minha deficiência. Até mesmo dentro de comunidades discriminadas, já me senti invisível.

Viver sendo minoria é se encontrar com a solidão em cada esquina. Entender o que é interseccionalidade me fez perceber que existe, em quase todas as pessoas, dificuldade em lidar com situações difíceis de serem classificadas em uma só categoria.

Existir como eu sou, é um ato político. Não quero piedade, quero justiça para um corpo deficiente, pintado da negritude dos meus antepassados, onde minha história importe.

Contar tudo isso não é fácil, mas necessário. Falar assim é falar sobre vidas como a minha, que desafiam estatísticas. E se alguém entender essa minha realidade, já é um grande passo para que o mundo comece, enfim, a se tornar um lugar mais justo.


Heraldo Lins Marinho Dantas 
Natal/RN, 02.07.2025 - 06h 13min.











terça-feira, 1 de julho de 2025

PELE TOUCH SCREEN




PELE TOUCH SCREEN


Sou um androide com corpo humano e cérebro monitorado. Para me sentir bem, preciso estar acessando as redes sociais a todo instante. O que antes era chato — tipo ficar na fila do banco — agora tornou-se um local apropriado para assistir às guerras sem medo de morrer ou ser perturbado.

Não posso me desligar um só instante. Você viu? Essa pergunta me traz suor, ânsia, até saber que sim, vi as últimas notícias do garoto que matou a família só para sair bem na foto junto a uma suposta namorada virtual.

Levando em consideração que o ser humano só é feliz quando está aprendendo, faço parte dessa galera. Para fugir dos meus pensamentos destruidores, preciso, infinitamente, de novos conteúdos. Sinto-me impaciente quando uma conversa real dura mais de cinco minutos. Será que aconteceu algo grave no mundo durante esse tempo e eu ainda não estou sabendo? Essas perguntas me perseguem até quando estou dormindo. Ao me levantar de madrugada, uma olhada no visor me deixa mais sossegado. Enquanto uso a privada, rolo a tela para não sair do modo hipnotizado.

Divirto-me com um avatar quando ele faz piada, dizendo que nunca se deve mandar alguém para a caixa-prego. O correto é mandar esse alguém se casar, porque, além de ser mais educado, o resultado é o mesmo. 

Eu nem sei mais o que é uma conversa olho no olho e até me assusto quando alguém me dirige um “bom dia”. Esse fala demais, penso, quando isso ainda acontece.

Acredito que jamais serei aquele que fazia uma garrafa de café e disponibilizava bolachas no alpendre para atrair bons prosadores. Depois que me tornei virtual, passo uma figurinha de um bule rodeado de bolinhos, e eles, muitas vezes, nem respondem. 

Oh! Silêncio devastador!


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 01.07.2025 – 04h11min

sábado, 28 de junho de 2025

PARECE E PARECIDO


Nasceu sobre esta terra,

Foi novilho entre o gado, 

Correu, brincou no cercado,

Percorreu toda vazante.

Viveu vida radiante,

Por seu dono conduzido,

Espalhou o seu mugido,

Tornando-se boi de carga,

Nessa velha terra amarga

De Parece e Parecido.


Formou-se junta de bois,

Dois bois e mesmo destino,

Logo cedo o ensino

Foi aprender puxar carro,

Que só transitou no barro

De madeira bem provido,

Nas rodas ferro fundido

Com uma canga lhes juntando,

Cabeçalho separando

Parece de Parecido.


Um carro com a tiradeira

Eixo, mesa, o cocão,

Canzil, brocha, o cambão,

Chumaço, cheda e argola.

Uma vara que controla

Mostrando qual o sentido,

Um carreiro destemido

No Campo Limpo empastado,

Trabalhando sem enfado

Com Parece e Parecido.


Era papai o carreiro

Que com mamãe namorava,

Das histórias que contava

O carro “cantava” alto.

Mamãe ouvia e de um salto

Corria pra seu cupido,

Mesmo ele estando sofrido

Carinho ali se trocava,

Sabe quem testemunhava?

Só Parece e Parecido.

 

Papai assim transitava

Com aquela junta de bois,

Falava tão bem dos dois,

Companheiros das jornadas.

Lembrava das madrugadas,

Das noites tendo cumprido

Com o que tinha prometido

Ao meu avô sem pantim,

Mas papai findou assim:

Sem Parece e Parecido.

 

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

DANDO A VOLTA POR BAIXO


 

DANDO A VOLTA POR BAIXO


A vontade de me afastar de todos vem da placenta. Não há outra explicação. Já tentei me enturmar, dizer que faço parte de um ou outro grupo social, mas nada me deixa mais feliz do que ficar trancado em casa.

Fui, inicialmente, isolado e protegido para me desenvolver no reino da fantasia, onde havia uma escrava para atender minhas necessidades básicas. Por isso, senti um choque quando fui expulso do paraíso. A serpente que trazia a maçã a todo instante foi assassinada, transformada em cordão umbilical e jogada fora do paraíso. Deus desistiu de mim naquele momento. Ele batia cerca de noventa vezes por minuto para dizer que estava ali pertinho, transformado em um simples coração, quando tomei consciência da anatomia humana.

Se eu tivesse me conhecido antes, talvez fosse um fracassado. Não que eu me ache um ídolo, mas teria sido o escravo mais açoitado no pelourinho por não querer fazer absolutamente nada. Acho que nem teria permanecido vivo, e se permanecesse, seria doente, sem rumo, nem prumo. Fome e frio eram agravantes na minha experiência de morte, sim porque depois de habitar o paraíso durante nove meses, praticamente morri e vim para o inferno, onde tenho que trabalhar para suprir o que antes chegava através da serpente.

Lá, eu assistia ao filme dos alimentos sendo digeridos pelo estômago. Escutava a trilha sonora do fígado lançando a bile feito míssil atômico, quebrando tudo e refazendo substâncias para a próxima batalha. Meus sentidos aguçados percebiam quando minha cápsula gestora fumava ou bebia. Aprendi a me defender com os níveis de dopamina me recompensando, distraindo-me e me levando à morte de viver aqui fora de forma satisfatória.

Foi lá que tive meu silêncio respeitado. Precisei de décadas para entender que minha inadequação ao mundo não era doença, mas memória. Sou um saudosista do líquido amniótico.

Minha gestação foi uma novela cósmica de nove capítulos, cada um narrado por um órgão da minha mãe. O baço era o cômico. O intestino, o vilão. Os pulmões sussurravam as canções da angústia. Já o coração, fazia papel de protetor, batendo forte, mas me abandonou no parto. Cheguei no palco sem aplausos, nu, escorregadio, chorando por não saber atuar nesse roteiro improvisado chamado vida.

Por isso, sonho em viver num lugar onde não se precise explicar o porquê de tanta insistência em voltar para o início.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 25.06.2025 - 10h21min.



terça-feira, 17 de junho de 2025

ALIANÇA COM PALAVRAS

 



Trinta anos, indo a passeios com diferentes mulheres todas as noites. Várias delas se aproximavam apenas para mais uma noite de consumo quente, assim definiam aquele momento em minha companhia. Em qualquer lugar, parecia que havia um convite no meu olhar. Os desejos saltavam, ricocheteando, e, de pronto, a mensagem era entendida. Dali até os “finalmente” bastava só mais um “olá”. 

Nunca tive filhos, pois saíam embalados no preservativo diretamente para a lixeira. Temia que nascessem com algum transtorno mental, eis o motivo de tanto medo de colocá-los no mundo. Pensão, escola, vacinas... jamais enfrentei tais responsabilidades, pois aprendi a evitá-las, tomando como exemplo meus colegas que amadureceram antes de mim e reclamavam por não terem se precavidos. 

Fui casado com minha grande paixão, que sonhava em voar sem paraquedas. Escondida, agendou um salto, e até hoje sinto sua falta. Dez anos mais nova, pensava em ser atriz. Pena que desistiu depois de experimentar o volume de páginas a decorar. Ela me inspirava ao me desafiar a escrever vinte páginas todos os dias, como fazia com o pai falecido. Viciou-se em rasgar meus péssimos poemas, servindo-lhe de autoafirmação como coautora da minha produção literaria. Reclamava que eu precisava estar à disposição dela sempre que precisasse sair às compras. Ainda bem que nunca procurou outro financiador dos seus projetos.

Gravava vídeos longos, fazendo caras e bocas. Nunca gostou de ler, porém comprava livros em sebos para pintar de amarelo as interjeições, verbos de vermelho e quando encontrava uma palavra que não conhecia, cortava com um estilete e colava no espelho da pia. 

Eu a conheci no lançamento do meu décimo livro. Lá estava ela, saltitante, com grandes olhos verdes para o autor. Foi direta. Disse que queria se casar comigo naquele momento. Seus pais? Já sou de maior, disse apontando para seu registro de nascimento de vinte anos.

Aceitei o desafio de perambular pelos trâmites cartorários durante dois meses. Valia a pena, pensava eu, até que finalmente ficamos a sós. Já na primeira noite, ela montou toda uma fantasia de branca de neve, chamando-me de meu Zangado. Sempre exercia uma personalidade diferente a cada amanhecer. Obedeci-lhe como um jumento de carga. As noitadas fora de casa foram transferidas. Não saía nem para comprar mantimentos. Os livros nos sustentavam. Nos lançamentos, lá estava ela no caixa. Que sorte a sua, hein?, diziam os mais chegados. Ela apenas ria. Deixava os discursos para mim, porém em casa dizia o que dizer. Eu lia para ela. Chorava em narrativas dramáticas, na mesma intensidade que gargalhava em momentos graciosos.

Nunca fomos de beber nem fumar. Depois do aconchego, um sono leve despertado para que ela pudesse contar histórias inventadas na hora e que eu aproveitava em meus romances. Gostou? Perguntava-lhe depois do capítulo escrito. Ela sempre modificava, e, por incrível que pareça, para melhor. 

Hoje, quando estou escrevendo, lembro-me dela. O que será que ela diria?, penso quando travo. Incorporo-a. Imagino seus lábios carnudos ditando palavra por palavra, saindo daquela boca de sorriso perfeito. Sua convinha do lado esquerdo do rosto, indicava quando estava pensando. Aí vem coisa, eu pensava em silencio, esperando mais uma fabulosa narrativa. 

Hoje, chorei pela sua ausência. 


Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 17.06.2025 – 09h00min.


domingo, 15 de junho de 2025

SOU 100% HUMANO



 SOU 100% HUMANO


É preciso enfraquecer esse indomável monstro que destila veneno por onde passa. Fecham-se cadeados, portões, jaulas... mas a boca? Essa entrada sem tranca tornou-me obeso; a saída liberada, odiado. Não tenho capacidade de habitar na mansa sociedade. Exercícios, trabalho, preocupações, perigos... sou um ser necessitado de tudo isso para me manter dentro dos parâmetros normais de aceitabilidade.

Quero brigar com todos. Colocar defeito em tudo. Só eu estou certo. Nunca erro — apenas me engano aqui e acolá.

Não assumo em público, contudo, tenho vícios. Sou doido para envenenar gatos, mas não tenho coragem. Outra deficiência minha: sou covarde, dissimulado. As pessoas acham que sou calmo. Mais violento do que eu, desconheço. Finjo que está tudo bem. Entretanto, enquanto sorrio para alguém, penso em decapitá-lo.

Sou tido como um cidadão de bem. Ah, se eu tivesse poder... Trump seria um aprendiz perto de mim. O ditador da Coreia do Norte estaria no jardim de infância. Como os invejo! Eles têm milhares de soldados ao dispor para dar vazão ao mesmo instinto que habita em mim. Acho que seria tão feliz quanto eles, se tivesse o poder que eles têm. Num estalar de dedos, caças supersônicos, avaliados em milhões, partiriam para destruir uma cabana feita de palha.

Eu faria pior do que o presidente de Israel. Deixaria as crianças palestinas morrerem de fome, só para acabar com o mal pela raiz. Faria fábricas no subsolo, tentando desenvolver a bomba atômica. Depois de prontas, jogaria na floresta Amazônica para exterminar todo tipo de vida. Só assim sobraria ouro para mim.

Esqueci de dizer, mas sou também muito ganancioso. Tudo que vejo, quero comprar — mesmo que seja para depois jogar no lixo. Queria possuir muitas vacas leiteiras. Minha vontade era juntar o leite só para derramá-lo e, assim, fazer o preço subir.

Sou fã daquele filme Meu Malvado Favorito. Assisti a todas as versões. Os minions? Esses já entraram para a história, muito mais aclamados do que São Francisco de Assis. Quem é esse? Fazia o bem. Mentira, diria eu nos alto-falantes. O bem é uma criação cultural para ser bem visto — pelo menos, é o que pratico, e com esse objetivo. Sinto-me mal ao praticá-lo, mas o faço em busca de aceitação social. Jogo para a plateia, com discursos bem articulados e ações plausíveis. Beijo crianças em público... querendo cozinhá-las, em particular.

Estou com saudades de uma guerra mundial. Já faz quase cem anos da última. Está na hora de matarmos o excedente. Daqui a pouco, nem se consegue mais comer caviar. 

Eu sou assim, direito.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.06.2025 – 06h52min

sexta-feira, 13 de junho de 2025

PACTO COM O TEMPO - Nelson Almeida

 




PACTO COM O TEMPO


Não uso artifícios no rosto.

Nunca pintei meus cabelos.

Aceito, sem sobressalto,

A passagem dos dias.


As rugas contam histórias,

são páginas vividas na pele.

Não posso negar quem sou:

tenho um pacto com o tempo.


Esse senhor da existência,

soberano e silencioso,

corre — fundamental e livre —,

alheio aos desejos vãos.


Não quero rusgas com o tempo.

Deixo a cor dos meus cabelos

ser o prólogo visível

da história que meu corpo narra.


Nelson Almeida. Natal, 13/06/25. 12:20.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

SUPREMO ANSEIO - Poema de Juciana Soares



 












SUPREMO ANSEIO (Juciana Soares)


Não quero mais apenas fazer sexo. 

Quero viver uma paixão! 

Quero beijos famintos! 

Quero matar minha vontade de ser devorada 

com o mesmo desejo que sinto por ele! 

Sinto sede de viver, 

de sentir meu corpo molhando, 

jorrando, pulsando 

tal qual a tempestade de emoções 

que sinto quando acordo… 

já pensando nele, 

na boca dele, 

no cheiro dele que ainda não conheço, 

na ânsia que tenho de ser dele, 

de ter prazer com ele… 

no amor que mesmo antes de nascer nele 

já percebo em mim…




terça-feira, 10 de junho de 2025

UM ANO SECO NÃO CRIA NEM FLOR DE MANDACARU - Hélio Crisanto

 




PRODUTO DA INSÔNIA



 PRODUTO DA INSÔNIA 


Viajando por esse vasto repertório de mentiras, deparei-me com papai Noel conversando com Noé. Um deles dizia que as renas não precisariam embarcar, já que voariam logo que começasse a chover. Saí desse fake apressado para não interferir na história e fui bater direto na Grécia antiga. Lá, procurei por um tal de Sócrates, aquele que diz: "só sei que nada sei". Nada. Ninguém sabia dizer onde ele morava. Ah!, sim, respondeu-me um barbudo. Está sendo inventado por aquele outro barbudo. Ele apontou em direção a um grupo de homens que se coçavam. Quem está inventando Sócrates? Perguntei ao me aproximar. Ele, respondeu o de barba ruiva. Eu não, defendeu-se o morador de teatro, também sem se barbear, e foi logo se retirando como se eu tivesse lepra. Em poucos instantes, o grupo havia se dissipado.

Depois dessa frustração, eu só pensava em ficar nos braços de Salomé, mas não deu. Ela estava ocupada, levando uma cabeça numa bandeja. Para que queres essa cabeça? Não é da sua conta. Logo percebi que bisbilhoteiro não tinha vez no mundo antigo.

Fugi para perto de um monte de gente olhando um doido lavar as mãos. Barrabás, gritou um efeminado, logo eliminado por um Minotauro. Que coisa, pensei. O Minotauro mastigou seu almoço na frente das crianças, porém foi esse o seu erro. Uma delas pegou uma pedra e lascou a cabeça do Minotauro. Aplausos. Qual o seu nome, menino? Quer comprar cocada? Não. Além de matar Minotauro, Teseu também vendia cocada nas sessões de crucificação. Saí apressado para que ele não tivesse tempo para ir pegar uma outra pedra para fazer comigo o mesmo que fez com o Minotauro.

Logo adiante, encontrei uma pedinte. Estava com uma serpente nas mãos. Uma ajuda aqui para essa pobre serpente, pedia ela enquanto comia uma maçã. Cadê seu marido? Aquele sem-vergonha está povoando o mundo. Seu nome é Eva, não é? Pode me chamar de costela, disse ela, puxando a corrente que mantinha Caim sob controle.

Na esquina, dei de cara com um anjo confuso. Procura algo?, pergunte-lhe. O caminho de volta para o Paraíso, disse ele, aflito. Mas acho que Adão trocou as placas. Aproveitou a oportunidade para me oferecer milagres em promoção: compre dois peixes e ganhe cinco pães. Perguntei se aceitava cartão. Só Pix. Tudo bem! Qual é a senha? Céu e Inferno, tudo junto.



Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 10.06.2025 - 04h31min.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Lançamento de "Famílias do Trairi do Rio Grande do Norte", livro de José Edmilson Felipe


O grande pesquisador e professor da UFRN José Edmilson Felipe da Silva, realizará o lançamento do seu livro nos dias 28 e 29 de junho durante o 2º encontro de Cultura Pop do Trairi. O referido livro registra a história das raízes da região Trairi. O título do Livro será Famílias do Trairi do Rio Grande do Norte: Suas raízes Judia, Indígena e Negra.

Local do evento: Memorial João Pinheiro do Chapado, Rua Professora Palmira Barbosa, 146, bairro Miguel Pereira Maia  em Santa Cruz/RN.

Data: 28 e 29 de junho de 2025.


O prédio fica na rua do Hotel Riviera, próximo ao depósito da Maré Mansa




Capa do livro



Programação:



Garanta o seu a preço promocional com o autor pelo fone/WhatsApp 84 998644419. No dia, custará um pouco mais.







sexta-feira, 6 de junho de 2025

O NOSSO FORRÓ - Hélio Crisanto

 


O NOSSO FORRÓ


Já não se vê nos salões

Nosso forró genuíno

Clamo ao povo nordestino

Honrar nossas tradições.

Não aceite imitações

Ouça Petrúcio e Dió

Flávio lá de Bodocó

Gonzagão e Marinez;

Estão querendo de vez

Sepultar nosso forró.


Escute um xote de pinto

Azulão e mestre Zinho

Santana e Jorge de Altinho,

Não deixe o forro extinto.

Ouça um Côco de Jacinto

Desses que levanta o pó

Escute João Mossoró

Em todo dia do mês;

Estão querendo de vez

Sepultar nosso forró.


Na sua festa junina

Se quiser um clima bom

Convide o mestre Marrom

Com zabumba e concertina.

Pelos salões de Campina

Quero ver um ritmo só

E Deda abrindo o gogó

Cantando com altivez;

Estão querendo de vez

Sepultar nosso forró.


Quero um São João genuíno

Sem sertanejo e axé

Tocando Flavio José

Para o povo nordestino.

Na poeira um dançarino

Dançando qui nem jiló

E o contratante sem dó

Pagando bem os cachês;

Estão querendo de vez

Sepultar nosso forró.


Hélio Crisanto

terça-feira, 3 de junho de 2025

A subjetividade do malandro na Literatura Brasileira e na MPB - Livro de Roberto Gabriel


A figura do malandro é um ícone cultural brasileiro, representando uma subjetividade complexa que transita entre a marginalidade e a resistência. Roberto Gabriel, profundo conhecedor da MPB, a quem já entrevistei neste blog, fez deste tema o cerne de seu doutorado e foi aprovado com louvor. O estudo por ele desenvolvido propõe uma análise dessa figura na literatura brasileira e na música popular brasileira (MPB), explorando como ela reflete e influencia a construção da identidade nacional. - Gilberto Cardoso







Livro: "A subjetividade do malandro na Literatura Brasileira e na MPB". Doutor: Roberto Gabriel Guilherme de Lima.


O primeiro capítulo é uma análise da subjetividade do malandro no livro: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida.


O segundo capítulo é uma análise da subjetividade do malandro no livro: Macunaíma de Mário de Andrade.


No terceiro capítulo faz-se uma menção à: Música, poesia e canção popular: uma reaproximação de conceitos e um subcapítulo: A poesia na prosa, no poema e na canção popular.


No quarto capítulo fala-se do: "O cuidado de si" e a constituição subjetiva do malandro.


No quinto capítulo:


5.1 O malandro na história oficial e não oficial do Brasil.

5.2 O malandro nas canções de Noel Rosa.

5.3 O malandro nas canções de Chico Buarque de Holanda.

5.4 O malandro no romance buarqueano: "Essa gente".


No sexto capítulo


6.1 Caracterização da pesquisa.

6.2 Sujeitos da pesquisa.

6.3 A Subjetividade do malandro entre alunos.

6.4 A Subjetividade do malandro entre educadores.


Considerações finais

Referências.




O livro foi lançado em Santa Cruz, no espaço do IFRN que leva o nome da mãe do autor, no Auditório Profª. Francisca Ivaita Guilherme de Lima, no dia: 30/05/2025.

Quem quiser saber mais ou se interessar pela obra, que tem 257 páginas e custa 50 reais, entre em contato pelo telefone: (84) 988524277


Abaixo, uma entrevista que fiz com o autor, publicada em 12 de junho de 2011





BATE-PAPO COM ROBERTO GABRIEL SOBRE SUA PAIXÃO PELA MPB


Gilberto Cardoso: Trace de si um perfil e faça uma minibiografia.

ROBERTO GABRIEL: Nasci em Natal 13/02/1969. Filho de: Roberto Gabriel de Lima e Francisca Ivaita Guilherme de Lima. Sou professor de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino. Tenho mestrado em Literatura Comparada,e especialização em Língua Portuguesa, sou graduado em Letras pela UFRN.

Gilberto: Desde quando surgiu seu interesse pela MPB? Fale-nos do histórico de sua coleção de CDs e discos.

ROBERTO: Desde cedo, fui criado num ambiente musical, sempre ouvíamos canções diariamente. Minha mãe foi quem comprou os primeiros LPs que tinha em minha casa. Ouvi muito Martinho da Vila, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Waldick Soriano, Núbia Lafayete, Ângela Maria, Roberto Carlos, entre outros. A partir daí fui dando continuidade a minha coleção de vinil. Sempre gostei de receber de presente um disco.

Gilberto: O que você classificaria como genuína MPB? Há algo que leva tal nome e que, de fato não o merece?

ROBERTO: Nada nesse mundo é definido como puramente genuíno. Nossa música é altamente mesclada de ritmos e estilos, rotulá-los não é meu papel. Sou apenas uma pessoa que admira essa tão vasta e respeitosa MPB. A MPB compreende um campo muito vasto de estilos musicais.

Gilberto: Não acha impróprio o termo “popular” para esse tipo de música? Por quê?

ROBERTO: Acho mais impróprio o termo música do que o termo popular. Porque música está ligado àquilo que é musical, tipo uma partitura, e não àquilo que é cantado. Eu trocaria o termo música por canção. Porque canção é uma letra escrita para ser cantada dentro de uma melodia. O termo popular surgiu para diferenciar as músicas clássicas (Beethoven, Ravel) das músicas (letras melodiosas) cantadas pelo povo.

Gilberto: Que pensa das ideias de Caetano Veloso a esse respeito?

ROBERTO: O que eu sempre compreendi sobre a Tropicália, movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, é que eles queriam juntar unindo todos os estilos musicais brasileiro. Era este o papel principal da Tropicália.

Gilberto: Caetano gravou sucessos bregas, Maria Bethânia fez o mesmo. Que pensa a respeito?

ROBERTO: Meu caro não existe nada brega na música brasileira, o que existe é um preconceito exacerbado de certas pessoas que não têm conhecimento de causa. Porque a própria palavra já diz: preconceito é um conceito prévio que certas pessoas tiram a respeito de algo que não conhecem.

Gilberto: Quem você classificaria como verdadeiros ícones da MPB?

ROBERTO: Fica difícil porque o Brasil é o país dos grandes compositores, dos grandes cantores e das grandes cantoras. Todos tiveram uma grande contribuição na constituição da nossa música. Falar de alguns e deixar outros de lado, é melhor incluir todos.

Gilberto: Quais seus cantores e compositores preferidos?

ROBERTO: Se eu fosse nomeá-los passariam dos 250, portanto vou falar aqueles pelos quais sou mais apaixonado. Homens: Alceu Valença, Moraes Moreira, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Djavan e Milton Nascimento. Mulheres: Elba Ramalho, Baby do Brasil, Rita Lee, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone, Clara Nunes, Marisa Monte, Elis Regina, Beth Carvalho e Tereza Cristina.

Gilberto: Que voz você classificaria como a melhor e que compositor mais o encanta?

ROBERTO: Melhor voz: Milton Nascimento Melhor compositor: Noel Rosa

GilbertoComente a seguinte frase, dita por Reginaldo Rossi : "A diferença entre o brega e o chique só começou a existir depois da década de 60. Quem falasse mal do regime militar era chique".

ROBERTO: O Regime Militar foi um período cruel da nossa história, isso deu margens à muitas canções, mas é claro que todas as canções feitas no Brasil, nessa época, obrigatoriamente, não deveriam ter que se referir a esse período, isso é ilógico. E nem por isso as canções que não se referissem a esse período deveriam ser taxadas de bregas.

Gilberto: A perda da militância política não empobrece a qualidade da Mpb? Não há um excesso de romantismo que poderia ser classificado como fator alienante?

ROBERTO: Não, porque a mesma elite que ouve, digamos as tais canções de protesto, é a mesma que não cumpre o seu papel quando está no poder. Na minha opinião, a sociedade brasileira é a mais hipócrita do mundo, porque para o brasileiro se eu estou bem não me importa o resto. Acredito que as canções de amor deveriam alertar essa sociedade hipócrita para amar mais o seu próximo.

GilbertoPor que a MPB não cai no gosto do povo brasileiro ? Teria a ver com a música em si ou com o descaso dos meios de comunicação?

ROBERTO: Tudo tem seu tempo, tudo acontece no seu tempo.

GilbertoHá algo a lamentar em relação a MPB?

ROBERTO: Só tenho a agradecer aos grandes mestres, interpretes e músicos do Brasil, pois é a única coisa levada a sério nesse país.

GilbertoNos dias atuais, como está a MPB? Pensa que ela já teve seus dias áureos?

ROBERTO: Sempre está surgindo um grande nome, um exemplo disso é a Escola de Samba PORTELA que tem lançado além dos seus grandes smbistas, uma nova safra de sambistas como Diogo Nogueira, Tereza Cristina, Dorina, Juliana Diniz e Nilze Carvalho que são sambistas Portelenses da nova geração.

GilbertoQue discos e CDs faltam em sua vasta coleção da MPB? Cite algo raro que você possui?

ROBERTO: o primeiro CD dos Secos e Molhados e um CD do cantor/compositor cubano Pablo Milanês. Faltam muitos CDs para minha coleção, se eu pudesse eu teria todos os CDs lançados no Brasil sem restrição.

GilbertoFale um pouco sobre sua tese de mestrado e diga-nos suas palavras finais.

ROBERTO: Minha tese é a respeito das canções de cunho feminino de Chico Buarque porque eu trabalho com essa fronteira do gênero entre o masculino e o feminino.

O que me faz viver ainda, nessa sociedade hipócrita brasileira, é saber que eu tenho muita gente boa para ouvir em casa. Tudo isso me dá um enorme prazer em viver.