sábado, 20 de junho de 2015

IDENTIDADE: Sou tudo que representa as coisas do meu sertão - Gilberto Cardoso dos Santos


Minha colega de profissão e grande apologista cultural, a mestranda Cláudia Santos, pediu-me ontem (19.06.2015) algumas estrofes para trabalhar com seus alunos. O mote escolhido foi "Sou tudo que representa as coisas do meu sertão", da autoria do grande poeta Hélio Pedro, autor de um opúsculo homônimo. Eis o resultado:

IDENTIDADE: Sou tudo que representa as coisas do meu sertão 

(Estrofes de Gilberto Cardoso dos Santos
Com base no mote de Hélio Pedro)

Eu sou trempe de cozinha
Resto de água no pote
Onde mergulha um caçote
Rapadura com farinha
Sou a faca na bainha
O chapéu de Lampião
Pé afundando no chão
Dentro da água barrenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Eu sou o mato cheiroso
No aceiro do caminho
O agricultor velhinho
Numa rede fastioso
Olhar de gato medroso
Brilhando na escuridão
A mãe fazendo cancão
Para a menina birrenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Eu sou um pé de arruda
Plantado em frente da casa
A carne assando na brasa
Carrapateira folhuda
A rezadeira sisuda
Enfrentando assombração
A tigela de pirão
Que aos pintos alimenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Sou da cruz pelo sinal
Medo de alma penada
Menino dando cagada
Peidando no matagal
Sou a vaca no curral
Olhando pra plantação
A fogueira de São João
Onde o matuto se esquenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Eu sou luz de candeeiro
Fumegando no escuro
Caco de vidro no muro
Mulher varrendo terreiro
Sou louça no petisqueiro
Chapéu de couro e gibão
Passarinho no mourão
uma estrada poeirenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Eu sou a mão calejada
Lida por uma cigana
Sou um partido de cana
Numa noite enluarada
O barulho da invernada
O estrondo do trovão
Sou o pedaço de pão
Que ao mendigo alimenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Sou um balcão de bodega
Onde de tudo se vende
Cardeiro que não se rende
À seca não se entrega
Brincadeira de escorrega
que logo estraga o calção
sou o toque do baião
na sanfona barulhenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Sou leitura de cordel
Sob a luz da lamparina
O bêbado na esquina
Fazendo um triste papel
Sou a voz do menestrel
Que acompanha o violão
O mocotó no feijão
A garrafa de pimenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Sou chocalho balançando
No pescoço duma vaca
Aquele cheiro de jaca
Na palhoça penetrando
Milho na brasa estourando
Festa de apartação
Bicadas de um gavião
Numa cobra peçonhenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Eu sou o cheiro de vela
Derretendo no altar
Mulheres a costurar
No horário da novela
A menina na janela
Com medo do cinturão
Sou canto de procissão
O vidro de água benta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Eu sou os sapos cantando
Na beira duma lagoa
O barulho da canoa
Na água sacolejando
A porteira se fechando
Lagarta na plantação
Aquele pé de mamão
Que na parede arrebenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão

Sou a cobra que rasteja
Balançando o maracá
Ninho de arapuá
Cantadores na peleja
Sou o sino da igreja
Convidando pra missão
Umbu caído no chão
Com sua polpa suculenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Mulher enchendo barril
Perto de um bode amarrado
Cordão azul e encarnado
Na festa do pastoril
Sou o disco de vinil
A radiola de mão
Abano junto ao fogão
Caldo de fava amarguenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Eu sou a lona furada
Do circo de interior
E aquele vendedor
De pomada e garrafada
A carroça carregada
O trocador enrolão
Posto de vacinação
Onde fila o povo enfrenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Eu sou o velho oratório
No interior da fazenda
A esquecida moenda
A grinalda do velório
Sacristão no ofertório
Sou o cinco-salomão
Um livro de oração
Na hora que o cão atenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Sou ave numa cancela
Exibindo a bela pluma
O leite fazendo espuma
Fervendo numa tigela
Também sou quebra-panela
Num dia de diversão
Medo de complicação
Com vizinha chafurdenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.

Sou menino com pantim
Burro brabo dando coice
Matuto metendo a foice
Numa moita de capim
Pedaço de alfenim
Capuxo de algodão
O político enrolão
Que o povo já não aguenta
Sou tudo que representa
As coisas do meu sertão.


Crianças declamando os versos do autor do mote:



10 comentários:

  1. Magnífico, Gilberto. Parabéns! Ficou lindo demais. Perfeito! Admiro demais essa capacidade de fazer versos tão naturalmente (parece sem nenhum esforço, rs) que você e muitos outros poetas têm.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir
  3. Poeta vou tirar o meu chapéu, versos arretados da gota

    ResponderExcluir
  4. A cultura está em todo lugar
    Sendo aperfeiçoado e praticado
    Vamos ler e divulgar
    Por manifesto verbal ou escrito
    Pelo matuto geralmente falado
    Pelo poeta Gilberto e pares falado e escrito
    Abre lá o site APOESC vejo demais escrito
    Do que faz um poeta em cordealizar
    Vamos ler e cordelizar tudo que representa
    As coisas do meu sertão e a cultura universal.
    (Jadson Umbelino)

    ResponderExcluir
  5. Obrigado, Hélio e Jadson Umbelino! Valeu pelo incentivo!

    ResponderExcluir
  6. Mais uma vez temos motivos para enaltecer a nossa poesia popular, o poeta Gilberto Cardoso é um desses motivos. Obrigada poeta!

    ResponderExcluir
  7. Recebo esses versos como uma excelente aula de poesia e rima, além de me transportar para a região em questão!

    ResponderExcluir
  8. Sou matuto cara queimada
    Pisante de chão rachado
    Cara que vive sofrido
    Desta terra castigada
    Sou criador de caprino
    Gato, cachorro e bovino
    Que vivo eterna canção
    No ato da criação
    Sou tudo o que representa
    As coisas do meu sertão

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”