Coração de Maria (Valdenides Cabral)
Eram só crianças no cruzamento e a senha uma bom-dia no para-brisa. Odiava os sinais vermelhos.
– Não vai mais sair de casa nesse período. Choro não enche a barriga deles... avisou José.
Passou a não sair às ruas no mês de dezembro. Muito Cristo crucificado, exposto ao seu coração de Maria. E cidade grande é abandono, comércio de miséria em cada esquina. Cego é o que vê e não sente. Como se descesse ao porão do mundo e visse ratos e a imundície existente. Bichos de baixo escalão, massacrados, sem poder dizer que a vida rata é a que mais se vê, a que mais se sente. Séculos e mais séculos a cimentar nas nossas costas... eis que o mundo se derrama sobre ela e os outros que ousam aproximar-se de seus fantasmas ou coisa parecida. O mundo pesa. O mundo e seus concretos, suas faces de pedra, seus homens-pedra, seus subterrâneos e subterfúgios.
Dentro de casa, passou a ter sonhos, desejos de cuidar daquelas crianças, de lhes dar um lar, lavar a imundície entranhada naqueles corpos miúdos e sem roupas. Os devaneios eram o dobro do que lhe faltava em dinheiro. Era funcionária pública. Um dia, perdeu a paciência. Foi ao cruzamento principal e pediu para criar aquele projeto de criança com um mês de nascido.
– Me dê essa criança... eu crio com todo amor que possa ter. Dou tudo...
A mãe riu, de deboche. Mulher pobre, com filho pequeno no colo, ganha mais.
Precisava sustentar os outros cinco. Seis, pois a filha mais velha, de 14 anos, estava grávida. Voltou para casa suportando o mundo nos ombros. Uma eternidade para se recompor, para contar ao marido o que ocorrera, para ouvi-lo dizer que enlouquecera de vez. Noite em claro, rezou para que o dia amanhecesse sem contratempos. Pensou no Natal chegando, sua manjedoura ainda sem o Menino Jesus.
– Mais tarde vamos providenciar os complementos para o Presépio. Antes de sair, fez uma lista do que compraria: os animais, a estrela, os três Reis Magos... Meia-noite em ponto, estava no cruzamento, manjedoura cercada de bocas famintas. Duas semanas depois, aquietou o coração, tocada pelo infinito Amor, disposta a renascimentos.
Narrativa pujante e pungente.
ResponderExcluirExcelente, Valdenides, excelente professora!
ResponderExcluirDói demais ler Valdenides Dias. São duas dores completamentes diferentes. A primeira, é de prazer. Quem a conhece, certamente ja se deparou com seus poemas erótico-poéticos; a segunda , é a dor atávica ao homem: a dor de existir, de sentir demais. Ao ler esse belíssimo miniconto fiquei acabrunhada, pensativa e refleti: o natal vem vindo...em verdade, ele nunca se foi. Continuarei me doendo também, caríssima. A dor também é necessária para percebermos , vez ou outra, a nossa existência.
ResponderExcluirÉ tão clichê dizer que faltam palavras para dizer algo sobre essa criatura e essa criadora...mas realmente faltam. Restou uma copiada expressão: Ave, palavra! E a certeza do coração de Val , pulsando na ponta dos dedos na escrivanhadura desse texto.
ResponderExcluirCreio que se o menino-deus achar uma horinha de descuido, vai fugir do céu para morar na aldeia da nossa querida professora.
Texto lindo que retrata uma realidade cruel e expõe a alma da escritora. Tenho tanto orgulho de ter convivido profissionalmente com Valdebides!
ResponderExcluirTexto que faz uma reviravolta nas nossas consciências, a vida latejante e sofrida e a ânsia de viver.
ResponderExcluirVou ler oitenta vezes.
Obrigada, Valdenides.