SINFONIA DO COTIDIANO
Levantou-se tateando pelo quarto escuro. Os olhos sujos viram uma pequena claridade pela janela. Chutou a cama. Soltou um palavrão, junto com o trabalho de esfregar o dedo mindinho.
Acendeu a lâmpada do banheiro. Vou comer, já que perdi o sono. Louça suja na pia. Na geladeira, restos de frutas processadas foram ingeridos com um pouco de mel. O bistrô, servindo de única mesa da casa, agora estava afastado da varanda e coberto com uma toalha curta, onde ele sentou-se e colocou o copo.
O alarme soou. Hora de desligar o fogo. Quando será que aprenderei a descascar ovo cozido? Sentiu ódio de estar limitado por uma frágil película. Pouco sal, recomendara o nutricionista.
Dizem que os bilionários lavam louça como terapia, pensou enquanto fazia o mesmo. Tinha costume de falar sozinho, mas, depois de visitar uma mesa branca, disseram que aquilo era a presença de um ser oculto. Quanta asneira, disse para si por não acreditar naquilo.
Lembrou-se dos sonhos que o visitaram. Trabalhava num circo. Acordou e ficou relembrando o sonho. Seu lado artístico não o deixava em paz. O criminoso nunca mais havia se manifestado, deve ser porque está dormindo sentado, pensou enquanto ligava o piano elétrico.
Tentou acertar as notas de Love Story uma centena de vezes, duas... Diminua o andamento, disse baixinho para si. O erro vem da sua incapacidade de impedir que o pensamento voe para outras paragens.
Levantou-se aborrecido por não controlar as oscilações das ideias. Estava nervoso. Tomou seus comprimidos diários quando o sol já dizia para apagar a luz do estúdio. Sentou-se para escrever. Quando está desorientado, busca aprumar a rotina através da escrita.
Seu olhar deparou-se com uma lata de tinta posicionada num canto da bancada. Pensou em olhar a data de validade, porém sua disposição em permanecer sentado falou mais alto do que a mania em querer saber a idade de tudo.
Deitou-se cansado de tentar acertar o dedilhado. Colocou um documentário para mascarar o barulho da rua e pegou no sono novamente. Está sempre com déficit de sono. Suas ideias o levavam a virar dias sem dormir, e depois esmorecia como se não tivesse força nem para caminhar até a sala.
Acordou com a disposição de acabar de vez com a secura na boca. Suas ex-mulheres haviam lhe dito que já não aguentavam mais seus roncos de boca aberta. Só restava a ideia de amarrar os dentes superiores aos inferiores. Tentou e deu certo. Cortou o fio dental e prometeu amarrá-los à noite. Suas noites de sono eram terríveis.
Saiu para a audição. Lá estava a plateia aplaudindo de pé seus improvisos. Só o que sabia fazer bem. Começava uma música e, por tédio, partia para o improviso. A baixista parou de tocar para ouvir as variações e ver seu sorriso estampado quando entrava em transe, deixando também o baterista confuso.
As pessoas subiram no palco para aplaudi-lo com um aperto de mão. Conversa daqui e de lá, uma garota ficou por perto. Sou sua fã. Que tal uma aula de como improvisar? Sim, pode ser hoje. A noite foi além dos improvisos.
Estava sozinho novamente. Volta e meia, deparava-se com uma formiga. Dessa vez, na rosca de um frasco de soro fisiológico. Só pode ser perseguição. Passou o lençol matando-a. Certificou-se que o inseto havia sumido e despejou o soro no nariz, seguindo a orientação médica. Precisava lavar três vezes ao dia.
Sentiu-se triste. Foi atrás dos motivos. Ah, sim! Não conseguia ficar a esmo. Sentou-se para executar o planejado. Até às doze horas, leitura. Depois, quem sabe, um filme, jantar, improviso. Voltou para casa com a sensação de quem estava boiando. Sem churrascos ou encontros esportivos. A garota ficou de ligar...
Resolveu limpar o BiPAP. Vontade de voltar a fumar, mas sabe que seria mais prejuízo. Fez um vídeo desmontando o aparelho para não errar na montagem depois da lavagem semanal. Colocou o lixo fora, estendeu a roupa. Dizem que quem mora sozinho é porque ninguém aguenta estar por perto. Nem ele mesmo se aguenta.
Passaram-se três dias. A garota do piano ligou. Quero que veja meus improvisos. Encontraram-se na casa show. Ele estava agendado para aquela noite. Ela ficou ao lado, no outro piano. Mandou bem. Uma garrafa de vinho foi aberta no camarim. Quer que eu vá com você novamente? Haja improviso.
Na manhã seguinte, apenas um bilhete: Adorei sua companhia. Vou esperar sua ligação. Levantou-se e se agasalhou. Daqui a pouco o dia esquenta. Precisava de uma roupa de frio. Seu salário estava sem fôlego para chegar ao final do mês. Como iria conseguir substituir seu casaco surrado?
Aquela garota esteticista está me deixando louco. Arrumou-se e foi para a drenagem linfática. É naquele momento que se sente um rei. Hoje teremos um atraso. Odeia quando há atraso. Isso lembra seu raciocínio lento. Foi chamado. Enquanto ela passava creme, ele viajava pelas suas mãos. Segure aqui. O objeto transmite choque das pontas dos dedos dela para o seu rosto. O único momento de estresse. Vontade de abraçá-la, levar para o altar; todavia, seria a décima sétima mulher. Conteve-se e, pela primeira vez, foi embora, sem assediá-la.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 01.09.2025 - 16h04min.
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