domingo, 24 de agosto de 2025

A CABEÇA-COSMOS

 


A CABEÇA-COSMOS


Para a maioria, uma colher de inox seria apenas isso, mas para ela: O metal veio do Brasil ou da China? Alguém precisou escavar a terra, arrancar esse minério da rocha com máquinas barulhentas. Quantas pessoas se envolveram para que essa colher estivesse aqui agora?

Ela apertou a colher contra o polegar. Lisa, fria. Como moldaram isso? Teve um forno gigante. Provavelmente um trabalhador suando próximo às chamas, cuidando para que o molde saísse perfeito. E depois a prensa... o polimento...

Imaginou o engenheiro que desenhou a curvatura ideal do cabo — quem sabe, até odiasse sopa, usasse cueca samba-canção ou tivesse orelhas de abano. Visualizou a reunião de marketing que decidiu qual embalagem faria essa colher parecer mais chique. Pensou na mulher da linha de montagem que empacotou o talher, com uma mão calejada, ouvindo rádio, menstruada, sem nem se dar conta de que o produto do seu trabalho estava indo parar numa cozinha do outro lado do planeta.

Mariana, então, lembrou que precisava apenas mexer o café. Só isso. Mas, ao olhar para o líquido escuro no fundo da xícara, começou tudo de novo: a plantação de café, o agricultor, a chuva, o solo, a logística.

Pensar era um espetáculo mental constante e inevitável. Enquanto uns viviam, ela destrinchava. Queria ver o mundo como ele é — e não como ele foi, ou poderia ter sido.

Entre um gole e outro, percebeu que, no meio do caos mental, havia uma forma de poesia. Porque, ao exagerar no pensamento, Mariana transformava qualquer objeto banal em um universo inteiro, perguntando-se se era assim com todo mundo. Será que as pessoas também paravam diante de uma pedra na rua e pensavam em placas tectônicas e eras geológicas? Ou será que todo mundo apenas chutava a pedra e seguia o caminho? Era uma dúvida que nunca perguntava, com medo de descobrir que ela era uma das que viviam mais na hipótese do que na prática.

Na faculdade, os professores diziam que ela enxergava demais. Mariana até que tentava ser rápida, prática, eficiente, porém era como colocar um oceano dentro de um copo: acabava transbordando.

Uma vez, chorou olhando um botão de camisa, desses simples, de plástico branco. Imaginou a fábrica que o produziu, o plástico que um dia foi petróleo que estava embaixo do mar, por milênios. E agora ali, no chão do quarto, esquecido. Pensou em como tudo que existe é o fim de uma longa cadeia de coisas que não vemos, e isso a comovia mais do que deveria.

As pessoas diziam que ela era um tipo de telescópio voltado para dentro. Enquanto todos olhavam para fora, ela descia camada por camada nas coisas simples, até encontrar o mistério escondido ali. Era uma arqueóloga do cotidiano. Embora se cansasse desse pensar constante, também não saberia viver de outro jeito.

Naquela noite, ao escovar os dentes, se pegou encarando a escova como se fosse um monumento. E lá foi ela de novo: o plástico colorido, as cerdas, a indústria, o marketing, o design anatômico, o flúor, o dentista, o capitalismo. Riu sozinha. Pensar demais era solitário, mas também uma forma de companhia, porque, em sua mente, tudo ganhava história.

Por mais que tentasse escapar, a mente era um rio sem comportas, por isso que Mariana escrevia. Nos cadernos empilhados em sua estante moravam as palavras que o mundo não ouvia. Era ali que ela guardava o excesso de realidade que via nas coisas. Cada linha era um desabafo disfarçado de descrição.

Poucos entendiam seu jeito. Os amigos a chamavam de “intensa”. Já os antigos amores costumavam se afastar depois de um tempo, como quem percebe que está diante de um espelho que mostra demais. Você complica o simples, diziam, mas Mariana nunca achou o mundo simples. E talvez fosse exatamente a recusa em aceitar que as coisas "são só o que são" o que a tornava tão complexa.

Certa vez, num encontro, pegou-se olhando fixamente para uma taça de vinho enquanto o pretenso namorado falava. Ela via o vidro como um milagre: areia derretida, moldada, resfriada; o vinho, um líquido de uvas fermentadas, cultivadas sob sol, colhidas por mãos, pisadas talvez ainda como nos tempos antigos. Aquele gole continha civilizações. Terminou o encontro sozinha.

Mesmo assim, Mariana seguia. E, no fundo, não queria curar-se desse "exagero". Porque pensar demais era, para ela, uma forma de amar as coisas pequenas, os detalhes invisíveis, os fios que conectam o agora a tudo que veio antes. Viver sem pensar seria mais leve, sim, mas também mais raso. E Mariana, com toda sua profundidade silenciosa, sabia que nascera para mergulhar — mesmo que fosse no fundo de uma colher.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.08.2025 - 08h17min.



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