SILÊNCIO NAS EXPECTATIVAS
No final de uma noite clara, a jovem se deu conta do quanto sofria. Olhou para o dorso da mão e passou a observar algumas pintas pretas que davam um charme especial ao seu antebraço. Aquilo era de nascença — tanto as pintas quanto a habilidade de refletir sobre as perspectivas de futuro.
— O que está reservado para mim? — perguntava-se, no momento em que apagava do caderno algumas profissões que jamais seguiria. A natureza não lhe havia presenteado com o dom de cantar, tampouco de tocar um instrumento musical, então não seria sensato fazer um curso nessa área, mesmo tendo escutado de um professor que bastava treinar.
— Ele queria era ganhar meu dinheiro — lembrou-se de ter pensado, à época.
Abriu a janela para ver se a lua lhe serviria de gatilho para novas ideias. No celular, viu a foto do bebê que fora, posando no braço da mãe com a mesma lua ao fundo. Sobre a escrivaninha onde estava o computador, havia cadernos, uma xícara de café e canetas, com as quais anotava os possíveis pontos de partida para uma vida cheia de compromissos.
Releu, na agenda, que precisava perder algumas gramas, mesmo que o apetite a chamasse em direção à geladeira. Resistiu. Enquanto tomava água, uma mulher foi atropelada em frente à varanda do seu quinto andar. Lá embaixo, uma pequena multidão de curiosos fazia o papel de atrapalhar o trânsito.
— E se eu fosse a vítima? — pensou. Preferiu sair do campo de visão do acidente e se concentrar nas próprias dúvidas, em vez de puxar fios de possibilidades nos problemas dos outros.
Sentou-se na cama, lembrando-se de uma frase do psicólogo:
— O seu problema é que você não tem ambição.
Mesmo tendo consciência de que não precisava de excessos, sentia a necessidade de preencher seu tempo com atividades que lhe dessem a sensação de pertencimento.
Sua coordenação motora a deixava para trás até mesmo em jogos eletrônicos; portanto, seguir a carreira de atleta também estava fora de cogitação.
— Vá dormir, minha filha! — escutou a mãe gritar lá do quarto.
A partir de amanhã vou começar a mandá-la fazer o mesmo, pra ver se ela acha bom!, pensou, ao fechar a porta da suíte.
— Não estava com sono, e mesmo assim teria que dormir? Santa paciência... — murmurou. Se fizesse os gostos da mãe, seria uma boa menina; porém, se permanecesse com a lâmpada acesa, seria má para a mãe e boa para si mesma.
— Será que é sobre isso que a Bíblia nos fala? Deus e o Diabo numa só pessoa?
Voltou-se para si e percebeu que permanecia andando em círculos. A cada dia surgia um novo desafio, e ela precisava replanejar tudo a partir do zero, como se fosse o pontapé inicial de um campeonato. Queria ser como as pessoas que não estão nem aí, mas sua mente não a deixava em paz. A cada nova mudança em sua rotina, um turbilhão de possibilidades surgia. Talvez fosse assim porque sempre buscou seu próprio caminho.
Ultimamente, vinha sendo cobrada por não ter namorado nem amigos. Suas colegas mais velhas já iam a festas — muitas até mantinham relações como se fossem casadas — e ela sabia disso porque frequentava uma série três anos à frente de sua faixa etária.
— Aonde foi que errei o caminho? — perguntava-se, sem entender a pressão para seguir esse padrão social do “tamo junto”. O pior era que não conseguia se soltar, por mais que se esforçasse.
Deitou-se no sofá para pensar com os olhos fechados. Era assim que tentava se acalmar. A noite já se transformara em madrugada, e ela não pregava o olho. Sabia que existiam milhares de pessoas naquela mesma situação de alerta noturno.
No grupo da insônia, as mensagens corriam soltas:
— Olá, grupo. Há alguém acordado aí?
— Estou triste... meu gatinho morreu.
— Galera, vcs viram a briga hoje no pátio?
— Acordei agora com um tiroteio aqui perto da minha casa, tá ligado!
— Se alguém souber notícias do meu gato poste no grupo.
— O namorado de Sofia trocou ela por outra, vocês souberam?
— Passei de ano. Agora vou para o ensino médio, uhuuuuu.
Desligou o celular e voltou a ficar quieta. O lado bom daquele grupo era que servia de consolo para quem achava que só ele tinha problemas.
Considerava certo que, se um dia fosse mãe, seria um desastre. Até um cãozinho que os pais lhe deram no aniversário de dez anos ela não conseguiu cuidar. Depois de um certo tempo, o animal foi doado, em um dia em que ela estava assistindo à aula. Quando chegou do colégio e soube da doação, ficou muito contente por poder voltar a usar o espaço para armar uma rede e navegar sossegada pela internet.
Há poucos dias, notou que seu corpo apresentava um crescimento acelerado, diante da transição de criança para adolescente. Preocupada, passava horas medindo-se, fazendo estatísticas com atenção redobrada, focando nas proporcionalidades entre o tamanho das orelhas, do nariz e da testa, até dar o veredicto: era uma pessoa feia e deselegante — apesar de os meninos da sala dizerem o contrário.
Se continuasse a crescer, talvez pudesse ser modelo, porém lembrou-se das medidas exigidas para a profissão. Não era burra para acreditar que cresceria mais do que seus pais.
Foi à cozinha à procura de um descascador de cenouras, pois escolhera esse legume como substituto do pão. Sua atenção foi desviada por um barulho no quarto; contudo, já sabia do que se tratava. Pensou, com um ar de cinismo: "Aí estava a razão por que mamãe se preocupa tanto em me mandar dormir cedo."
Para não se explodir com tantos pensamentos, resolveu apagar a lâmpada do banheiro. O escuro total tinha o objetivo de treinar como seria o banho de uma pessoa cega. O sabonete teve que ser encontrado com os pés, pois parecia que as mãos tinham pequenos olhos — e eles deixavam tudo cair ao perceber a escuridão.
— Deve ser o medo de não encontrar de novo o que se perde por estar, literalmente, às cegas.
Desde pequena, pensava em ser uma boa pessoa. Mas, pelos seus cálculos, isso era impossível. Quando agradava alguém, sentia-se injustiçada e quando dizia que não concordava com alguém, causava-lhe mal-estar.
Finalmente, adormeceu. Ouviu-se batidas no banheiro e na cozinha. A casa estava acordando. Passos em sapatos de couro fino denunciavam a classe da família; Rolls‑Royce Droptail na garagem com guardas zelando pelo sossego da família, justificava a correria do pai para suprir o padrão de vida — o mesmo padrão que deixava a filha aflita por não ter certeza se conseguiria mantê-lo depois que saísse de casa.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 18.09.2025 - 09h15min.
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