quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DOMINGO SALGADO



 DOMINGO SALGADO


Empurrando um carrinho na praia, o vendedor gritava: "Olha o picolé!" Entre um grito e outro, analisava se a divulgação estava sendo bem feita. Sua tarefa era vender duzentos. Assim, teria condições de comer uma fatia de queijo naquele último domingo do ano.


— Como será a próxima década? — perguntava-se, já pensando nos números que ia jogar na loteria.


Arquitetava o plano de chegar disfarçado ao banco para receber a bolada sem ser assassinado, caso fosse um dos felizardos. Estava um pouco triste com o que dissera um vizinho: o governo usa a loteria para deixar a população esperançosa e esquecer a miséria.


Não se deteve nesse comentário porque seu principal objetivo é conhecer a Lua. Gostaria de ver as crateras, caminhar voando, olhar a Terra e dizer: nasci ali. E, quando voltasse, nas noites de lua cheia, observá-la da praia ao som de um violão acompanhado por uma cantora de ópera. Amanheceria embriagado, chutando as oferendas para Iemanjá, além de contratar um anão para jogá-lo ao mar toda vez que saísse d’água.


Outro sonho era construir um harém com mil concubinas e, quando acabasse o dinheiro, voltaria a vender picolés.


Uma nuvem de tristeza abateu-o ao se lembrar de quando era lutador. Tudo que conseguiu no ringue jogou fora, restando apenas algumas cicatrizes e um olho cego como herança do tempo em que nadava na fama.


Não sabe por que esses pensamentos sempre vêm quando menos espera. Se pudesse, desligaria alguns nervos do cérebro que sustentam essas memórias e os reconectaria para formar novas e boas lembranças.


Os fantasmas das pessoas falecidas o importunam como se estivessem vivas, apontando-lhe o dedo:

— Você fez isso, fez aquilo, deveria ter feito assim...


Se existisse uma forma de estagiar na vida, ele teria escolhido poder errar com a certeza de sempre ter alguém para ensiná-lo a viver.


— Tem picolé de uva? — uma criança tirou-o do devaneio.


Ele abriu a tampa para mostrar os sabores, recitando-os de cor.

— Usem suas mesadas de acordo com o combinado — respondeu o pai do menino ao receber o pedido para pagar.

— Deixe comigo que assumo a conta — disse a mãe.


Um de coco, uva e cajá foi distribuído.


Retiraram-se. O ex-lutador voltou às suas memórias. Sempre estava estacionado no passado e voltava para lá assim que se sentia inseguro. Nem fez conta do apurado, nem teve ânimo para continuar gritando. Viu-se naquela criança, quando pedia ao pai um daqueles que agora vendia.


Talvez tenha sido esse sonho não realizado que o fez escolher esse meio de vida.


Uma moça chegou gargalhando por uma pilhéria dita há pouco por alguém.

— Quero este aqui — disse ela, saltitante.


O pai fingiu que não viu ela se debruçar para pegar um de acerola. A mãe fingiu que não viu o marido fingir que não tinha visto.


— O senhor paga o meu? — perguntou a moça ao marido fingidor.

— Ele está sem a mesada — respondeu a esposa, encarando a sorridente.

— Pode deixar que é cortesia da casa — disse o vendedor, já se engraçando com a bronzeada.

— Ah, muito obrigada. Quem quer picolé? — a moça passou a divulgar o produto.


— Vamos andar por ali que o senhor já, já vende tudo — disse ela. Saíram os dois, areia afora.


A moça, sem ter o que fazer, resolveu experimentar ser vendedora. Sua vontade de aprender fez com que se interessasse em sentir, na prática, como é a vida de um trabalhador que nem aos domingos descansa.


Ali estava ela, saboreando um pouco do trabalho duro no sol quente, em troca de migalhas.


— Quando chegar em casa, vamos conversar — disse a esposa, chupando o de coco.


Uma bola bateu no castelo de areia que a filha havia feito.

— Você aceita? — perguntou a esposa para o garotão que tinha vindo buscá-la.

— Não, ele não aceita — interferiu o marido, respondendo pelo rapaz, que saiu meio sem jeito depois de pegar a bola.


O sol estava a pino quando voltaram para a barraca.

— Traga este prato — pediu a esposa.


Ela nunca disse ao marido, mas essa coisa de dar em cima das mocinhas em sua frente era proceder de quem não batia bem da cabeça.


— Olha o churro! — outro vendedor passou oferecendo também óculos, pulseiras etc.


— TUBARÃO! — gritaram os salva-vidas.


Os surfistas saíram do mar. Um bote dos bombeiros foi acionado para fisgar a fera.


No meio da muvuca, uma criança chorava com uma queimadura provocada por água-viva.


Um banhista passou chamando a atenção por estar sendo seguido por um bode. O bicho já estava acostumado àquele passeio dominical. O rapaz que filmava, ao dizer olá, ouviu um bééé berrado pelo animal, que fazia as vezes de porta-voz do dono.


A maré estava subindo, chegando perto do castelo da menina, que pensava no tubo de creme dental que havia deixado em cima da pia. Era costume dela comer pasta.


— Quando eu chegar em casa, vou me trancar no banheiro e comer até não querer mais — pensava ela, insatisfeita com seus olhos míopes.


Quando a mãe mandava escovar os dentes, ela escovava e engolia tudo. Às escondidas, já botava desodorante.


Acreditava nas tias que diziam: “Já tá uma mocinha.” Quando crescesse, iria para bem longe dos pais, para poder ficar com as duas mãos na cabeça, olhando para baixo, olhos fechados, sem precisar dar satisfação de que estava mapeando o pensamento.


Toda vez que fazia isso, vinha logo alguém perguntar se estava com dor de cabeça.

— Que saco!


A mãe, embaixo da palhoça, disfarçadamente observava sua própria barriga pedindo por uma lipoaspiração.

— Quando eu estiver sarada, ele jamais vai olhar para essas sirigaitas — pensava ela, tomando um copo da cerveja gelada.


O garçom chegou com o almoço e colocou a bandeja na mesa.

— Chegue, crianças.


Ninguém teve notícia se a moça aceitou ou não o convite para morar com o homem do olho cego. Só se sabe que, na semana seguinte, ela estava vendendo óculos e pulseiras em outra praia.


O tubarão conseguiu fugir, levando o braço de um dos bombeiros que tocava tarol na banda da polícia. Ainda no hospital, ele chorava — não por perder o braço, mas porque agora só havia a opção de tocar bombo.


A mulher saiu aborrecida da barraca porque um palhaço vendedor disse:

— Vai querer comprar uma língua de sogra, gordinha?


A menina teve seus óculos quebrados por uma bolada. Chorou, mas logo parou quando se lembrou do creme dental.


O bode morreu afogado, e o garçom levou um seixo.


Feita a avaliação, chegou-se à conclusão de que, nesse domingo, tudo transcorreu na mais pura normalidade.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 08.10.2025 - 08h45min.

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