quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O BÁSICO - Maria Goretti Borges




O Básico

O que distingue o básico do extraordinário? Essa distinção é necessária? É possível? Há uma interdependência entre esses elementos? Comumente, costuma-se estabelecer contrapontos quando lidamos com dados em perspectivas diferentes.

O básico e o extraordinário seriam como a inspiração e a expiração que, num processo oposto e complementar, são igualmente importantes para a manutenção da vida? No evangelho de Lucas, capítulo 17, a fé é responsável pelo extraordinário: "Se vocês tivessem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam dizer a esta amoreira: 'arranque-se daí, e plante-se no mar'. E ela obedeceria a vocês."

Na mesma parábola, temos o empregado que obedece ao seu senhor, fazendo tudo o que lhe foi ordenado, sem exigência alguma. Nesse contexto, a exemplo do empregado, também nos é feita a seguinte solicitação: “quando tiverem cumprido tudo o que lhes mandaram fazer, digam: ‘Somos empregados inúteis; porque fizemos apenas o que deveríamos fazer’.” Como podemos observar, o empregado fez o básico, o trivial — ou melhor, apenas seguiu ordens. E cada um de nós, no cotidiano de uma vida inteira, nos rebelamos ou apenas cumprimos determinações? Pelo visto, a fé difundida no evangelho de Lucas, capítulo 17, não permeia o dia a dia dos míseros seres.

Mesmo assim, nos deparamos com sujeitos que, submergidos num ideário de crenças e movidos por elas, propagam feitos excêntricos, mirabolantes. O básico, que tanto nos habita, preenchendo espaço/tempo, nos impede de perceber que somos apenas servos inúteis. Em seus versos, o pensador contemporâneo Raul Seixas, discorre, brilhantemente, sobre a condição limitada do ser humano.

“[...] É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa 10% de sua cabeça animal.
E você ainda acredita
Que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social.”
(Raul Seixas)

O extraordinário se inicia pela tomada de consciência de quem se é; da análise de possibilidades e limitações. Conhecer, para amparar as debilidades, ressaltar as forças, formatar o pensamento — dá sentido às palavras! Ideias bem construídas e embasadas se transplantam, provocam transformações. “Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso.” (Melanie Klein)

As ideias entrelaçadas constroem discursos, configuram ideologias. Quando uma figura pública, ciente do poder ideológico de sua obra, faz um chamado, convoca para uma mobilização — a exemplo de Caetano Veloso —, o que dá respaldo a essa convocação não é a pessoa física, o sujeito, mas o conjunto de ideias propagadas ao longo de sua carreira e a crença da identificação de muitos com essas ideias. O paraíso da acomodação nos remete a estágios primários, preliminares onde o outro é proprietário e você, alheio a si mesmo!

O extraordinário está contido na subjetividade — fé, coragem, força, percepção, audácia, perspicácia, criação, no mais que humano, no que extrapola, na dúvida, na polidez do ser.

Num cenário de devastação, a exemplo das guerras, é muito significativa a constatação de que forças, crenças e confiança no outro — até quando não se devia — ancoram pessoas, mesmo nas condições mais inóspitas. Dos danos causados pelas guerras, os da alma são os mais devastadores. Essas, mesmo dilaceradas, encontram amparo na esperança de um novo dia, que se inicia a cada nascer do sol. O novo é sempre radiante e promissor, um fertilizante próspero. Os senhores da guerra são ordinários (xingamento). Extraordinário é o livro de Viktor Frankl — Em busca de sentido.

Quantos adjetivos cabem num olhar? Não sei mensurar. Os olhares, a depender da luz que emanam, podem ser descritos como: olhar de admiração, de tristeza, de desejo, de censura, indiferença, compaixão ou um olhar sem visão... Qual o alcance de um olhar? O quão revelador esse olhar pode ser?

Ao descrever uma imagem, o sujeito revela-se tanto quanto a configuração da imagem por ele captada. João Gilberto, artista brasileiro, ao observar mulheres descendo o morro, falou: “Lá vem o Brasil descendo!” O que podia ser um simples olhar revela a constatação de meio século de história de uma nação (extraordinário).

“[...] Da sua escola é passista primeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
No equilíbrio da lata não é brincadeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira.”
(Moraes Moreira)

Nessa construção literária, o poeta enobrece a força e a resistência de um povo que, através de seus malabares, na arte da sobrevivência, resiste bravamente. O básico também é belo — viva o povo brasileiro que desce e sobe ladeiras, num vai e vem sem fim!


Maria Goretti Borges

18 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, gostei muito! Isso mesmo, a subjetividade movendo o mundo.

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  2. Muito boa reflexão. O que move o mundo é a nossa capacidade de, por meio da palavra, materializar a experiência.

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    1. E você consegue muito bem, um exemplo de ser humano! 👏🏽

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  3. Que texto rico e provocativo! Parabéns, Goretti, muitas ideias surgiram por aqui a partir dessa leitura.

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  4. Fico feliz pela inspiração, muito obrigada! 🙏

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  5. Goretti, excelente texto, podemos caminhar com o básico e o extraordinário na construção contínua do ser humano, no desenvolvimento das suas capacidades, habilidades, ações… sem esquecer a subjetividade inerente ao humano. Como dissociar o básico do extraordinário?

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  6. O “básico” é desprovido de sofisticação, é simples e elementar. O “extraordinário” está fora do comum sendo digno de admiração. Parabéns Goretti você e seus textos são extraordinários. Domingos Sávio

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  7. O extraordinário e o básico, ambos são importantes e necessários para uma vida plena e significativa. Parabéns! 👏👏

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  8. Olá Goretti! Que belo texto… parabéns! Seu texto me surpreendeu quando você fala sobre o olhar, me identifiquei! Telma Rose

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  9. Muuuuito boa essa crônica, parabéns! Por coincidência a palavra de domingo foi esse cap. de Lucas. Dany Borges

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  10. Uau! É muito bom ler o que você escreve, parabéns! Beijos. Maria Clara

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  11. O extraordinário do básico, ambos são importantes e necessários para uma vida plena e significativa. Ao encontrar um equilíbrio entre os dois, podemos viver uma vida mais autêntica e satisfatória. Parabéns minha amada, você é excepcional. Marliete Soares

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  12. Parabéns Goretti!
    Muito boa reflexão, literalmente o novo é radiante e extraordinário, me identifiquei bastante!

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  13. Como sempre os escritos da Professora Goretti Borges são extraordinários e, este não é diferente dos demais. Mais uma vez quero dizer que estou na fila para comprar o seu livro.
    Um beijo simples e um abraço extraordinário.

    Professora Joseni Santos

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  14. Parabéns, excelente texto!!! Da sua irmã marluce

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  15. Goretti, seu texto é uma joia de sensibilidade — você transforma o simples em revelação. Ao ler suas palavras, a gente percebe que o extraordinário não está distante, mas escondido no cotidiano, esperando o olhar certo para florescer. Que belo dom o seu: fazer da reflexão uma forma de fé. Sou sua fã ❤️ Wal

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