sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O PODER DA LEITURA - ENTREVISTA COM THIAGO GONZAGA




 
 

O PODER DA LEITURA - ENTREVISTA COM THIAGO GONZAGA

 (Entrevistador: Gilberto Cardoso dos Santos)

 

1.      Caro Thiago Gonzaga, sua história é muito linda; por isso eu o convidei para dar-me essa entrevista. Tenho certeza que ela servirá de inspiração, trará luz a muita gente. Hoje você tem destaque na cultura potiguar e é de grande importância pra nossa literatura. Gostaria que a princípio nos falasse de seus pais; de como foi sua infância, dificuldades que teve e lugar onde nasceu.

Sou filho de pais analfabetos, uma família de origem humilde, procedente de pequenos distritos, onde era cultivada a cana-de açúcar, na cidade de Ceará-Mirim.  Quando eu era criança, minha mãe me contava histórias dos meus avós, que trabalhavam nos engenhos na região, e contava também histórias dos avós dela, relatando-nos que eram negros. Hoje compreendo, que talvez, fossem escravos, que vieram para a região do vale de Ceará-Mirim, justamente por causa do plantio da cana.

Meu pai faleceu, AVC, quando eu tinha menos de sete anos de idade, e minha mãe, que já trabalhava de empregada doméstica e lavadeira de roupa, teve que se virar para criar os três filhos.

2.      Também na adolescência passou por tempos difíceis? Era um jovem analfabeto ou semialfabetizado? Como era a sua vida e em que é que trabalhava? Quais suas perspectivas e angústias que sentia?

Devido a morte do meu pai, eu tive que começar a trabalhar muito novo, as dificuldades eram imensas, mas são as mesmas que centenas de brasileiros vivem todos os dias. Morávamos num bairro chamado Cidade Nova, na periferia de Natal. O local estava começando a ser habitado por pessoas que vinham do interior do Estado em busca de emprego, porém era gente sem profissão, ou até mesmo sem melhores perspectivas de vida, e começaram a viver dos dejetos do lixão da capital que ficou implantado lá durante muitos anos e era exatamente pelo lixão que o bairro ficou conhecido, “Cidade Nova, o bairro do forno do lixo”. O lugar não tinha estrutura alguma, e se assemelhava muito a uma favela, com muitas casas improvisadas, muito mato, muita lama, e urubus planando no céu.

Eu nasci e me criei nesse bairro.  Tenho bem guardadas na memória as melhores lembranças da infância. Lá eu subia em mangueiras, pulava nos galhos, saboreei todo tipo de frutas tiradas das árvores, como caju, goiaba, abacate, jaca, laranja, corri muito na areia, subia nas dunas, soltava pipa, e claro, não percebia, nem sentia, por ser muito novo, o sofrimento que afligia aquelas pessoas diariamente em busca do pão de cada dia.

Cidade Nova é para mim um quadro na parede, porém, ao contrário da Itabira dos versos de Drummond, não dói.

Cidade Nova foi uma espécie de refúgio para os moradores  que  tinham vindo do interior, querendo conseguir residências na recém- inaugurada Cidade da Esperança, conjunto habitacional criado pelo governador Aluízio Alves, no início dos anos 60. Mas, por não haver mais casas disponíveis, os que vieram em êxodo, abriram uma estrada entre dunas que cercavam a Cidade da Esperança e começaram a construção do bairro que iriam denominar de Cidade Nova. Meus pais chegaram ali bem no inicio, faziam parte dos primeiros moradores, compraram um terreno para pagar de modo parcelado, era uma área relativamente grande para as condições financeiras deles, dava pra construir até quatro pequenas casas, mas como eles não tinham recursos, fizeram  somente uma casa bem pequena, de barro, na parte da frente, e cercaram o terreno com paus e arames. Guardo tudo isso bem vivo na memória.

3.      Mas veio a grande mudança, como já sei de antemão. Conte sem poupar detalhes o momento da virada. Fale do saco de livros que mudou sua existência. Em que ano isso se deu e que idade então tinha?

O momento da “virada” na minha vida, digamos assim, aconteceu justamente quando minha mãe, trouxe uma sacola com livros usados pra nossa casa. Morávamos numa residência tão humilde que, pra você ter uma ideia, nem uma bíblia tínhamos, coisa que geralmente toda casa simples possui. Era início dos anos 2000, estávamos às vésperas de ter o melhor governo que o nosso país já teve, e eu claro, como todos os nordestinos, fui bastante beneficiado pelo Governo Lula. A economia andava bem, entrei para o EJA, e partir daí, comecei a comprar livros nos sebos de Natal, e a ler compulsivamente.

Eu tinha por volta de 22 anos, quando voltei aos estudos. Vale reforçar que minha mãe, sempre foi muito cuidadosa e preocupada com a criação dos filhos, sobretudo em meio à violência que vivíamos, num bairro, com índice muito alto de brutalidade; drogas, roubos, assassinatos, mortes. Preocupada em nos proteger disso, ela, não se atentou a incentivar os meus estudos, até pelo próprio fato, de não ter estudado, portanto, não compreendia a importância da escola. Mas, a educação básica, do lar, nos deu, nos ensinando a dar um bom dia, por exemplo, a se comportar na casa alheia, etc. Com certeza nos salvou do crime, sua postura firme e preocupada com a nossa segurança e bem estar, dentro das limitações financeiras da época. Por não ter afinidades com os estudos e também por ter que começar a trabalhar muito jovem, larguei a escola e não tinha vontade nem estimulo pra estudar, pelo menos formalmente até meus vinte e poucos anos.


4.      Creio ter sido penoso tornar-se um autodidata, enfrentar páginas e páginas difíceis de digerir... ou estou equivocado? Quanto à promessa que fez, foi tentado a desistir? E como foi que a família encarou sua decisão?

Embora eu não frequentasse escola, eu era um jovem muito esperto, então tinha e fazia minha própria leitura do mundo.  Eu, por exemplo, sem ninguém me ensinar, “filosofava” sobre muitas coisas: por que estamos aqui?, o que existe além das estrelas, como um só Deus ao mesmo tempo é três?  Enfim, era uma criança e adolescente muito inquieto, que embora não lesse livros, gostava muito de ouvir Caetano Veloso, Chico Buarque, Belchior e Zé Ramalho, gostava muito de filmes clássicos e de apreciar telas dos grandes pintores.

5.      Tenho curiosidade de saber quais livros havia no saco que lhe foi dado. Por qual tipo   de leitura passou a nutrir amor?

Pelo fato de minha mãe ser empregada doméstica, muitas vezes ela recebia da patroa coisas diversas, já usadas, para trazer para casa, roupas, sapatos, tênis, brinquedos e sobras de comida.... Mas, o que marcou foi o fato de, um dia, após uma faxina ela ter recebido uma sacola de livros, trouxe pra casa, o pacote me despertou atenção e a partir dali eu dei início a minha jornada no mundo da leitura. Lembro-me bem que, no pacote, havia os livros  História da Cidade do Natal, de Luís da Câmara Cascudo, O Caçador de Jandairas, de Manoel Onofre Jr, A Botija, de Clotilde Tavares, além de livros de Carlos Fialho e Pablo Capistrano.  Então, daí, começou a surgir em mim uma necessidade de conhecer o conteúdo dessas obras, que eu achava as capas tão bonitas.                                                                                                                                                                                                                                                                                      

6.      Quando veio a perceber que estava progredindo e a ver que valia a pena se dedicar à leitura?

Quando adulto, quando já tinha comprado bastante livros, em sebos da capital, e lido boa parte deles, senti que era hora de fazer um supletivo, EJA, Educação de Jovens e Adultos, pois, a princípio eu imaginava, que, com um diploma escolar na mão, eu conseguiria um emprego melhor, já que muitas vezes eu vivia de trabalhos informais, ou seja de “bicos”.  Quando comecei a tirar notas muito altas nas provas da EJA, eu percebi que tinha bastante potencial para os estudos formais. Passei três anos no EJA, até decidir que era tempo de fazer o vestibular, ENEM.

 7.      Que obras em sua vida, profundamente marcantes, ainda hoje são lembradas?                             

Eu lia muito, teve uma época, que praticamente lia uma obra por dia, se fosse um livro pequeno, e como ficava bastante tempo desempregado, isso fez com que cada vez mais eu me deslumbrasse com o universo que os livros me traziam, era um mundo novo. Li muita coisa da literatura produzida no Rio Grande do Norte e não vou citar nomes para não ser injusto e deixar alguém de fora.  Porém, se tratando de literatura universal, lembro, de como me impressionou a leitura dos romances de Eça de Queiroz, os livros de Shakespeare e Drummond, além dos que me marcaram para sempre, como Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez, Dom Quixote de  Miguel de Cervantes, A Divina Comédia de Dante Alighieri, e de uma maneira muito forte, Moby Dick, um romance do escritor estadunidense Herman Melville. Essa obra pra mim metaforizada pela fúria de um homem em buscar de matar uma baleia, era a perfeita simbologia da fúria do homem  e seus questionamentos contra o criador. Capitão Ahab era eu, e a  Moby Dick era um deus.

        

8.      É importante destacar as oposições sofridas pelos que não percebiam a importância de seus atos.

Estudar e ler para mim era um ato solitário, pois como não tinha ninguém com formação superior na família, eu não tinha, digamos assim, um modelo a seguir. Além do que, meus amigos também não estudavam, e boa parte deles, ainda na adolescência, terminaram indo para o caminho da violência, uso de drogas, roubos, assaltos, prisão, e por fim, morreram; os que escaparam, viviam e vivem até hoje, de trabalhos informais, vendendo balas, picolés, lavando carros, serventes de pedreiros....

 

9.      Descreva os passos que deu rumo à universidade. Tinha metas definidas do que pretendia ser? Conseguiu ser aprovado no primeiro ENEM que fez? Sei que houve um contratempo quanto à escolha do curso. Por favor, fale a respeito.          

Concluído o EJA, e notando as afinidades que eu tinha com a palavra e com o texto literário, eu pensei em fazer o ENEM,  procurei saber como funcionava,  e me preparei em casa, lendo meus livros, uma biblioteca que na época, já passava de mil livros, com os mais variados temas. Eu  pensei em fazer Letras, pelo fato da aproximação com os livros, e também por ver no curso, uma possibilidade de ter uma profissão, já que eu passava dos 25 anos e não tinha nada certo na minha vida. O fato de ser filho de pais analfabetos me fez idealizar também que fazer uma graduação em letras representava o paradoxo dessa questão.

10.  É significativo ver seu braço tatuado com o nome LETRAS escrito, isso é um gesto de amor! Fale da admiração que nutre por esse curso.

Eu amo o curso de letras, gosto muito da profissão que escolhi, todavia tenho que reconhecer que o curso é mais voltado para área técnica, profissional, o que é perfeitamente normal. Mas se o aluno for um bom leitor, ele vai , com certeza unir o útil ao agradável. É por isso, sabemos, como em todas as áreas, existem aqueles profissionais que apenas querem o diploma, enquanto outros se dedicam à literatura de corpo e alma. E é por isso também, por causa da leitura, que existem dezenas de pessoas, mais capacitadas intelectualmente, do que as que fizeram letras, ou outro curso superior ligado às artes.  Então para mim, letras se tornou muito maior do que o próprio curso, virou uma espécie de simbologia do que eu era, e aonde eu tinha chegado pelo simples fato de gostar de ler.



11.  Ainda não satisfeito com o progresso alcançado, continuou a galgar as alturas do saber. Tornou-se mestre e pretende chegar ao doutorado!

Na Faculdade notei que pouca gente se interessava pela literatura produzida no Rio Grande do Norte. Certa vez a professora perguntou o nome de três poetas do Estado e ninguém soube responder; a partir daí, coloquei em mim, uma espécie de missão, de apostolado: divulgar a literatura potiguar para a nova geração. Na época, fiz um blog chamado “101 livros do RN, que você precisa ler”, e foi enorme sucesso, chegando a ter mais de dois mil acessos por mês, 14 mil acessos por ano. A partir daí também notei que eu precisaria me especializar cada vez mais nessa área se era mesmo isso que eu queria fazer. Portanto os estudos na pós graduação foram uma consequência natural do trabalho que eu já fazia como pesquisador. Fiz especialização em Literatura e Cultura do Rio Grande do Norte, além do mestrado, e estou inscrito agora para o doutorado.

12.  Hoje você tem destaque no espaço literário. Fale de suas ações em prol da literatura.

Acredito que hoje fazemos um trabalho relevante, mas sempre com os pés no chão e a cabeça no futuro. Não esperamos glórias, nem aplausos de ninguém na atualidade. Temos consciência que estamos deixando algo de valor para as futuras gerações. Seja na da Revista na Academia Norte-rio-grandense de Letras, da qual sou editor, e fui convidado pelo diretor da revista, o escritor Manoel Onofre Jr. que lá em 2013, notando meu interesse pela literatura local, me convidou para compartilhar essa missão com ele, e já são quase trinta edições feitas, em 7 anos de atividades ininterruptas da revista, que é lançada a cada três meses. Vale lembra que ao todo são 64 edições, na revista que já está com 69 anos, é um marco pra cultura literária do Rio Grande do Norte.

Além da revista, fazemos vários outros eventos, seja a Academia nas Escolas, projeto da Academia Norte Rio-grandense de Letras, que leva um pouco da história dos seus patronos para os mais jovens, o projeto social Caravana de Escritores Potiguares, de que sou organizador e funciona também desde 2013, que já distribuiu mais de cinco mil livros gratuitamente para estudantes de todo o Estado, e os livros que publico sempre em prol da divulgação dos nossos autores. Como, por exemplo, “Presença do Negro na Literatura Potiguar & outros Ensaios, “Os Grãos- Ensaios Sobre Literatura Potiguar Contemporânea”,  “Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos”, vols 1,2 e 3 e vários outros livros.

13.  Ao promover a leitura, você enfatiza muito escritores potiguares. Que razões o levam a isso? Destaque bons escritores da esfera potiguar.

 Sim, por acreditarmos que a nossa literatura não deixa nada a dever em relação a produção de outros estados, sempre estamos promovendo os autores da nossa terra, seja fazendo livros, como já dissemos, ou escrevendo em vários jornais e periódicos. Tem muita gente de valor escrevendo na atualidade, mas seria injustiça citar nomes, pois eu poderia esquecer de algum.

14.  Depois de tanto ter feito, de galgar tantas barreiras, o que planeja Thiago para o tempo que lhe resta? Sei que tem sublimes planos que visam o bem coletivo.

A nossa intenção é, e será sempre com certeza, de divulgar as nossa cultura literária. Isso também nos remete à própria tradição, na qual eu percebo me encaixar. Se olharmos para o passado das nossas letras, ao longo do tempo, sempre surgiram nomes que fizeram esse tipo de trabalho; Câmara Cascudo, Tarcísio Gurgel, Diva Cunha, Manoel Onofre Jr., Humberto Hermenegildo de Araújo, Valdenildes Cabral... mais recentemente os estudos norte-riograndenses estão mais voltados para a universidade, já que, a própria crítica está, hoje em dia, muito  ligada à universidade. Portanto, atualmente essa tradição é muito mais forte na UFRN, por exemplo, carregando essa tocha, cito alguns nomes de cabeça, Derivaldo dos Santos, José Luiz Ferreira, Edna Rangel, Cellina Muniz, Aparecida Rego.... Aí fora, (no meio literário) conheço muito poucos que fazem esse trabalho, mas, sei que praticamente cada cidade do interior, hoje em dia, tem seu grupo de pesquisadores, escritores interessados na cultura, história e literatura da sua cidade.

15.  Finalize como queira, siga a voz do coração.

“A recompensa do trabalho é a alegria de realizá-lo”. Luís da Câmara Cascudo.

 


4 comentários:

  1. História muiti bonita! Thiago é um menino de ouro! Sou grata por conhecê-lo. Precisamos incentivar nossos jovens a se descobrirem e se conhecerem no mundo dos livros.

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    1. Maria Aparecida de Almeida Rego3 de outubro de 2020 às 12:11

      Fiz esse comentário acima. Mas não consegui colocar meu nome. Aí, qdo fui colocar o nome acabei publicando outro comentário repetido rsrsrs

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  2. Maria Aparecida de Almeida Rego3 de outubro de 2020 às 12:08

    História muiti bonita! Thiago é um menino de ouro! Sou grata por conhecê-lo. Precisamos incentivar nossos jovens a se descobrirem e se conhecerem no mundo dos livros.

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  3. Gostei da entrevista com o Thiago Gonzaga. Mesmo conhecendo um pouco da história dele acabei me emocionando. Um cara incrível, foi meu colega de turma na especialização. Um grande ser! - Emanoel Gilberto

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