FICÇÃO E REALIDADE
Numa manhã de outubro, ele começou a desvendar os segredos contidos no livro Kafka à Beira-Mar. Seriam 448 páginas que pretendia ler em poucas horas, para se envaidecer nas palestras que fazia. Um barulho a mais ou um grau a menos poderia atrapalhar sua concentração.
Abriu o computador, e lá estava a fera esperando-o. Mas, em vez de começar a leitura, seu cérebro lhe apresentou a imagem de um pássaro que matava, a bicadas, uma cobra sem veneno. Essa imagem, vista há pouco nas redes sociais, o levou a sentir empatia pela vítima quando ela foi engolida. Ninguém foi ajudá-la — assim como o leitor, desesperado em cumprir o prazo da leitura, também não podia contar com outra pessoa para auxiliá-lo. Olhou para a claridade do sol nascente refletida no porcelanato da parede, no momento em que reafirmava para si que a leitura é um ato solitário — e só quem a executa pode dizer se a experiência está sendo boa ou não.
Procura se distrair, lembrando-se de coisas sem nenhuma relação com o que está fazendo, tentando ganhar tempo para imaginar o que encontrará no romance. Essa forma de dar saltos no pensamento é como sua mente funciona para interiorizar a importância do que está por vir.
Volta para o computador à sua frente. Aumenta o zoom e encontra o prólogo: “Um menino chamado Corvo...”. Eis o início do livro de Haruki Murakami.
Levanta-se da cadeira, mexe no fogão, come o muito do pouco que resta de um prato, coloca roupa para lavar e volta para a tela. Antes de continuar, trava um diálogo com o comprador do teclado musical:
— Oi! Esse item ainda está disponível?
— Sim.
— Faz 250 à vista?
— Vou analisar sua proposta e, no próximo mês, lhe digo alguma coisa.
— Aí já tenho comprado outro.
— Espere novembro.
— Por quê?
— Porque é depois de outubro.
— Muda o quê?
— Muda do mês dez para o mês onze.
— Kkkkkkk...
O pretenso comprador desistiu, rindo.
Quando tem algum objeto sobrando, ele o expõe à venda apenas para se divertir com os regateadores.
Finalmente, iniciou a leitura:
— Dinheiro, então, deixou de ser um problema? — disse o menino chamado Corvo.
Ele sabe que essa atividade de leitor de romances demanda tempo e paciência. Não adianta ler apressado, tentando ser rápido como se estivesse fabricando biscoitos. O final sempre termina com as mesmas letras; portanto, degustar é a melhor estratégia.
Na manhã seguinte, logo cedo, lembra-se do livro. O planejamento de terminar em poucas horas passa para poucas semanas. Não vai mudar o mundo se nunca concluir a leitura e, se por acaso morrer durante essa façanha, as pessoas não darão pela sua falta. Por isso, paciência.
Faz um chá para a mulher que está mal, orientado pela inteligência artificial de que o de camomila é ótimo para dor na barriga. Hoje em dia, a IA fornece a dieta ideal para quem apresenta sintomas atípicos. Daqui a pouco, os médicos irão apenas jogar cartas enquanto esperam uma vítima de acidente, pois, para doenças simples, basta a IA.
Pula de três em três páginas para treinar a mente a imaginar o que não é lido — tentando encontrar o menino chamado Corvo, que tem para ele, àquela altura, um significado ainda desconhecido no romance.
Gostaria de ser viciado em livros a ponto de colocar, em frente à privada, uma prateleira cheia deles — mas o esporte ocupa o primeiro lugar. Sai para o jogo de tênis e esquece a história do jovem que resolveu fugir de casa, roteirizada na presente obra. Na disputa do jogo, corre, irrita-se, sua bastante e volta para casa com o gosto de vencedor misturado ao que a mulher preparou para o jantar.
Na segunda-feira, ao ler que há um relógio afixado na parede, lembra-se de um relojoeiro que falava sobre um veículo que havia possuído décadas antes. Aquele diálogo parecia não empolgar o neto de dez anos, que disse:
— Vovô só fala nessa Rural.
Percebe que é impossível ler algo sem trazer a própria vivência transformada em experiência para acompanhá-lo.
Retorna para antes dos pulos mentais e pega emprestada uma frase que cabe direitinho na sua realidade: “E o tempo vai passando com lentidão exagerada.” É, realmente, naquela manhã nublada, só quem tem pressa é seu estômago ansioso para provar as duas laranjas escolhidas para a quebra do jejum intermitente. Soube que, quando se está com apetite exagerado, o organismo busca energia na gordura acumulada, fazendo uma varredura nas células velhas e doentes, que são primeiramente consumidas — sem que haja possibilidade de se transformarem em cancerígenas. Não sabe se isso é verdade, mas prefere acreditar que sim; é o motivo maior de só se alimentar duas vezes ao dia, e fica refletindo sobre isso, enquanto espera a vontade para prosseguir a leitura.
Nessa hora, vira a página e se depara com o Capítulo 6. Mais uma vez, divaga sobre a própria afirmação de que está perdendo o gosto por filmes. Fica absorto nas lembranças de quanto gostava de teatro. O mesmo processo repetitivo está acontecendo em relação à sétima arte, e decide que é hora de ficar apenas com as leituras.
É despertado pelo blin-blon da campainha avisando-o de que a filha chegou do treino. Abre a porta. Ela entra. Ele sai com um saco de lixo, silenciosamente, para não despertar a curiosidade da vizinha, que se mantém entrincheirada nas fofocas.
O dia transcorre sem que se apegue a qualquer ideia fixa. Tem medo de pensar demais sobre um só assunto e transformar o pensamento em algo doentio. Um dos exemplos é que prefere fechar os olhos no momento em que está tocando teclado — exatamente para que o cérebro comande os dedos em direção aos sons pensados, desligando-se totalmente do mundo material. Ouviu falar da memória muscular e recorre à imagem de Bruce Lee, preparando o corpo para reagir sem pensar. Deve ser isso que faz um músico conversar e tocar ao mesmo tempo.
Aplaude a desenvoltura de Haruki Murakami, mas percebe que o autor volta a falar de poços, e uma das personagens diz, ao convidar Kafka para sua cama, que está com um namorado e jamais fará sexo com outro, pois é muito rígida quanto a isso.
Bah! Essas repetições lhe causam enjoo, pois percebe que cada autor tem um modus operandi que faz questão de deixar em cada obra — como se fosse uma antena que personaliza a escrita — do mesmo jeito que, nos filmes, são reproduzidas explosões no mesmo padrão. Os diálogos nas películas também seguem uma tolice sem precedentes: quando um personagem diz “eu te amo”, o outro já está pronto para repetir “eu também te amo”. Parece que existe um cardápio de sons e um modo automático de os personagens se comportarem em cena.
Ele para num ponto final de capítulo. Observa-o como se fosse uma ilha de descanso. Seu corpo relaxa juntamente com a calmaria do cérebro. Não vê motivo para demorar-se naquele ponto; sua mente apenas estaciona e fica sem expectativas quanto a continuar ou fechar a tela. Resolve fazer o mesmo diante de uma vírgula e, depois, de um ponto de interrogação. Os diálogos permanecem por mais tempo em sua mente quando presta bastante atenção nesses recursos gráficos. Compara o ponto de interrogação a sobrancelhas arqueadas; a vírgula, a um buraco na calçada; e o ponto final, a uma mesa de confraternização entre autor e leitor.
Almoça um prato de pedreiro e se deita. Dormiu sem sonhar e acordou avaliando que não existe dinheiro que pague a liberdade de dormir em pleno meio-dia de uma quarta-feira de expediente. Fica no ócio criativo e descarta a ideia de esconder a roupa esfarrapada da mãe para evitar que ela saia de casa parecendo uma mendiga com mal de Alzheimer. Lembra-se de uma anciã que vivia rodeada de lixo e ratos. Solteirona, morreu depois que um vizinho retirou um caminhão de trastes que ela acumulava, acreditando ser normal guardar o que não tinha utilidade. Faz essas peripécias imaginativas para se convencer de que, por mais que se dedique à leitura, há, sim, uma vida paralela acontecendo ao ato de ler.
Enquanto folga da leitura, no mundo cão, centenas de pessoas continuam morrendo em confrontos armados em um único dia. Bandidos conseguiram abater quatro policiais em troca de centenas deles, mas isso não é problema, já que a máquina de fazer criaturas continua gerando outros substitutos na mesma data em que esses saíram de circulação.
O impulso que faz novas gerações surgirem como gafanhotos em plantações de trigo é comandado pelo prazer. Uma vaga é aberta, e outro assume o papel sem constrangimento. Há vagas para todos quando o corpo amadurece e exige a gestação sem muito critério; afinal, em tempos de guerra há escassez de tudo, inclusive de reprodutores. A vontade de se multiplicar faz os genes aprisionarem seus portadores a ponto de o racional ser deixado de lado e, assim, mais e mais confrontos serem travados, com zero de preocupação quanto a possíveis baixas de ambos os lados. Lembra-se das arenas romanas: os governantes continuam a dar pão e circo para a plebe que aplaude esses combates.
Sai da rotina de morte e nascimento para pesquisar sobre as sonatas de Schubert, tão discutidas pelos personagens Oshima e Kafka Tamura. Escuta um pouco e logo tem a ideia de procurar um armazém que vende panelas. Passa o dia inteiro escolhendo vasilhas de acordo com o som que emitem ao serem batidas com a unha. Traz para sua cabana e as arruma embaixo do telhado do alpendre. Espera um dia, dois, até que começa a chover. As bicas pingando no dorso das vasilhas produzem uma inédita sonata, imitando as de Schubert ao piano. Nos dias de chuva, ele fica à espera de descobrir qual música nova será tocada nas panelas que mudaram de posição.
Ah, como seria bom se a vida dele se resumisse a ouvir sonatas tocadas pela natureza! Mas recebe a notícia de que sua mãe ficou cega de um olho.
— Mas como? Será que não havia percebido? — pensa.
O irmão envia um vídeo explicando o que são drusas. Ah, ainda bem que é só o comprometimento da visão central. A visão periférica fica preservada, segundo o vídeo que ele mostra à mãe para deixá-la mais tranquila.
Durante a leitura em que o personagem Nakata fala com gatos, ele encontra a frase: “Ela arrepanha a barra do vestido azul” — e corre para pesquisar o significado de “arrepanha”, do mesmo jeito que fizera quando o amigo gaúcho disse “pilho” durante um jogo de xadrez entre os dois.
Volta para casa satisfeito por ter conseguido um xeque-mate no embate travado com um professor universitário. Logo ele, que se mantém longe do trabalho formal, derrotar alguém que se envaidece por ter decorado centenas de senhas é uma proeza de grande valor.
Após degustar o peixe deixado do almoço, recebe uma mensagem com o pedido de revanche. Sorri de leve e comenta sobre o gaúcho que espatifou o tabuleiro por não saber perder. Confirma que, na próxima semana, estará disposto a mais uma partida e segue com amenidades no colo da amada.
Acorda no meio da noite ao receber o chamado do romance para continuar a leitura. O texto ganhou vida e, embora seja apenas um amontoado de palavras, continua influenciando seu dia a dia. Resta-lhe concordar em levantar-se da cama, acender a luz do escritório e embrenhar-se na mata ficcional. Ler ainda mantém sua importância, mas ele desconfia que, se fosse bilionário, talvez prestasse mais atenção às beldades contratadas para servi-lo do que à leitura.
Imagina poder entrar no livro e conhecer a personagem — moça de aluguel — que precisa fazer o que faz para pagar a faculdade de Filosofia. Na cama, ela recorre ao pensamento de Hegel para dizer, enquanto acaricia: “Para mim, eu sou o si e você é o objeto. Para você, é naturalmente o contrário: você é o si e eu sou o objeto. Neste momento, estamos realizando uma permuta entre o si e o objeto e, assim, estabelecendo a consciência-de-si.” Só isso já compensou a empreitada, pensa ele, protegido por um blusão de frio e por portas e janelas cerradas.
Dá uma pausa para refletir sobre o diálogo real que teve antes de dormir:
— Só sendo muito idiota para manter uma catacumba limpa — dizia ele ao telefone com uma parenta que pagava alguém para realizar essa tarefa.
— É uma tradição — ela respondeu.
— É uma vaidade besta — refutou ele, após ouvi-la. — Cemitério é igual a lixão; a diferença é que, no lixão, há sacos expostos ao sol, enquanto, no cemitério, os sacos são enterrados.
Ficou ouvindo a oposição da esposa, convicta de que o cemitério é um lugar especial...
— Especial para quê? — pensou. — Para que o consumismo continue explorando a ingenuidade dos vivos?
Defendeu sua ideia, dizendo que as pessoas adoram ser enganadas por aqueles que usam púlpitos, crucifixos etc.
— Será que essa trava nunca será retirada? — encerrou o diálogo sem se alterar, consciente de ser voto vencido numa sociedade que acredita no inacreditável.
A curiosidade o faz pular para o último capítulo e se admirar ao ler: “Muitas vezes, o ser humano é determinado pelo ambiente em que nasce e cresce. A topografia, a temperatura e os ventos da região onde um homem nasce podem influir em seu modo de pensar e sentir.” Lembra-se de ter ouvido algo semelhante de um conhecido que morou na floresta. Ele afirmava que a natureza exuberante o fazia pensar sempre de forma grandiosa. Então, perguntou-se se não seria esse o motivo de os muçulmanos cobrirem suas mulheres com burcas. Será que é para inibir pensamentos maliciosos dos concorrentes?
Mais um dia ensolarado o encontra na tarefa de chegar ao final do livro. O diálogo entre Kafka e os dois soldados desertores o faz imaginar que pensar em matar gente é uma criação cultural. Ninguém nasce querendo exterminar ninguém — nem matar, nem morrer —, mas a vontade de possuir algo direciona o querer maldoso para eliminar quem tenta impedir conquistas egoístas. Esses pensamentos, com certeza, são gerados e estimulados no seio de uma sociedade anticomunitária.
Quem não tem paciência para ir aos poucos conquistando recorre às armas, pois elas parecem ser mais eficientes do que vinte anos de estudo. Jovem e temido — eis o sucesso, sem precisar perder tempo construindo lembranças ou esquentando cadeira em bibliotecas.
"O que realmente importa na vida das pessoas talvez seja a maneira como elas morrem...” Essa dúvida do personagem Hoshino o faz parar um pouco para pensar que a morte é um pacto para pôr fim ao próprio sofrimento. É nessa hora que o sofredor se entrega — com a visão debilitada, micção sem controle... Já não se lembra de quem é e, se lhe disserem “você é um grão de areia”, ele ficará em dúvida se não seria melhor ser pó, querendo pegar carona na primeira tempestade que passar.
Na viagem pelas páginas, chegou à de número 400. O capítulo seguinte é deixado de lado até que ele tome um pouco de água. Seus compromissos vivenciados ontem vêm à tona: a reunião com o sócio, a sobrinha dele com dois anos de idade, o espaço grandioso da mansão — e a prova de que está caminhando no tempo há bastante tempo — é confirmada pela prima de rosto cadavérico, aquela que dividiu o velocípede com ele e que agora encontra seu único prazer em observar a neta se alimentar na cadeirinha apropriada.
— Cada um encontra uma maneira de se enganar — pensa ele, incluindo-se nesse rol de “cada um”.
Pega o celular para apreciar pinturas expostas na internet. As obras criadas pelos grandes artistas proporcionam-lhe bem-estar — especialmente Café no Jardim e O Alquimista —, a ponto de pedir à esposa que imprima, em papel de alto padrão, duas cópias de cada. Seu objetivo é afixá-las em pontos estratégicos do apartamento, para poder deter-se diante dessas manifestações de talento.
Depois de onze dias de peleja, ele chega ao final do livro e reflete longamente sobre o termo “Beira do Mundo”, usado por um gato falante que afirma que, naquela beira, todos os seres vivos conseguem se comunicar.
Quanto ao significado de “O Menino Chamado Corvo”, bem, é melhor ir atrás desse segredo que ele preferiu não revelar.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 05.11.2025 - 13h15min.
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