SALTO SOCIAL
Os pés, andando na calçada, pisaram numa bituca suja de batom. Ainda bem que estavam protegidos por um par de sapatos, número 38, vermelhos e brilhosos. Como de praxe, as pernas os guiavam, enquanto as coxas os censuravam, pois, segundo elas, eles só serviam para cumprir determinações. Uma meia-calça preta compunha o visual por baixo de uma minissaia vermelha.
Os pés pararam, esperando a liberação do semáforo. Ao lado: buzinas, cansaço, raiva... Nem o poste, com sua luz de LED, estava satisfeito. Nenhum pingo de chuva foi pintado no quadro daquela noite — apenas uma multidão de medos permanecia parada pelo relógio das obrigações.
Chegara o momento de atravessar a rua, e o desafio de continuarem se equilibrando nos saltos-agulha persistia. Se não tivessem fugido do altar, talvez nem precisassem andar tanto para encontrar a subsistência.
A noite estava sem lua, sem vagabundos e sem vaga-lumes. Mesmo que houvesse lua, ninguém teria tempo nem vontade para observá-la. O suor escorria de algumas células sudoríparas em seus momentos finais de vida. Dores na lombar manchariam a imagem do exame, caso precisassem provar que estavam lá. Aquela travessia parecia que nunca terminaria. Os buracos no asfalto exigiam concentração. Mesmo assim, um folheto — há pouco nas mãos de uma garota-propaganda do bar ao lado — foi pisoteado. Um chiclete ia sendo comprimido junto com grãos de areia, cacos de vidro e pó de asfalto — tudo isso no solado, sem que se pudesse ver com nitidez.
Outros pés se encontraram naquele passar rápido. Alguns quase machucaram os da frente. Olharam, notando como havia colegas na rua àquela hora. Botas, tênis, sandálias — todos seguiam cumprindo sua missão. Muitos, furados e sem brilho, contrastavam com os comprados ainda há pouco.
Chegaram ao outro lado da avenida. Que rumo tomar? Eles apenas aguardaram a vontade decidir. Seguiram para a direita.
— Será que estamos voltando para casa?
— Não — disse o pé esquerdo, reconhecendo a entrada do hotel onde faziam ponto quase todas as noites.
Uns pés pretos, novatos, lhes barraram a passagem.
— Sou hóspede — mentiu a dona, dando continuidade ao pisado no porcelanato branco.
Pararam sobre a barra da recepção, onde quase não se notava movimentação. Pés masculinos aproximaram-se, apoiaram-se na mesma barra, balançaram-se e tornaram a se apoiar.
Um cão os cheirou, mas foi afugentado por um rápido e discreto bicudo no focinho.
— Ainda bem que não urinou em nós — cochichou o pé que tinha uma cicatriz no calcanhar.
Voltaram a caminhar para uma das suítes do hotel e saíram por volta da meia-noite. No caminho de volta, desviaram-se de água parada e evitaram uma palha de coqueiro seca, além de sentir o atraso de afundar-se na areia fofa do morro. Chutaram a porta empenada, que nunca seria pintada, e entraram em casa.
Foram, finalmente, liberados dos sapatos — não tão brilhosos como no início da noite.
Na calada da madrugada, reuniram-se num bate-papo informal com os dez dedos que tiveram papel importante na condução daquele corpo.
Alguém surgiu.
Ah, era um bicho reconhecido por eles.
— Fique longe da gente.
Na penumbra, a paz reinou novamente, com o bicho-de-pé expulso pela unha do dedão.
Os pés pulsavam e se esfregavam na descompressão. O sossego foi quebrado pela requisição para levarem uma bexiga cheia ao banheiro.
Entre o piso e eles, havia uma sandália de dedo, gasta por um calo surgido do desalinhamento da coluna.
Caminharam e viraram-se. Os joelhos entraram em ação, ajudando-os no alívio do peso, mas não conseguiram evitar o barulhinho na privada.
Na volta para a cama, um dos seus colaboradores bateu na quina. O mindinho, querendo chamar a atenção, foi socorrido pela mão da massagem rápida — que logo o abandonou para puxar o lençol.
Tudo voltou à normalidade.
A minissaia, jogada num canto, reconheceu que sua vida só tinha sentido graças à existência deles: os pés.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 04.10.2025 -10h10min.
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