quinta-feira, 18 de maio de 2023

BEM ANTES DO QUE SE IMAGINA



BEM ANTES DO QUE SE IMAGINA


Estava escuro, escuríssimo, dando a impressão que todos estavam cegos. O vento, "com cheiro de chuva," vinha, sorrateiramente, invadindo os narizes dos que estavam naquela mata. Muito silêncio a ponto de pensarem que estavam surdos. Num instante, um odor de mata queimada substituiu o anterior. Surgiu claridades verdes de vagalumes se aproximando, não, não era verdade, tinha sido apenas ilusões criadas pelo desejo de se ver algo. 

Continuavam esperando sem saber porquê. Foi ouvido um barulho abafado. Quando foi isso? Ontem. Ontem estávamos aqui e eu não ouvi. Então foi anteontem, ano passado, há dez, ou mais milhões de anos, não sei dizer. Realmente, essa escuridão nos fez perder a noção do tempo. 

Posso sentar-me? Acho que não tem onde. No chão. Não existe chão. Isso que estou pisando é o quê? É o escuro. Estamos pisando no escuro, vivendo no escuro e somos a própria escuridão. Você se lembra como é a luz? Obrigado pela pergunta, mas nunca tive esse privilégio de saber.

Mesmo de pé, não se sentiam cansados. Uma pausa longa se fez entre eles. Não tinham assuntos e resolveram continuar esperando que alguém os tocasse com o pensamento. Suas almas precisavam ser reativadas. Agora sabiam pelo que esperavam. A lembrança deles acionava um fio conectado com o “outro lado,” entretanto ninguém se lembrava deles para reativá-los, já que ainda não haviam construído nem destruído coisa alguma.

O que faço da vida? Você não tem vida. Como assim? Tudo que você faz é deglutir as horas e esperar por uma “saída para onde não tem entrada.” Isso está além da compreensão terrena. Não me diga que estou morto!? Estamos inertes. Sente dor? Não sei o que é isso. Então relaxe e viva a sua inércia. E eu vou ficar aqui sem sentir? Nem decepção. Estamos na fase da esperança. Aqui, nem de conselhos precisamos, pois o perigo ainda não nos alcançou.

Abriu-se outra janela, e nessa havia claridade mostrando uma multidão de gente em pé. As sensações haviam sumido naquelas pessoas paralisadas pela coragem. Era tanta coragem que o medo nunca se aproximara, mesmo assim, eles continuavam estacionados num deserto. Sem frio nem calor, a diferença do padrão da mata consistia em estar cobertos de luz e com a consciência de permanecer sem fazer absolutamente nada, até que decidissem se alistar nos conglomerados que utilizavam o pensamento coletivo para construir mundos. Uma voz direcionava a atenção dos pensantes e assim cada item ia sendo formado. Não tinha escapatória. Ou ficava trabalhando com o pensamento ou ficava vagando sem utilidade, coisa que fugia do objetivo da criação. 

Com a prática, poderiam ir tirando um pouco de luz para si. O pagamento era em feixes como se fosse uma estrada pronta para se caminhar. Às vezes esses feixes se dividiam gerando novos brilhos, e quando isso acontecia o pensador necessitava abrir mais estradas para que as divisões pudessem trafegar. 

Destrancada a última janela, viu-se o mundo todo construído. Nele foi percebido dores e imperfeições. Cada lugar estava com uma aparência resultante das infinitas mentes que opinaram de como deveria ser. Alguém quis voltar arrependido de ter se habilitado para estar num mundo bastante controverso, mas já era tarde demais. Suas dúvidas não foram perdoadas, por isso permanece, até hoje, dividindo-se em bilhões de feixes humanos, como forma de punição.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.05.2023 – 14h15min.



2 comentários:

  1. Bem antes do que imaginamos, Heraldo produziu mais um conto, dessa vez intrigante e reflexivo. A narrativa descreve a sensação de estar perdido na escuridão, sem noção de tempo ou espaço. As interações entre os personagens despertam questionamentos profundos sobre a existência e o propósito da vida.

    A mensagem final sobre as imperfeições e dores do mundo, representadas pela punição do personagem arrependido, nos convida a ponderar sobre as escolhas que fazemos e as consequências que enfrentamos. - Gilberto Cardoso

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  2. Ok, Gilberto. Hoje, dia 20, foi que vi seu comentário. Por descuido não comentei sua participação. Agradeço suas intervenções sábias.

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