ESTANTES SEM AFETO
Depois de um dia de trabalho, o prisioneiro das oito horas chega à casa. Em cada canto, um livro que utiliza como abrigo contra a realidade que detesta. Entre as estantes, reencontra o “Penso, logo existo”, e é nesse pensamento que sente sua existência pulsar com mais verdade. Ali, no silêncio cúmplice das páginas, ele tenta se refazer.
Senta-se no sofá, lembrando da empolgação quando lhe enviam livros que nunca leu, como quem espera uma promessa de salvação impressa. Hoje, ele terminou mais um. Quanta decepção por ter gostado de algo tão óbvio quanto histórias envolvendo fragilidades humanas.
Volta-se para a solidão longe da mulher divorciada. No início, ficou felicíssimo em não precisar fechar a porta do banheiro. Agora, os personagens que lhe faziam companhia também lhe deram as costas. Os livros, que antes serviam de consolo, acusam-no de abandono. A liberdade que tanto sonhou revelou-se um cárcere. Lembra-se de Sartre: “O inferno são os outros”, mas ele começou a desconfiar de que o inferno, na verdade, é a ausência deles.
Esquenta umas batatas, relembrando a chuva na feira; a vendedora gritando promoção; o carroceiro atropelando quem se mete em seu caminho; e o homem de um só discurso sobre o medo que sente em ser traído. São histórias que acompanham aqueles tubérculos. Aí pode estar a razão da existência humana: histórias para serem comidas juntas ao sal da memória. Cada batata carrega uma conversa atravessada no tempo. A vida talvez seja um prato morno de lembranças que, mesmo requentadas, ainda nutrem a alma com algum sentido.
Tinha a riqueza em suas mãos, mas não se dava conta. Quantas vezes trancava-se no quarto em busca da leitura silenciosa. A mulher enfiava-se entre ele e o livro em busca da sua atenção, e ele a expulsava. Queria degustar ideias longe dos assuntos familiares: uma fechadura sem funcionar, a marcação da consulta ou a necessidade de um fatiador de cenouras — tudo isso lhe aborrecia. Achava-se superior por manter diálogos com Dostoiévski, mas era incapaz de perceber o drama existencial ali, de avental e colher de pau, pedindo ajuda com o fogão. Enquanto buscava sentido nos livros, a vida lhe oferecia páginas vivas — e ele, cego de arrogância, virou a cara. Só depois, no silêncio do abandono, entendeu que algumas histórias interessantes estavam no grito que ele se recusou a ouvir.
Chegou a hora de dormir. A cama vazia lhe dá a sensação de final de guerra. Disparos verbais, interrupções do pensamento, o lugar ocupado na pia — não mais existem. Ele está com total liberdade para usufruir, porém falta-lhe a essência que lhe faz um ser social.
A ausência da mulher está influenciando-o mais que qualquer obra literária. A paz conquistada veio com o preço da solidão, e agora ele entende que até os conflitos tinham o propósito de lembrá-lo de que era um Homo sapiens. Dormir virou sinônimo de espera pela volta daquilo que ele deixou escapar, pensando ser um incômodo.
Amanhã, o sol o encontrará com o olho sujo de lembranças que se recusam a partir. O alarme, empurrando-o para mais uma jornada de trabalho, despertou. Levanta-se cabisbaixo, querendo ser o chinelo que o aguardava aos pés da cama. Já não tem sentido abrir os pacotes que se amontoam no chão da sala. Caminha para o banheiro. Tem medo de ver no espelho um estranho que ocupa sua vida sem pedir licença. Lava o rosto, querendo que a água leve embora aquela alma carente. E então fecha-se dentro de si e vai para o trânsito ocupar o lugar de mais um sem rosto na multidão.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 30.07.2025 - 06h30min.
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