(Este conto é apenas uma ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência)
Dotoisso Muito-Mais-Que-Isso Kuesta, cabra macho da Baixa-Verde, tinha frescura com ele não. Era estúpido, de poucas palavras e batizado nas sete águas da valentia e da macheza. Só falava uma vez com quem quer que seja ou fosse, inclusive com o touro preferido dele, e, caso este não lhe atendesse, ia pra porrada mesmo! Com ele tinha frescura de rato não! Quebrou o braço, dia desses, por causa dum bofete que deu em Cara Preta de Chifres Valentes, seu touro preferido, só porque o animal não obedeceu ao seu comando “vira”. Tinha essa de gemer de dor não! Tinha babaquice de ir à Rua bater chapa do braço quebrado não! Entrou ano e saiu ano com limitações no braço direito só porque se recusara a tratá-lo, pra não dar o braço a torcer pro touro. Já se fazia amigo dessa nova limitação, só não gostava de pegar o sabugo quente do meio do mato com a mão esquerda, para as limpezas necessárias, quando a fava, o “toicin” de porco, a farinha e a rapadura se embrulhavam no bofe e brigavam pra sair. Aí sim, tinha que correr pro mato e se livrar dos briguentos, limpando, com calma, a passarela da saída, pra não correr o risco de escorregar o sabugo passarela adentro sem precisão.
Dotoisso, filho de seu Gentisso Muito-Mais-Que-Isso Kuesta, achava coisa de boiola usar papel higiênico, xampu, creme de barbear, pasta dental e essas coisas da cidade grande, como tomar mel sentado num tamborete de pernas cruzadas e bater papo com outro homem. Ele não se permitia a essas “boiolagens”; fazia uso de sabugo mesmo, folha de carrapateira ou de sua faca mimosa, quando de suas necessidades urgentes; lavava, uma vez por mês, a cabeça com sabão preto. Usava sua faca mimosa e sebo de porco pra barbear e arrancar as unhas, escuma de juá pra ariar os dentes e comia logo a abelha viva e qualquer substantivos que se lhe viessem no gênero feminino, só pra mostrar que “homem é homem e gato é um bicho”.
Dotoisso não puxara 100% a beleza física dos olhos azuis, a sabedoria empírica e o gênio manso de sua santa e a amada mãe D. Paciência Kuesta da Conceição. Era Dotoisso também filho das muitas luas, de modo que dia estava de boa e na paz da calmaria, dia estava que nem olhasse pr’ele. E se Cláudio Manuel, seu jovem jegue serviçal, tivesse a burrice de lhe coiçar pelas costas, e no percurso dos caminhos d’água, desatava os barris de seu lombo, amarrava o animal carinhosamente no mourão e devolvia 70 vezes 7 aquele coice dado na cara do jegue, “também sei dar, também sei dar”. Dotoisso era assim mesmo: muito brabo!
Seu Gentisso, pai de Dotoisso, tinha uma venda, uma bodeguinha num puxado da casa grande do sítio, ao lado da de farinha, e pendurava na caderneta o feijão, a farinha, a rapadura, o alecrim, a canela, o boldo, o melhoral, a capinadeira, a cangalha, a foice, o fumo de corda, a cachaça e os etc vendidos aos moradores e vizinhos. Vendia pão de manhã e de tarde também, ainda quentinhos, vindos da Rua no caixote da bicicleta. Se uma desavisada pedisse papel higiênico ou absorvente a Seu Gentisso, ele não lhe oferecia papel de embrulhar pão, uma lixa número 3, um pedaço de bombril ou um retalho de saco de estopa porque respeitava a moça, sabia ele que alguém das cercanias e conhecedor de seu gênio, lhe pedira pra gozar o velho, que cochilava a cabeça no balcão, mas não sonhava, pois sonho é coisa de boiola, mas botava a chapa de dentes na boca com a mesma mão suja de pegar o pão quente, quando do pedido de seus clientes, e “sapricando” cliente e pão com fragmentos de liga de cuspe que se formara nas extremidades da boca, da chapa de dentes e da mão do velho babão.
Dotoisso deixou a Baixa-Verde e foi morar na cidade grande, vizinha da Rua e de seu sítio, só porque tinha chegado energia elétrica no sítio e, para ele, sítio que é sítio não tem de ter luz de lâmpada, e sim, de candeeiro, de vela, de lenha e da pólvora de sua carabina. Tinha que levar topada nos dedos e porrada no quengo na escuridão da noite, pois homem que é homem não tem pele macia, muito menos cabeça mole. Nunca dormia no ponto e não sonhava, já que sonhos são coisas de mulherzinha, e homem que é homem não sonha. Homem que é homem, para Dotoisso, ronca, peida alto, tem pesadelo, ganha a briga e mata o bandido do pesadelo.
É bem verdade que Dotoisso começou a deixar seu sítio por ocasião da serventia ao Exército. Mas ele não ficou lá não, por dois motivos: primeiro que ele só tinha 1,64 cm de altura e faltava 1 pro Exército incorporá-lo. Na verdade, Dotoisso nem queria ficar, pois nunca gostou de farda e de gente dando ordens a ele. Dotoisso tomou 30 dias de cadeia porque agrediu o Oficial do Dia, Tenente do Exército, quando do exame da goma. Mais de 50 homens nus dentro duma sala quente, aquela inhaca de macho, e o Oficial mandou Dotoisso ficar de costas e encurvar pra frente pra ver se Dotoisso seria aprovado. Se não apresentasse, no mínimo, 15 pregas no orifício bogal, seria reprovado e preso. Dotoisso foi preso, mas não foi por falta das 15 pregas não, ele tinha todas elas intactas, pois Dotoisso era macho da Baixa-Verde e passado nas sete águas da brabeza! O Oficial lhe deu uma chibatada na tampa do boga porque Dotoisso estava com o orifício cheio de farinha seca de bosta. É que sabugo ou folha de carrapateira não o limpam como papel higiênico, e a chibatada levantou uma nuvem de poeira de bosta e todos riram e Dotoisso não gostou, e partiu pra cima do Oficial e deu umas porradas nele. 30 dias de cadeia e expulsão do Exército, antes de lá entrar.
Dotoisso Kuesta não tinha medo de nada. Puxara a seu bisavô, Valentenisso Muito-Mais-Que-Isso Kuesta, que hospedara Antônio Silvino e seus dois cabras-da-peste na casa grande de seu sítio, quando da passagem destes pelas terras da Baixa-Verde e comera com eles jabá com beju, rapadura, bebera cachaça e água fresca do pote e expulsara os macacos amarelos, que perseguiam aqueles perigosos cangaceiros, dois dias depois da passagem destes por seu sítio.
Dotoisso logo arrumou um emprego de vigia na escola do Mobral, ao lado duma Usina d’Algodão. Arrumou, também, uma “caboca” morena cor de jambo, pernas grossas, seios duros e bunda grande, pra mostrar que homem da Baixa-Verde é passado nas sete águas da macheza. Biana não era somente um rebolo de mulher! Ela tinha olhos azuis, como os da mãe do novo namorado, pés sexis, aquele irresistível engaste sensual na sua boca e um sorriso 70 X 7 vezes mais doce do que mel de rapadura, um olhar meigo e andar macio. Biana mudou o jeito Dotoisso de ser, menos a sua brabeza, claro. Ela era perita nas técnicas femininas do encanto, da hipnose e do adestramento dum macho alfa, como Dotoisso. A linda Biana não era apenas uma bela mulher, eram duas vezes Ana, era Ana indo, era Ana voltando, uma inigualável duas vezes Anas numa única beldade Biana, de 1,70 cm de altura e de desejos. Era a mulher mais cheirosa, mais bonita e mais gostosa da cidade, a que todos desejavam, cortejavam, cantavam e comiam com os seus olhos de gavião e mãos de carcará, mas que a somente Dotoisso esse privilégio de fato e de direito cabia. Mas Biana era detentora de outros predicados, além de seus encantos físicos. Era ela simples, simpática, educada, inteligente, de boa família, professora licenciada em matemática, de fala mansa e apaziguadora, uma simpatia, um doce de mulher, com aquelas pernas grossas, com aqueles seios duros e com aquela bunda grande, toda dentro daquela minissaia ai ai ai ui ui! Era um grande partido! Não se entendia o porquê de essa incomparável Biana se apaixonar por um homem baixo, feio, tosco, liso e brabo! Diziam as más línguas que Dotoisso não tinha virtude alguma. Ainda corria na cidade um zum zum zum segundo o qual o crescimento de seu corpo se dera inversamente proporcional ao desenvolvimento do diâmetro e do comprimento de suas medidas íntimas. Nada de anormal, dada a naturalidade baixaverdeana de sua origem cujo útero geram homens baixos, feios, brabos e detentores de enormes atributos íntimos. Mulher de fibra, no entanto, não se impressiona ou não se deixa levar apenas pelo comprimento físico máximo ou mínimo da cabeça, do tronco ou dos membros dum homem. Mulher gosta, sobretudo, de carinho, de joias, de banho de loja, de casa e de carro novos, de atenção, de elogios, de companhias agradáveis, de pessoas bonitas e inteligentes, coisa que Dotoisso não lhe podia oferecer. E Dotoisso não tinha nada, nem beleza, nem inteligência, o que contrariava, de certa forma, a regra, pois quando não se tem uma, tem-se outra. Mas ele não tinha medo de nada, apenas de perder Biana. É certo e não sabido que ele tinha medo de lagartixa e de alma, mas isso era segredo de Estado e ninguém deveria saber. Mas souberam. Como souberam, não se sabe! Sabe-se apenas que alunos têm a imagem e o faro do cão! E aproveitaram as muitas idas de Dotoisso ao banheiro, já que ele tolhia dolorosamente a vontade de peidar à vontade nas salas e corredores da escola, e jogaram, não apenas jogaram por sobre a meia-parede do banheiro uma lagartixa de borracha nas costas de Dotoisso, como também imitaram a voz d’alma penada,“Dotoiiiiiiiiiissssssso uma largatixazinha de presennnnnntente” E Dotoisso saiu correndo da casinha, passou pela secretaria, pela porta da frente feito bala e ganhou as ruas da cidade, mudo, amarelo, pálido e todo cagado. Dotoisso Buesta, como ficou conhecido doravante, nunca mais foi ao colégio, perdeu a fama dantes, o respeito de todos e Biana, sua grande paixão de 2 anos e meio de transas, de delicias, de orgias e de grandes banquetes.
30 anos depois, o gerente geral da Usina d’Algodão, Sr. Dotoisso, pai de três filhos adultos, um Promotor de Justiça, uma médica ortopedista e um músico, compositor e vocalista duma banda de rocky, é visto na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz na companhia de sua bela esposa Ruzaly da Silva Kuesta, filha única e herdeira do enorme patrimônio algodoeiro do pai, mulher detentora de muitos outros predicados verbais, nominais e verbo-nominais, e de termos muitos essenciais ao excelente padrão de vida da família.
O Sr. e respeitadíssimo Dotoisso em quase nada mudara nesses últimos 30 anos. Continua sem sorriso no rosto, de poucas palavras, modos toscos, truculento e brabo. E o que fizera ele pra conquistar uma alta posição nas Organizações das Usinas D’algodão do Nordeste do Brasil? Ninguém sabe! Ele nunca foi dado a fofocas e muito menos de exposições pessoais! Apenas conquistou a filha do dono! E como a conquistou? Ele dele nada diz!
Dotoisso, nesses últimos dias, anda meio abatido, nervoso e de olhos inchados e vermelhos. Ele foi visto, depois 30 anos de ausência, no sítio Baixa-Verde, de carro importado e alguns capangas ao seu entorno a lhe fazer a devida segurança. Dotoisso chorou? Está com medo de quê? Ficou frouxo? Foi visto na casa de um dos filhos de Pai-Xangô e de Mãe-Jurema. Queria saber o que os búzios lhe diriam acerca dum sonho que teve, depois de anos, com Biana, que se lhe aparecera linda, educada, inteligente, com aquelas pernas grossas, com aqueles seios duros e com aquela bunda grande, toda dentro daquela minissaia ai ai ai ui ui e a frase Eu nunca te esqueci! tatuada em seu pescoço. Dotoisso nunca pensara em Biana, nunca por ela sofrera, nunca falara em seu nome, nunca guardara uma única mágoa dessa linda mulher. Por que sonhou com ela? E o pior, por que no outro dia ele com ela encontrou, depois de 30 anos, numa agência bancária ela, in loco, sem sonho, real, ao vivo, linda, educada, inteligente, com aquelas pernas grossas, com aqueles seios duros e com aquela bunda grande, toda dentro daquela minissaia ai ai ai ui ui e a frase Eu nunca te esqueci! tatuada em seu pescoço.
Dotoisso Muito-Mais-Que-Isso Kuesta, que nunca sonhou, que nunca chorou, que nunca teve medo de ninguém, se encontrava, agora, em meio a um grande pesadelo, por isso voltou à Baixa-Verde de seu passado pra invocar o espírito das valentias e das brabezas de Seu Valentinisso, de Seu Gentisso, de seu jegue serviçal Cláudio Manuel e de seu saudoso touro preferido Cara-Preta, para ser de novo Dotoisso, muito mais que isso que se tornou agora, brabo e sem essa de sonhos, pois sonhos são coisas de mulherzinha, e homem que é homem não sonha, tem pesadelo, como esse de agora, ganha a briga e mata o bandido do pesadelo. Dotoisso Muito-Mais-Que-Isso Kuesta, cabra macho da Baixa-Verde, tinha frescura com ele não!
(Nailson Costa, 18.06.015)
Ótimo conto, Nailson! rsrs
ResponderExcluir