PREGUIÇA REFLEXIVA
— Hoje não estou a fim.
— Não tem isso de estar ou não a fim. É o seu trabalho. Vamos, vamos, comece.
— Posso escrever o alfabeto?
— Não. Isso não. Escreva um texto inédito, que possa ser considerado literatura.
—Iiiiih! Agora complicou. Vamos fazer um negócio: desconte aí no meu salário, porque hoje quero só ficar nas redes sociais, vendo as mulheres dançar.
O chefe saiu, e ele ficou pensando em como fazer cumprir o contrato. Quando escrevia de acordo com sua disposição, era bom; agora que virou obrigação, ficava contando os dias para voltar a ser livre.
“Acho que essa indisposição tem a ver com a minha derrota ontem no tênis”, disse para si. “Eu sempre vencia com facilidade aquele cara, mas depois que ele trocou de professor... Agora, como vou administrar o meu ego treinado para vencer?”
Essa trava continuava fazendo-o ficar sem pensar. Daqui a pouco, ia precisar tomar remédio para pressão alta. “O que não faz um ego ferido”, pensou. Sentiu raiva e impaciência com o que lhe veio à mente. Dobrou o joelho esquerdo, sentindo-o fatigado. Gritou um palavrão — ou melhor, vários.
Nessa hora, despertou-lhe a curiosidade sobre a função do palavrão no dia a dia. “Isso daria uma tese de doutorado em psicologia”, pensou, percebendo que acabara de encontrar o que procurava. “Depois vejo isso”, disse, e voltou para suas dançarinas em trajes minúsculos.
Uma das tatuadas contou que o marido tinha três mulheres — ela, hétero, e duas bissexuais — e foi explicando como era o relacionamento.
A cada dia surgem novas conversas: antes restritas a sussurros, agora abertas a todos, analisou ele ao passar a página.
O braço continuava com epicondilite — nome bonito para uma dor terrível no cotovelo. A esposa ligou, dizendo quantas séries tinha feito puxando ferro. Durante o telefonema, descobriu que o maior desafio é ser ouvinte: dar atenção aos outros quando se quer apenas ficar só é a comprovação de que a pessoa dispõe da mais alta tecnologia cerebral.
Pouco tempo depois, recebeu uma mensagem do chefe:
— “Posso ligar para você?”
— “Sim.”
— “Rapaz, estou me separando. E, como você alugou aquele nosso apartamento, gostaria que fosse testemunha de que fui eu quem fez, com meu dinheiro, a reforma no imóvel. Ela nega. Diz que não, que foi ela.”
Conversaram sobre a dor da separação até que...
“Vou desligar porque tenho uma reunião com a governadora”, disse o chefe, que havia desenvolvido vitiligo. Será que a mulher estava se separando dele ou do vitiligo?
Levantou-se, foi à varanda e pensou em armar a rede. “Dá muito trabalho”, disse, ao se deitar no sofá.
Seu oponente mandou uma mensagem: “Mestre, vamos jogar hoje?” “Estou sem grana para pagar o aluguel da quadra”, respondeu, querendo apenas ficar descansando. Essas cobranças o matavam.
Preferia se empenhar para ultrapassar os competidores do Duolingo. Desconfiava que eram todos criados por IA, pois acordou às duas da manhã e nenhum ponto havia sido acrescentado no placar. Quando começou a jogar, os outros também o fizeram. Esses aplicativos são cheios de pegadinhas.
Baixou um do shopping que dava desconto no estacionamento. No segundo acesso, já não funcionava. Desinstalou, voltou a instalar — e o desconto foi concedido.
Já era noite quando a recepcionista combinou para que ele cobrisse a saída dela mais cedo. Uma das amigas trouxe um bolo, que ele acabou comendo também com a substituta que veio cobrir a última hora do expediente.
Depois, foi para a casa da mãe comer bode cozinhado. No caminho, achou que seria melhor comer cabra — só que ninguém come cabra: a tradição é dizer “comi bode”, mesmo tendo sido uma cabra a assassinada pelo açougueiro e exposta para venda. O machismo, mesmo aplicado de forma negativa, prevalece.
Na verdade, ele era um pouco canibal. Quando observava uma pessoa, sempre imaginava que ali estava uma grande porção de proteína. Aquela proteína assumia cargos públicos, às vezes era atleta etc. Guardava seus pensamentos impróprios para si, pois chegava a pensar que, nos abrigos, viviam bodes velhos prontos para ser devorados pelos mais fortes, caso houvesse uma hecatombe nuclear. No olhar de um tigre, toda a humanidade não passa de proteína.
No dia seguinte, estava satisfeito com a vitória no tênis. O bode fora superdelicioso; aprendera a burlar os inimigos do Duolingo reiniciando o celular toda vez que acabava de jogar.
Se o chefe ficou insatisfeito com esse texto, aí estava a razão de a mulher ter fugido de casa, pedindo divórcio: pois é, chato de carteirinha ninguém aguenta.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 11.10.2025 — 13h21min.
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