quarta-feira, 29 de março de 2023

CALÇAS E DESCALÇAS



CALÇAS E DESCALÇAS


Houve um escândalo na repartição quando a funcionária saiu dizendo que ia comprar um presente e voltaria logo. Retocou a maquiagem, deu partida na moto e saiu toda empinada sem dizer a hora exata do regresso. 

Logo depois, uma mulher chegou gritando: ela está com meu marido no motel. A senhora me desculpe, mas nós não temos nada a ver com isso. Se quiser pode resolver em outro lugar, porém aqui em frente não é permitido. Ela foi para a outra calçada bufando desaforos que não cabiam num caminhão trucado.  

Anunciou aos “sete ventos” a promessa de quebrar a cara da “galinha ciscadeira.” O galo chegou todo humilde pedindo para que sua esposa deixasse “pra lá.” Quem denunciou mentiu, eu estava trabalhando. Vamos para casa, mulher! Vou demais! Aquela bichinha vai apanhar e não é pouco. O ódio tem uma particularidade que é causar espuma branca no canto da boca de quem está sentindo. A mulher parecia que ia tirar a barba, com tanta espuma. Seu short preto ficou cinza em solidariedade à dona. Até umas nuvens que estavam se formando querendo pingar foram embora para o sertão. Não se ouvia nem um piar de pardal. 

Cheguei com meu carro de som e ela fez uso dele para anunciar o quanto estava sendo traída. Um vendedor ambulante foi passando e pediu para que ela divulgasse seus ovos. A bandeja era quinze reais. Diga que é caipira, do bom. Ela comprou logo duas dúzias para jogar na cara da descarada. 

Pela demora da outra, ela começou a treinar arremesso de ovos jogando-os nos veículos que iam passando. Quando a bandida chegar eu vou jogar isso na cara dela, dizia e arremessava-os também nas costas dos transeuntes. Ainda bem que o vendedor tinha uma “maquininha para cartão.” Acabava uma bandeja e ela, rapidamente, comprava outra. Por fim, os ovos foram todos arremessados e nada da outra chegar.  

Passou mais um ambulante vendendo cocos e bananas. Ela comprou, e uma vez jogava coco, da outra, uma banana sem ovos. A “galera” aplaudia e alguém perguntou: a senhora abandonou seu marido? Vou abandoná-lo! Ainda hoje pela manhã ele prometeu que quando chegasse do trabalho ficaríamos no bem bom, mas pelo que estou vendo aquela safada sugou tudo, deixando-me sozinha com a “desfalecida.”

Sou quem cozinho, lavo as cuecas deste porco, eu digo porco porque não quero desmerecer os cachorros, e quando eu mais preciso dele, o “frechado” vai atrás da piranha motoqueira. Por isso é que as mulheres estão preferindo amigas íntimas. Querida, bote os peitos pra dentro porque essa sua blusa está muito escandalosa. É para o povo ver que sou gostosa, dizia a “baixinha torneada.” O que é que ela tem e eu não tenho? Isso aqui aguenta serviço, batia em cima e a vaia comia.  

Foi juntando gente e perguntando se era um culto ou campanha eleitoral. A senhora me dá um santinho para eu votar no seu número? Pastora!, pode fazer uma oração para que minha filha encontre um marido? pronto, aqui está ele. Este cabra safado vai ficar com sua filha, serve? Serve sim senhora. Leve agora, ou nunca mais. A mãe da solteirona, com a ajuda da traída, amarrou o noivo para a filha encalhada. E a papelada? Limpe o seu com isto, disse a mulher para a “perguntadeira” jogando, na cara dela, a certidão de casamento com o pedido de divórcio. 

A senhora dá para anunciar que meu pai morreu e que estamos convidando todo mundo para o sepultamento? Acaba de morrer um homem, como é nome dele?, e vai ser enterrado junto com a mulher que gosta de tomar o marido das outras! Minha senhora, eu digo sem medo de errar, seu pai vai poder ficar com ela a vida eterna no inferno porque é pra lá que vou encaminhá-la sem conexão com o purgatório. Quem quer apostar?, chegou o porteiro com uma prancheta querendo anotar os palpites da luta prevista para daqui a pouco.  

Mas isto tudo é por causa de um pedaço de homem?, perguntou uma beata com um pano de prato na cabeça. É muito mais do que isso, minha senhora! É pelo cuidado que tenho para que funcione na hora agá. Dou caldo de mocotó, sopa de amendoim, carne charqueada, e não me conformo que ele fique indisposto comigo enquanto posa de galo com outras por aí. Seu marido é prego?, isso mesmo! Prego, espada, parafuso, só não é brocha. 

Por que a senhora não o trai?, estou à disposição, disse um folgado mostrando que faltava um dente embaixo. Os demais voaram todos com o soco que ela desferiu no queixo no magrelo. O murro foi tão violento que ele caiu voando por cima de um camelô que vendia boi de barro. 

A senhora vai pagar o prejuízo. Chegue pra eu pagar agora! Pegou o camelô pelo braço e o rodou numa velocidade maior do que a turbina de um jato 747, depois soltou o homem que foi bater no sino da igreja. Nem sabia que tinha missa hoje, disse um coroinha já pegando o terço e caminhando para a matriz.          

Finalmente, a causadora do ódio chegou apressada querendo, a todo custo, entrar na repartição para assinar o ponto do segundo expediente. A outra correu de lá, e, como a porta não fora aberta a tempo, a servidora saiu fugindo e a mulher atrás. O povo correu para ver a desgraça. As lojas fecharam liberando as atendentes para ligarem as câmeras. Quem fizesse a melhor filmagem, com certeza, teria mais seguidores. 

O sinal fechou e as duas gladiadoras ficaram pulando fora da sincronização, de forma que enquanto uma estava no ar a outra chegava ao chão, assim nunca se encontravam, coisa difícil de se entender. 

A multidão que ia acompanhando as duas feras era tão grandiosa que o padre resolveu aproveitar a oportunidade para organizar no formato procissão, em homenagem a alguma coisa criada na hora. Saíram aquelas pessoas levando uma imagem nas costas seguindo as duas briguentas. Lá na frente, os mototaxistas fizeram um cordão de isolamento em duas fileiras dando proteção ao duelo. As rádios e os canais abertos de televisão logo enviaram seus repórteres. 

A merendeira, bem novinha, sempre gostou do moído desde os treze anos. Agora ela era mãe e estava casada, entretanto não esquecia o vício de pertencer a muitos ao mesmo tempo. Me fez lembrar o filme: “os amores de Carmem,” tema já discutido lá nas antigas e que ainda hoje se repete. Algumas feministas defendem que a luta deve continuar para que seja comum a mulher trair, mesmo sabendo que haverá algumas mudanças no código civil relativo à herança, mas isso é outra história.

Acho que vou lhe transferir, disse a chefe da repartição. É mentira, eu não estava com o marido dela. Eu fui só comprar um presente e voltei. Tudo bem, da próxima vez será transferida, porém, de hoje em diante, nada de ficar saindo na hora do expediente. Se quiser dar, procure outro horário, porque durante o trabalho fica proibido fazer qualquer tipo de doação. Mas eu não dei. Verdade? Sim, eu nem cheguei a comprar. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 29.03.2023 – 08h46min.



Ela sentia demais - Siomara Spinelli



Sentia

Ela sentia demais.

Todos os sentimentos ao mesmo tempo se entrecruzando como fios do novelo de lã.

Ela estava transbordando de felicidade, de paz, mas na ponta do sorriso tinha um quê de tristeza, uma pontinha do desespero de todos os dias que ela nem tinha tempo de sentir e ficava adiando para sentir depois, mas quando chorava, ia para um lugarzinho só dela, que quase não existia, e despencava  cachoeiras sem fim, depois, equilibrada, fortificada pela fé ela, seguia. Seguia sentindo, ela tinha essa incapacidade de deixar de sentir. Ela tinha essa teimosia de sempre continuar, apesar das adversidades...apesar das palavras, apesar da inquietude dela mesma. Ela se reconhecia como não perfeita, se reconhecia como obra inacabada, se reconhecia como pequena, mas mal sabia ela toda a força que tinha! Era uma menina que colocava sorrisos nas pessoas e sempre que possível, abrandava o fogo dos corações. Ela era às vezes inquieta, segurando as erupções que insistiam em explodir, às vezes quieta, como a tristeza quando chega. Ela sabia ser sol, mesmo sem acreditar, tinha o amanhecer dentro dela.


Siomara Spineli

domingo, 26 de março de 2023

DIA DE PAZ E TRANQUILIDADE - Heraldo Lins

 


DIA DE PAZ E TRANQUILIDADE


Ginga com tapioca!, gritava a mulher com uma vasilha transparente debaixo do braço oferecendo a quem tivesse coragem de chegar perto. Um pitbull solto lhe acompanhava no trajeto servindo de proteção. Quem garante que aquele bicho não ataca, pensei ao passar distante mesmo gostando muito da "especiaria."

Umas jovens, tomando sol, compraram vários, depois que ouviram o rosnar do cão. A de biquini vermelho pagou tudo, e assim que ela aceitou o preço acima da média, o cão afastou-se como quem soubesse que a venda havia sido concluída. Este cachorro é uma bênção, pensava a mulher utilizando outras mercadorias para passar o troco. A menina mudou de opinião quando o cão voltou para saber se ela aceitaria, ou não, balas no lugar de moedas. Tudo bem! eu gosto muito das de hortelã, disse a de biquini preto, sorriso amarelo, com a mão estirada sem tirar o olho da fera a lhe encarar.

A senhorita pode me presentear com aquela toalha que não está sendo usada?, falou a "mulher da ginga" sem muita ginga, porém confiando no seu animal rosnador. Bem... O cão notando a indecisão da moça, aproximou-se. Pode levar, sim, afinal de contas nós já temos duas, e quando meu namorado chegar ele sentará na areia, sem problema. Muito obrigada, disse a preta roliça colocando a toalha sobre a cabeça e saindo gritando olha a ginga com tapioca sem olhar para as meninas que comiam e imaginavam o que diriam para o dono da toalha. 

Olha o picolé!, passou outra com um gato na coleira. Não quero, disse a de preto “encarando” o gato. O bichano tentou rosnar, entretanto saiu só um miado desafinado pelo "cano da desnutrição." O empoderamento da de preto foi tão forte que deu vontade de ir atrás da toalha presenteada sob pressão. Têm certeza que não querem comprar os picolés da minha irmã?, perguntou um “negão” chegando todo molhado ajeitando a sunga apertada na frente. As meninas se entreolharam sem conseguir levantar a vista acima da cintura do irmão da vendedora de picolé. Será que isto é natural ou fake?, pensou a de vermelho ficando vermelha de vergonha por aquilo estar quase na sua cara. Vai chupar ou não vai? Perguntou o “negão” quase colocando na boca da branquinha. Quanto é? Quer com pau ou sem pau? Sem pau é sorvete, explicou o gato através de miados um pouco mais afinados. Tem de chocolate? Tem sim, também de mandioca, batata, só não tem de manjericão. Nunca chupei de manjericão. A senhorita não chupou porque desse sabor, que eu saiba, nunca foi fabricado rsrsrsrs.  Este branco é de cocaína? É de coco, de cocaína está em falta. Então deixa para outra vez, falou o namorado chegando e já armando a sombrinha de proteção. 

Como está o dia? minhas lindas! Quer tapioca com ginga? Aceito sim, gosto muito! Onde conseguiram? Passou um cachorro vendendo e achamos melhor guardar para você. O namorado continuou cavando outros buracos e de quando em quando tirava uma “dentada” da comida na mão da sua amada. 

Hoje o dia está ótimo para pegar um bronze, disse, enquanto se aproximava, bem descontraída, a irmã do namorado da de vermelho. Deu "tchauzinho" para a turma e foi logo beijar a de preto. Balas de hortelã!? Humm... que gostosura! Quero pegar essa que está na sua boquinha, e voltou à língua, demorando-se bastante naquela pegação.

Olha o crepe!,  anunciou um homem "cavalgando" um elefante. Vão querer crepe? Não. O elefante deu um passo à frente. É só nove inteiros e noventa e nove centavos, cada. O homem desceu escorregando pela tromba do bicho que estava procurando a origem do cheiro de protetor solar em algumas entrepernas disponíveis. O recheio é de banana caramelizada, queijo e carne de sol. Enquanto pensavam em dizer “não” novamente, o elefante derrubou a barraca que o rapaz havia providenciado. Não se preocupem que ele mesmo coloca no lugar. O namorado da de vermelho já tinha escapulido para "pegar uma onda." O elefante deu mais um passo e mijou na toalha. Isso ele não tem como consertar, tem?! Tem sim, ele leva para lavar no mar. A senhorita vai querer o crepe? O elefante adiantou-se mais um pouco, levantou a jovem e a colocou nas costas. Um passeio será muito bom para fazê-la decidir. Se a gente for comprar tudo que passa, eu vou engordar, choramingou a do biquini preto. Ah, não, disse sua namorada. Ponha ela no chão, ordenou para o elefante dando-lhe umas “capacetadas”. O paquiderme levantou as patas dianteiras berrando e fazendo o composto biquini vermelho se transformar em fio dental na frente e atrás, o que se pode dizer que "desembeiçou." Percebendo que daquela bolsa não mais se conseguiria extrair dinheiro, os "descrepantes" saíram para novas abordagens. 

Todos os domingos esse pessoal passa perturbando. Daqui a pouco passa um “coiceiro”. Cheguei!, disse o mendigo pedindo esmola montado no jegue. O senhor não trabalha não? Trabalho cuidando do jumento e desse furão. Agora cria um furão? Meu sonho, desde menino, era possuir um desses porque minha mãe morreu dizendo: meu filho, nunca ande sozinho, arranje pelo menos um furão, e eu estou fazendo os gostos de mãe. Dá para o senhor tirar a traseira desse jumento da minha cara? Tem um trocado? Tenho ginga com tapioca, serve? O jumento deu um coice que ela virou de costas. Tenho balas de hortelã. Se fosse crepe ele aceitava, pegue outro coice, dessa vez na de preto. Vou chamar a polícia, gritou a irmã do namorado da de vermelho. Tome coice também. Quando a polícia chegou os três, jumento, mendigo e furão, saíram correndo na beira da praia tão velozes que nem as lanchas da capitania dos portos conseguiu detê-los.

Podem ficar tranquilas que ninguém mais vai perturbar vocês, disse o guarda com o cacetete em uma das mãos, e na outra, uma girafa na corda. Para que é essa girafa?, perguntou a que havia chegado por último. Serve de observatório. Qualquer coisa vamos pendurados no pescoço dela sem medo de perdermos o meliante de vista. 

Muito bem, o senhor pode devolver meus óculos de sol? Ah, sim! Pensei que fosse do mendigo. Falar nele, lá vem voltando fugindo do pitbull “pega num pega.” É melhor prendê-los, inclusive o cachorro, disse o guarda esporeando a girafa acompanhado pelos ajudantes montados em avestruzes.

A chuva chegou e com ela trouxe os vendedores de capas.  Quando as senhoritas saírem poderão ir protegidas para o ponto de ônibus. Nós viemos de carro e ela de moto. Ah, tá, então aqui nós temos limpadores de para-brisas e óleo de freio. Aproveitem porque o óleo está sem areia e os limpadores do seu carro podem ter desaparecidos, pois aqui tem muito moleque que os furta para vender aos próprios donos. Esse periquito é da senhorita? Sim, eu sempre trago ele para passear. Nesse momento, um carcará lançou suas garras no periquito da moça provocando gritinhos e rasgão na beirada, do umbigo. O namorado vinha chegando na hora e deu uma "pranchada" no vilão que voou penas. O bicho saiu se batendo e lá na frente socou-se dentro do depósito de cavaco chinês para ninguém mais dar notícias dele.

Pouco tempo depois, a maré alta trouxe uma tartaruga agarrada na outra e se alojaram em cima da caixa de bebidas continuando a fazer amor naquela rapidez característica de tartarugas. 

Só se sabe que no final da tarde elas voltaram para casa prometendo que no próximo domingo não iriam perder a oportunidade de ficar naquela praia tão tranquila. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.03.2023 – 12h18min.



sábado, 25 de março de 2023

INTERESSES DESVIADOS



INTERESSES DESVIADOS


Saí desconfiado do consultório, logo eu que tenho o costume de ser pontualíssimo, nesse dia "pisei na bola" dormindo além do cantar do galo. “E não foi pra menos.” No dia anterior, aconteceu minha despedida de solteiro onde “apaguei” nos braços de uma que se eu não tivesse compromisso seria com ela que me casaria. Que mulher! Assim que chegou, já foi arrancando os cabelos dos meus ouvidos tentando evitar comentários maldosos dos que vão à igreja só olhar os defeitos dos noivos.

Confesso que cochilei em seus braços, entretanto logo fui despertado por um espirro quando ela começou a puxar os do nariz. Nessa sessão de tortura capilar, quase não se pode dormir. Entre espirros e beijos, ela desceu a pinça. A ordem da futura patroa era para que não ficasse sequer um fio pendurado nas partes mais requisitadas em uma lua-de-mel. A especialista arrancou, com os dentes, os que ficavam escondidos debaixo do "armazém de bebês," e as contrações e alívios foram responsáveis pelo sono "atrasador." 

Cheguei ao dentista suando frio e com um grande tremor nas pernas. Uma fraqueza ainda está me acompanhando aqui no trânsito. Neste momento a noiva liga. Alô!? Venha! O pessoal está esperando para o ensaio. 

Chegue aqui para que eu possa ver se a depilação ficou boa. Arriei as calças a mando da minha noiva. O que é isso? Isso o quê? Parece que seu saco foi mordido. Estranho... Deve ter sido muriçoca. Hum...! Vamos voltar para o salão.

O "ensaiador de cerimônia” parecia querer terminar logo aquela chatice. O noivo fica no altar com a mão no bolso segurando a vontade de "pegar" a noiva, dizia ele andando "pra lá e pra cá" enquanto jogava o cachecol para trás, mesmo com um calor de "quarenta graus." 

Vê se consegue se separar e tenta logo um outro noivado para que possamos fazer mais uma daquelas, disse o organizador de bacanais. O que vocês estão conversando?, perguntou minha querida. Nada não, estamos só recordando o tempo que pulávamos cerca para assistir circo de graça. Vamos "passar lá em mamãe," ordenou ela puxando-me pelo pescoço chupado. 

Oi minha sogra, tudo bem? Tudo bem nada! Hoje pela manhã veio uma mulher dizer que a filha dela está “buchuda” de você, o que me diz!? É mentira, eu já fiz vasectomia há mais de um ano. Quer dizer que você não vai me dar netos? Mamãe, eu que sugeri porque também não quero ter herdeiros. Então, puxem daqui!, falou brava apontando o dedo em direção à saída, e “matracou:” vocês dois deviam ter vergonha de querer só viver viajando. Um dia alguém tem que tomar conta das empresas, e vai deixar nas mãos dos de fora, é? Mas basta decidirmos pela cirurgia de reversão. Vou transferir cinco milhões para a conta de vocês, mas esse neto tem que sair. Faço por dez! Nove e ninguém fala mais nisso.

O menino de nove milhões nasceu com sete meses de gestação oficial. Deu muito trabalho para minha noiva esconder os dois de gravidez, mas precisávamos explorar a velha bilionária. Ela se apossou do menino e continuamos como sempre, a diferença é que agora as viagens estão sendo realizadas no nosso próprio barco.

Vovó, os meus pais me abandonaram, foi? Não meu neto, eles estão trabalhando em alto mar. Inventaram de criar um canal de viagens e vivem postando luxo “com caras e bocas.” O meu coleguinha disse que a senhora parece um homem. Mande esse seu coleguinha ir para a casa da “mãe de pantanha.” Quem é essa, vovó? Mande, e deixe comigo!

A senhora foi chamada aqui porque seu neto... Ele mandou o coleguinha e eu mando você. Vou comprar a escola e botar você pra fora, está ouvindo seu safado. Aqui está a transferência. A senhora pode comprar outra porque esta não está à venda. Esse menino não tem pai não? E mãe também, só que está sob minha guarda, e outra: não devo satisfações a você. Passe bem! 

O diretor ficou quieto olhando para a jovem que fazia a limpeza da sala. Aquela menina nem precisou trazer currículo para trabalhar no seu gabinete, e naquele momento ele estava com vontade de esquecer as agressões sofridas há cinco minutos. Fechou as cortinas e mandou ver.   

Na sala dos professores, os comentários rolavam em torno daquele "amancebo". A menina, filha da secretária, fora apresentada em uma festa de final de ano. Chegou com o namorado a convite da mãe, mas logo deixou de amá-lo a pedido do diretor. Seu vestido preto em forma de tubinho colante mantinha aquele coroa “babando” todos os dias. 

Numa noite qualquer, aquele senhor de bigode "hitleriano" precisou ser socorrido pelo excesso de estímulos eróticos. Atualmente, já separado da esposa, mantém a jovem fingindo que limpa o chão para despertar nele as fantasias adormecidas desde o tempo de adolescente quando o pai viúvo o deixava sozinho com a diarista. 

Seu império já havia sido maior, porém depois das quatro separações, aquele homem de cinquenta anos e quatro filhos sentia-se injustiçado pelas ex-mulheres que dilapidaram seu patrimônio. Restava apenas seu jeito esquisito de fazer tudo por uma novinha, e por esse motivo estava sendo alvo dos comentários.

Tem coragem de bater na porta e pedir aumento? perguntou um dos professores ao que sempre organizava as assembleias. Vá você! Brincadeira tem hora e não quero ser demitido, logo agora que estou construindo no terreno que comprei ainda solteiro. Todos os que estavam lanchando, empolgaram-se em saber sobre o projeto do colega sem nem dar mais ouvidos aos barulhos ritmados vindos da sala vizinha.

A conversa dos professores foi interrompida e direcionada para a reportagem de um casal que estava completando sua segunda viagem ao redor do mundo. Eles já tiveram o filho estudando nesta escola, disse a secretária saindo às pressas junto com os socorristas que foram chamados para levar o diretor infartado para o hospital. 

A jovem da limpeza permaneceu na sala reprisando a reportagem. Tentava com isso vivenciar o quanto foi maravilhoso depilar aquele que se apresentava na tela como sendo o “explorador dos sete mares.”


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.03.2023 - 21h45min.





quinta-feira, 23 de março de 2023

COTIDIANO TRAUMÁTICO

 


COTIDIANO TRAUMÁTICO


Vendi a geladeira. A bicha começou soltando a borracha, descongelando-se e vazando por trás. Onde antigamente reluzia uma película "branca como a neve," deu lugar a pintinhas "marrom-estourando."

As frutas vibraram de alegria. Agora nós teremos um lugar estável para ficar, disse a representante delas. Perguntei o motivo da escolha de uma banana para presidente da associação "frutigrangeira." É porque ela é a mais popular entre a gente, respondeu-me uma jaca madura.

Está disponível?, perguntou-me uma mulher interessada na compra. Está! Depois de meia hora negociando, ela escreveu: "hahahaha,” e em seguida disse que queria apenas conversar achando que eu servia para suprir suas necessidades afetivas. Adoro a humanidade, respondi-lhe com "emojis sorridentes." Ela devolveu o "adoro a humanidade" acompanhado com mais hahahas, e enfatizava que gostava muito de cordel, o que me deixou bastante preocupado em descobrir qual a relação de geladeira com poesia.

Outro sugeriu que eu a jogasse no lixo e outro ainda perguntou se era problema de junta. Como assim? Junta tudo e joga fora, kkkkkkkk. É nisso que dá um escritor tentar ganhar a vida montando um vuco-vuco. 

Mas a persistência não me abandonou, é tanto que perdi mais de duas horas escutando o marido gritar com a mulher para ela passar o pix. Não passo agora porque meu aplicativo está "pedindo" atualizações, disse a mulher em viva-voz. Era para ela ter visto isso logo cedo, resmungou ele depois de desligar o celular e coçar a careca precoce para um rapaz de pouco mais de vinte e oito acnes. Passei o dinheiro e ela agora me vem com essa! Por mim tudo bem, disse-lhe sabendo que existe todo tipo de golpe, sem que eu demonstrasse estar desconfiando.

Com muita luta, pude conferir o valor “entrado” na minha conta. Atrás tem umas rodinhas, e basta só levantar a frente que fica maneiro. Descemos o "quase descarte" pelo elevador. Eita!, cadê o homem do frete? Fui à recepção verificar. Está lá fora deitado na calçada, respondeu-me a recepcionista mastigando um "negócio" amarelo com “cara” de fritura. 

Em cima da caminhonete, a "gela" estava sendo amarrada com um certo tipo de cinto de segurança próprio para eletros. O ”senhorzinho” foi girando a manivela enquanto o mecanismo apertava-a na grade da cabine, isso tudo eu assistia do lado de dentro do portão. Fiquei a me perguntar se aquela sucata podia com a outra, observando a despedida de um "ser" que me acompanhou durante doze anos. Se fosse um filho, já estaria na pré-adolescência, a diferença é que eu jamais poderia vendê-lo.

Como é triste a vida de uma geladeira, pensava ela sendo levada para outra cidade. Nem me perguntaram se eu queria ir, agora fico sendo sacolejada neste carro velho, sujeita a sol e chuva sem nada por dentro para me sentir útil. Até o gelo das "caçambas" foi jogado fora. É como se tivessem comido meus pés, pois o depósito para guardar a água do desgelo enfiaram no meu congelador. Isto é lá vida!, continuava dizendo para si mesma enquanto tentava suportar as gargalhadas dos veículos buzinando.

O comprador não se "desligava" do celular. Sou professor de educação física, confessara no intervalo da briga entre ele e a mulher. Na "arrancada" do carro, deu para ver seu semblante de satisfeito por ter feito uma boa compra, e eu por ter me livrado do entulho. 

O motorista do “frete” ia pensando como pedir uma gratificação a mais por ter esperado além do combinado. Ficara debaixo de uma árvore e sem almoço esperando que seu cliente retornasse com a compra. Enquanto remoía suas feridas “mal saradas,” lembrou-se da mãe morta há um ano. Todo dia vinte de cada mês, ela vinha em forma de lembranças quando dizia ao menino obediente: meu filho!, estude para ser gente, e ele entendia estudar para ser agente, é tanto que se tornou, sim, agente penitenciário. Aposentou-se e arranjou um carro para "pegar frete" já que sua aposentadoria está toda comprometida com os nove filhos das viúvas do crime que se voltaram para ele com o objetivo de colher o sêmen de alguém com condições de pagar pensão. 

Que vergonha você me fez passar, disse, calmamente, o rapaz para a mulher entretida em atualizar o aplicativo. O homem poderia ter pensado que éramos estelionatários. Nunca mais vou deixar você resolver as coisas. Isso era para ser feito depois.  É, mas ia dar problema, pois preciso de likes no meu canal. Eu boto onde? Ali no canto. Papai, vamos fazer picolé? Aqui está o dinheiro do frete. Mas está faltando vinte. Depois eu pago o resto. Deixe-me levar estes mamãos em troca dos vinte que faltam!

O “fretista” saiu com um saco cheio da safra do quintal da sogra. Quando ela chegar vai achar ruim, mas eu digo que foram os meninos que comeram. Marido!, aquelas frutas davam para quase um mês de consumo, disse ela enquanto limpava o recém-chegado eletrodoméstico. Não pode ligar agora na tomada, senão queima. 

A menina, que estava fazendo o dever de casa, largou tudo para vir olhar a novidade. É bem colorida, quis se fingir de normal a portadora de daltonismo. É vermelha, disse o menino "tirador de onda." Ela fez que não ouviu, afinal precisava medir as palavras para não fazer seu irmão cadeirante chorar ao escutá-la dizer: fica na tua, aleijado. 

Distante alguns quilômetros, a sogra do rapaz calvo realizava a fantasia de um adolescente. Ela postara suas fotos no site de encontros dizendo ser professora de sexo. Os iniciantes poderiam procurá-la a qualquer hora do dia ou da noite que seus desejos seriam todos realizados.  

Três horas da tarde, o rapazinho, "gazeando aula" em combinação com o tio “sacana,” encontrava-se no ritual de iniciação. Seus quatorze anos não lhe dava direito a entrar num motel, porém sendo sobrinho do dono, sim, foi possível. 

O tio, quando garoto, sentia falta de alguém para lhe conduzir nesses assuntos, e depois que se tornou empresário da noite, não perde a oportunidade de conduzir os seus nessa ação secreta longe dos irmãos.  

A sogra nem se deu conta da falta das frutas quando chegou de volta com a “bolsa satisfeita.” Ela ainda era bem “arrumada.” Tivera sua filha aos treze anos de idade, sendo avó aos trinta, aos quarenta sentia-se uma mulher jovem com potencial para lá de bom, o que de fato era. Fazia academia, plástica, creme hidratante usava até no lavar dos pratos. Aquela especialista em massagem tântrica dispunha de Cleópatra, doméstica, enfermeira... dependendo da escolha do cliente, ela se fantasiava.

Na noite do dia seguinte, uma família inteira chupava picolé caseiro produzido numa geladeira recém-adquirida assistindo ao jornal e censurando a mulher madura, não identificada, que desvirginou um jovem inocente num quarto de motel de luxo. A polícia procura pistas do vendedor da geladeira, dizia a reportagem.        


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.03.2023 – 06h35min.



quarta-feira, 22 de março de 2023

A DISCÍPULA DE SUN TZU


A DISCÍPULA DE SUN TZU


A mosca pousou no birô. Num ambiente de trabalho com ar-condicionado, sala limpa, jamais um arquiteto pensaria numa mosca pousando na tela do computador logo que levantasse voo de onde primeiro fora avistada. 

Era um inseto grandioso, não diria que do tamanho de um grilo, mas um dos maiores representantes da espécie, ela, ou ele, seria a escolha acertada para o abate, se fosse um boi.

Ficava pousando e levantando voo logo que "espantada." Desaparecia, voltava, e eu digitando, até que, sem paciência, tive que parar o trabalho para tentar eliminar, de vez, a perturbação daquele final de expediente vespertino.

Alguém iria morrer esmagada, pensei com um brilho de sadismo nos olhos vesgos que mamãe pariu. Só nós dois na sala. O silêncio quebrado apenas pela busca incessante de onde ela teria se "socado." Procurava-a, batia nas pastas de arquivo, lixeirinha chutada por várias vezes, e nada. Voltava eu para o serviço, e logo lá vinha ela em voos rasantes fazendo-me crer que abria um largo sorriso ao passar perto do meu rosto. Tá de brincadeira, pensei depois de meia hora de luta. 

Houve uma vez que preferi bater palmas um pouco distante de onde ela estava. Calculei que ela voaria em direção à armadilha das duas mãos se juntando e então estaria consumado o assassinato. Quase que dava certo. Aha!, agora aprendi o "macete." Dá próxima, ela não escapa. Essa "próxima vez" chegou. Preparei o bote. Calculei a distância e fui me aproximando com "gosto de já ganhei." Quando executei o planejado, ela simplesmente levantou voo bem lentamente fazendo-me ficar com cara de dragão saciado. Que droga, resmunguei admitindo que ela deveria ter lido "A arte da guerra".  Uma grande estrategista, continuei trocando meu juízo pelo da mosca e ficando muito mais triste por ter perdido a batalha. 

Depois de reconhecer que minha inimiga era muito além do que pensei, foi que me veio a ideia de estudá-la. Na literatura diz que "as moscas enxergam cerca de 250 frames por segundo (um ser humano fica em aproximadamente 24). Trata-se de uma resolução temporal altíssima – é como se o tempo passasse em câmera lenta para esses animaizinhos."

Nessa hora, alguém bateu na janela de atendimento. Era o emissário entregando-me o comunicado sobre um jogo de futebol próximo a acontecer. Está lembrado de mim?, perguntou-me o motociclista entregador. Deu certo a multa? Deu!, o patrão assumiu porque foi ele que passou no sinal vermelho. Eu nunca trabalho aos sábados, e a foto da infração dizia que foi à tardinha. A pessoa ganha só um salário mínimo, resmungou ele, e ainda ter que pagar mais de duzentos por erros dos outros, é "fróide." Serviu de lição, né? O quê? Para você ficar atento e anotar todo o seu percurso, como lhe orientei da última vez. Isso mesmo! Despediu-se de mim, pegou o capacete numa das mãos, e com a outra encheu o copo d'água no bebedouro da recepção saindo dando uns pulinhos característico de pessoas “Nelson Ned.” 

Pápápá, dessa vez foi na porta lateral. Abri já um pouco constrangido. Sabia que essa porta deve ficar aberta? Por quê você a fechou?, perguntou-me em tom autoritário "uma sarada" se achando o caixão que levou a rainha para o tour. Fechei porque eu quis, disse sem querer prolongar a discussão, e completei apontando: o atendimento é por aquela janela. Não, enfatizou ela: nós, da parte interna, devemos ser atendidos por esta porta lateral. Não é! É sim!,  e assim ficamos repetindo esse "é" e "não é",  até ela resolver dizer: enfim!,  dê entrada nesse ofício e mande para o gabinete, viu? Não tem quem aguente um "viu" num final da frase. Tudo bem!, respondi mudando o olhar para a pobre folha prestes a ser vítima de um homem que adora rasgar papel.

Eu acho que a colega desistiu da peleja por saber que tenho o costume de varar a madruga numa teima. Toc toc toc, saiu no salto achando que seu rebolado iria amenizar o ódio que havia provocado. Fechei a porta sem bater, porém com a certeza que deveria mantê-la fechada de tal forma que nem pudesse passar um cabelo de bebê albino. Voltei bufando de raiva para o assento. A mosca passou gritando em voo rasante: deixe a porta aberta, seu trouxa! Tentei pegá-la no ar. Se estando parada já era difícil, imaginem voando. Meus batimentos cardíacos convidaram-me para uma dose de indapamida. Calma, respire, disse a mim mesmo lembrando-me do repórter no debate político. 

Dei entrada à documentação, desliguei computador e impressora e fechei a porta com duas voltas. Fui para casa nada satisfeito com as visitas de última hora.

Nem consegui dormir direito. Tomei banho, toquei uma música, e quando relaxei, vieram os pesadelos com uma mosca pilotando uma moto e mandando uma rata de saia arrombar minha porta.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.03.2023 - 06h06min.




segunda-feira, 20 de março de 2023

O PARTO DA CRIAÇÃO - Heraldo Lins



O PARTO DA CRIAÇÃO 


Ai meu Deus!, o sono é grande e eu aqui com um texto para ser concluído. Como será daqui a dez minutos? Perguntas existirão enquanto houver futuro, isso eu sei, só não sei como continuar.

Agora, mais do que nunca, preciso concluí-lo para me manter estimulado. Novamente a exclamação de cunho religioso foi dita, porém não registrada para não ficar enfadonha essa já denunciada falta de rumo.

As almofadas gritam por eu estar sentado em cima delas. Espero que chegue uma boa ideia nesta manhã de segunda-feira, nem que seja em lombo de jumento. Parece que as ideias estão com ressaca teimando em permanecerem deitadas. É bom ir dizendo sem me preocupar com o que digo. Se eu ficar analisando e me retratando, aumentará minha dor de cabeça, e hoje não estou a fim de pedir desculpas, vai assim mesmo, "no bolo."

Lá vêm as duas unhas dos polegares se juntando. Desde ontem que elas insistem em marcar presença. Não tem nenhum significado, mas mesmo assim elas são incluídas, como se pode ler. Em seguida, vêm as cutículas reivindicando, também, um reconhecimento. Daqui a pouco, até o sujo da panela vai querer seu espaço na literatura.

Os andarilhos vivem andando, assim como os parados tornam-se parasitas. Eu sou os dois ao mesmo tempo. Por falar em tempo, com outro significado, percebo que o sol está chegando dentro do meu apartamento. Igual às gaivotas pescando, fico olhando ao redor e catando qualquer coisa que sirva para dar de comer à página. Vamos lá, você vai conseguir manter mais de quinhentas palavras afixadas sem que precise "detoná-las." Levante a cabeça. Nada disso!, preciso deixar a "vista” pendurada para que o senso não fuja. As pernas estão querendo levantar o corpo e sair andando. A cabeça grita: vão sozinhas! Como!?, se estamos acopladas? 

O comando mental se esforça para administrar o conflito. Frases curtas é a melhor forma de ir preenchendo a página, ressalta o analista pago para censurar.  Poderia fazer uma lista das coisas que existem numa feira livre, entretanto preciso correr atrás de algo bem mais interessante. Tento até dizer que o verdadeiro herói de Quixote foi Sancho Pança, mas ninguém iria acreditar. A mentira tem que ter lógica, e nem isso está "pintando", no entanto, insisto no ditado que quem não tem cão nem gato também caça. 

Pare tudo, porque estou no banheiro, diz a "vergonha." Continue, diz o órgão essencial reivindicando que seu nome seja enaltecido. Minha importância precisa ser divulgada, insiste ele. O autor aborta a ideia de falar do órgão que o proctologista cuida. Aqui não é espaço para que Marquês de Sade seja relembrado. 

Resolvo sair de casa! Não aguento tanta indecisão e falta de criatividade. Abro a porta e a deixo escancarada só para fugir da lógica da segurança. Preciso virar de ponta-cabeça todas as minhas crenças tentando, com isso, chegar a uma sequência plausível. 

Há um elevador, mas prefiro descer pela escada, só de raiva. Em cada andar, há baldes para lixo. Ao lado de um deles, pego um objeto seminovo. Dá para conseguir um bom dinheiro com esse luxo. Volto para o apartamento. Encontro-o cheio dos gatos da vizinha. Trinta e dois ao todo. Só consegui matar vinte. 

Alô! dona faxineira!? Quero seus serviços, agora! Se for para isso, vai custar o dobro. Não é só para limpar não, é também para que a senhora confesse ser a  autora do zoocídio. Vou ser presa. Sua filha quer fazer o curso de direito e eu estou disposto a pagar até especialização, em troca desse favor. Tudo bem!  O que não se faz por uma filha, não é!? Aproveito e caso com ela, o que a senhora acha? Boa ideia. Vou "pra'i" agora com ela já vestida de noiva. Ótimo. 

Saio novamente, dessa vez fecho a porta e coloco os gatos num saco preto. Desço pelo elevador. As únicas testemunhas são os outros bichanos que escaparam, então está de boa. 

Caso com a filha da faxineira. No primeiro dia dorme junto da mãe. Ainda não foi descoberto o assassino dos gatos. Segundo dia, a mãe a obriga a dormir, novamente, longe de mim por conhecer minha índole.

Vizinha, eu sei quem matou os seus gatos. Sabe? Está dormindo com a filha neste quarto. Chame a polícia que testemunho e até apresento a prova guardada no porta-malas.

A velha foi presa e fiquei me deitando com a outra testemunha, afinal eu estava só precisando de uma "boa esposa."


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.03.2023 - 08h19min.



domingo, 19 de março de 2023

AVANÇOS PRISIONEIROS



 AVANÇOS PRISIONEIROS 


Com o novo aplicativo, basta ir falando para que o texto vá tomando forma. É fantástica essa tecnologia de "aparafusar palavras" como se fosse uma montadora de automóveis. 

Se antes eu sentia dificuldade em "cravar" o raciocínio, agora em poucos minutos estou desocupado. Claro que o texto vai sendo construído sem a pontuação, mas um "ponto" aqui e uma "vírgula" acolá nunca matou ninguém. 

Neste momento, fico em silêncio contando os segundos necessários para que a função seja desabilitada. Em fase de teste, descobri que se nada for dito é imprescindível clicar novamente no espaço em branco para só então o desenho do microfone reaparecer. 

Cheguei ao futuro tanto imaginado e fico esperando que o avanço tecnológico apresente um aplicativo que, sozinho, aprenda por nós, construa pontes etc. Esse é o sonho dos preguiçosos sendo realizado, ainda bem, pois eu já nem aguentava tanto digitar "do, de, que."

Daqui a pouco, qualquer pessoa poderá ser transformada em Machado de Assis, José de Alencar ou mesmo em Shakespeare, desde que ela consiga concatenar e expor as ideias através da fala.

Depois virão outros aplicativos para habilitar o pensamento, um específico no registro dos sonhos, pesadelos, e até para formatar esquecimento existirão vários. Fico a imaginar que após cada noite dormida teremos um "tijolo" pronto para ser publicado.

Se a pessoa sonhar e não se lembrar, vai ao aparelho conferir o que o seu inconsciente "vomitou" durante a noite. Coisas que vivem enclausuradas virão à tona sem que o sonhador possa ser levado aos tribunais pelo que guardou no pensamento. Poderemos acessar os nossos planos maliciosos e também atos falhos carregados de significados, sem esquecer que a nossa essência estará sendo exposta através do que foi registrado. 

Dizem que menos de 1% do sonhado é lembrado, entretanto com essa "nova tecnologia do amanhã," iremos saber de onde viemos, quem realmente somos e para onde vamos. Alguns defendem que nascemos apenas para a negatividade, pois a vida mostra que uma amizade construída durante décadas vai abaixo com apenas uma ingratidão; apropriação indébita, realizada por um dos sócios, faz a empresa se desmanchar da noite para o dia; basta apontar um dedo que o vizinho se torna nosso inimigo, e é assim que vai se fortalecendo o argumento da negatividade sem nos darmos conta que é isso mesmo que acontece diariamente debaixo do nosso nariz.

Eu sempre gostei de inserir vários assuntos num só tema, agora ficou bem mais fácil. Vou falando e vendo as letras pularem sem fazer nenhuma objeção, e quanto mais vejo o produto final sendo fixado, mais faço discursos pelo simples prazer de discursar. 

Descobri esse novo brinquedo e acho que hoje não durmo por saber que vou poder passar a vida inteira enchendo páginas sem me preocupar com o cansaço. É como se eu andasse com várias copistas anotando o que expresso.

Depois de aperfeiçoado, esse aplicativo irá colocar a pontuação, fará a correção ortográfica, e, pela entonação da voz, escolherá a palavra exata para o preenchimento. Poderei colocar onomatopeias que os sons correspondentes serão ouvidos na mesma hora que os olhos do leitor passar por essas figuras de linguagem. 

Neste momento, a mulher está fazendo pipoca rodeada por um final de tarde nublado, câmbio! Meus textos agora irão ter a "cara de rádio amador," câmbio! Acho que este último parágrafo devo apagar. Nada disso, responde o aplicativo me fazendo refém, câmbio. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.03.2023 - 16h58min.



sábado, 18 de março de 2023

O RISO DO MANDACARU - Jair Elói de Souza






O RISO DO MANDACARU

O primeiro broto aflora em plena estiagem, mais um dia, outro. Mais dias, os demais. Embora em cores verde e vermelha, se abotoam nas galhadas como jabuticabas em tempos de prenhez...
E logo as flores riem para serem molhadas pelas chuvas de verão...
Não há óbice em dizer, que elas são como velhos e pontuais amantes, que mesmo com seus sobretudos, molham-se na chuva, mas estão a postos, para o abraço na estação...
É assim o riso do mandacaru no Sertão. Um poema que tem rimas que fazem a cabrocha da janela, olhar pra si e alhures, ainda mais, naquele que pensa nela...
A flor do cacto, nesses trópicos nordestinos, fez de Zé Dantas poeta, compositor. Despertou os solfejos de concertinas, fez dos toques em pé-de-serra, dançar-se em salas de reboco...
J.E.S.




Todas as reações

sexta-feira, 17 de março de 2023

O MOINHO DO TEMPO - Heraldo Lins



O MOINHO DO TEMPO


Espero o "consertador" do chuveiro, e nessa espera me acompanha o desconforto da ansiedade. O nariz não dói, mas escorre e espirra. Deve ter sido porque resolvi extrair os cabelos que teimam em crescer sem a minha permissão. Enquanto penso, encontro um toco de unha chamando minha atenção sem que eu me lembre de ter roído. 

O alarme toca para que eu volte ao banheiro e retire o xampu contra coceira. Enquanto o mundo está disparado, continuo me preocupando com minhas eternas caspas. Já fui aos dermatologistas e acho que é catimbó. Só pode ser. Minha vontade é arrancar o tampo da cabeça com uma serra elétrica. É por isso que o destino das pessoas está, proporcionalmente, ligado ao grau de coceira que ela sente. 

O técnico "chuveirento "chega anunciado pelo interfone. Quando ligo o misturador o fogo apaga. Eu não mexo com aquecedor a gás, não. O senhor pediu o conserto para chuveiro elétrico, e esse eu nem sei usar.  Rapaz, foi mal. Desculpe aí! Tudo bem! vou só tirar a foto para mostrar à empresa. 

A seguradora não cobre esse serviço, disse-me Daniele, a atendente sem perfil. Nem sei se é mulher mesmo. Do outro lado da "escuridão dos relacionamentos obscuros," não se tem como dizer isso ou aquilo, o fato é que voltei à estaca zero.

Estaciono o pensamento exatamente às oito da manhã e fico em busca do replanejamento para evitar tomar banho frio. Eu que nunca gostei de banho, agora vou ter que encará-lo na temperatura ambiente. Lá na Islândia, é um por semana, aqui tem que ser dois diariamente, e isso é torturante. Uma tamanha perda de tempo, porém o sacrifício é compensado pela neutralização dos comentários: "aquele bicho fede muito," saído da boca das moçoilas. 

Coço a cabeça em busca de um naco de conversa. Mil coisas eu poderia dizer sobre o filme baseado em fatos reais que assisti ontem, porém nada acrescentaria ao meu bem-estar. Prossigo "puxando" contos, romances e até há uma tentação de falar da situação de refém pela qual estamos passando. A cabeça dói dizendo que estou forçando-a com o curso que me propus a fazer. 

Visualizo uma mensagem perguntando quanto é a balança antiga que coloquei à venda. Já vendi, obrigado. Quase ninguém sabe que vendo coisas pela internet. Dia desses, um amigo ofereceu o computador para que eu negociasse. Tudo bem, você me diz quanto de memória, a potência do processador etc., aí dá certo. Eu não quero dizer. Você quer que eu venda, mas não quer fornecer as informações sobre o produto, é isso? Isso mesmo! Você pega lá em casa, expõe à venda e pronto. Fiquei olhando para ele achando que um de nós dois era doido. Será que estou ficando esclerosado?, perguntei a mim mesmo. Nem fui lá buscar a peça. E o pior é que ele enfatizou bastante o "não quero dizer" que até me fez procurar o psiquiatra para renovar minha medicação. Achava que meu diagnóstico de esquizotimia tinha sido intensificado, mas não, há sim pessoas mais estranhas do que eu, e esse meu amigo ganha disparado. 

Nós quatro fomos jantar num luxuoso restaurante e ele com um blusão surrado, barba por fazer, calção furado, montado em desgastadas sandálias de dedo; uma camisa por dentro, escrito: shazam! Essa camisa você gosta, né? É porque eu uso uma camisa a semana inteira, disse ele com um sorriso sarcástico olhando para a sua mulher em busca de apoio. Legal, respondi meio que constrangido olhando para a minha que tomava vinho... gut gut gut...

Visualizei mais uma mensagem de parabéns pelo meu aniversário. Nem fui trabalhar para não ter que dizer obrigado pela manifestação de apoio por eu estar vivo. Acho uma besteira grande se comemorar aniversário, e tenho quase certeza que deixei de fazer show de mamulengos exatamente por ter que ir a um todos os dias. É big, é big... é b... pensava eu sorrindo e trincando os dentes acompanhando as palmas na maior cara de pau, afinal o mundo é feito de bons e agradáveis relacionamentos.

Mas a mensagem mais “escrota” que recebi foi elaborada pelo robô de um site de vendas:

"Hoje é um dia muito especial, não é mesmo? 👀

Parabéns, Heraldo! 🎉

Seu aniversário é mais que um dia no calendário: é o início de uma nova temporada. ✨

E nada melhor que celebrar a vida com os amigos e a família que você ama dando aquele abraço que ficou engavetado 💞, comendo uma comida gostosa feita só pra você 🎂, conhecendo um novo lugar na sua cidade 🌃, assistindo aquele filme legal que você ainda não viu 🎥.

Ah, são tantas coisas que a gente guardou pra fazer, né?

Pense que este novo ano é um filme e você é a grande estrela! ⭐

Brilhe e viva intensamente, é o que eu mais desejo pra você! ✨

E lembra que estou sempre aqui, viu? Torcendo por você e celebrando junto! 💙"

Vou deixar de fazer compras virtuais. Até as máquinas já sabem o dia em que eu saí daquele túnel cheio de gosma parecendo uma “briba” ensebada! É mole, hem!


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 17.03.2023 - 09h26min.





quinta-feira, 16 de março de 2023

ERA UMA INFINITA VEZ

 


ERA UMA INFINITA VEZ 


Acredito que a indústria de tecidos ainda hoje procura a fórmula da tinta que pintou o vestido de chapeuzinho. Desde que "me entendi por gente," nunca desbotou. Pelo tempo, deveria estar praticamente branco ou, no máximo, róseo. 


Por outro lado, a medicina veterinária procura classificar a genética do lobo, já que ele continua sem envelhecer e sem se regenerar. Mas eu não sou mau, disse ele em um seminário onde foi convidado para se explicar. Na explanação, falou que a natureza o fez carnívoro, e se isso for maldade, os humanos também, em relação à vaca.


A turma lá do fundo aplaudiu de pé. Isso mesmo, disse o representante dos caçadores. Vivem nos acusando de malvados só porque redirecionamos nossa atividade para bancos, reféns e drogas, mas isso somente aconteceu quando o dono da floresta nos proibiu de caçar.

 

Protesto! gritou a vovozinha chegando em uma cadeira de rodas. Vocês poderiam ter comprado uma padaria e serem fornecedores de bolinhos, mas não, têm armas e acham que podem incendiar e roubar.

 

Calma, mamãe, disse a filha rodando seu vestido alugado para o evento. Meu marido não é nenhum bandido, ele apenas trabalha em prol da indústria "celulárica". A senhora já pensou se não fosse a nossa turma tomando dos ricos?, a indústria não teria para quem vender seus produtos depois que aquela classe tivesse sido abastecida.


Quem diz calma agora sou eu, dono da floresta. Vamos deixar de confusão porque essa lei impedindo as caçadas fui eu quem decretou, mas também não é para seguir ao pé da letra. Ela serve para manter alguns acreditando nela, e assim conseguirmos cobrar impostos. 


Questão de ordem, levantou-se o vendedor de armas. Precisamos fazer leis de acesso para quem possa comprá-las, e jamais concordarei em  deixar somente os caçadores com essa licença. 


Cadê o lobo?, ouviu-se no meio da discussão. Encontraram-no palitando os dentes no coffee break. O mestre de cerimônia havia sumido e chapeuzinho distribuía bolo para a plateia, enquanto os acordos firmados, com a indústria bélica, permaneciam correndo nos bastidores.


Por que a pausa para o café?, perguntou um menino que havia comprado vários volumes da saga e continuava sem saber o motivo principal que os animais tornavam-se humanizados nessas histórias, aparentemente, infantis.


Ninguém deu a devida atenção à criança, tendo em vista que a discriminação continuava sendo praticada em ambientes lotados de adultos. Será que é por isso que os pequenos correm tanto quando estão juntos dos grandes?, alguém sussurrou no momento em que o fazedor de cestos sugeria, em forma de pergunta: que tal reescrever a história excluindo aquela parte mentirosa de abrir a barriga do lobo e a vovó sendo retirada viva? Essa nao!, porque significo a esperança e, mesmo sendo a última que morre, se for seguir a lógica de sobrevivência dentro de um lobo, baleia etc.,  faltará gente para sustentar os nossos privilégios.  


É melhor deixar do jeito que está. Vamos incutir que devem obedecer às leis, e para quem não se conformar com as desigualdades sociais usamos os fora da lei para eliminá-los, o que acham?  Eu vou poder continuar comendo as avós? Acho melhor que o lobo passe, literalmente, a comer todo mundo.  Então eu serei promovida à morte? Você sempre representou isso mesmo. Ah!, Agora entendi porque a vovozinha foi retirada com vida!, exclamou o fã deduzindo que ela havia sido vítima de uma parada cardíaca “desmaiante”. Se os caçadores foram os médicos “ressuscitadores,” eu fui o quê?, perguntou chapeuzinho. Você sempre foi o coração da vovó, e é por isso que sua roupa é da cor de sangue, respondeu sua mãe se revelando uma das autoras da nova releitura do clássico.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.03.2023 - 08h36min.



quarta-feira, 15 de março de 2023

PROCURADO - poema de J. Luz


DOMÉSTICA EMPREENDEDORA - Heraldo Lins

 


DOMÉSTICA EMPREENDEDORA


Por enquanto, vou deixar vir à tona a realidade dos bastidores. A preguiça de pensar está tão fortificada que prefiro aproveitar qualquer coisa, inclusive dizer que seria ótimo voltar a dormir. 


Interrompo a falta de ânimo para ir ao banheiro e no percurso bato com a "canela" na quina da cama.  Saio mancando só pensando em voltar ao leito para massagear essa... filha da mãe pra doer! Segurando-me na pia, esfrego a perna com o pé direito. 


Que tal falar da violência? Não, já basta essa cama. Procurando o assunto do dia... e então... molhei a cueca. Ando meio distraído. Esqueci de tirar a bicha pra fora e a umidade veio até o joelho. É melhor jogar na máquina e tomar logo um banho. Fico esperando a água que não esquenta. Agora me lembrei que cortaram a energia. Vai frio mesmo. O sabonete caiu. Acho que o “movimento interplanetário” está querendo que eu fique sujo, mas como sou teimoso... Ô..., venha apanhar o sabonete que caiu! O senhor está nu, e dona esposa não vai gostar de saber que eu estava no banheiro apanhando o sabonete para Vossa Excelência. É melhor o senhor sair que eu entro, mas bote pelo menos uma toalha cobrindo esta pequena bela adormecida. Olha que eu posso lhe demitir. Por causa de um sabonete? Não, por causa da "pequena bela adormecida". Desculpe-me, aqui está o sabonete. Dá para o senhor largar meus peitos? Deixe só um pouquinho. Nada disso, os ovos estão queimando e preciso voltar para cozinha. Se quer alguma coisa além do cardápio, esforce-se porque com esse "balango" com cara de sete a um, não me animo. 


Não tenho mais "moral" para com minha empregada. O senhor quer ovo ou linguiça? Faça um cuscuz e me chame quando estiver pronto que eu estou doido para comer o seu cuscuz. Odeio cuscuz, mas é a única forma de falar com duplo sentido e entrar no clima. Se não fosse as marcas de "bexiga" nas pernas dela, eu casaria na hora. Pelo jeito o senhor quer um serviço extra hoje, né? Preciso pagar a luz, mas se você contar como sendo um brinde, tô dentro! Nem água. Já dei muitos brindes ao senhor. Hoje, só com o dinheiro na frente. 


Volto para a cama. Princesa! O que é? A caneta caiu. Também hoje tá tudo caindo. Bote perto dessa outra caneta. Homem, pelo amor de Deus!, o serviço vai atrasar. Venha se deitar aqui comigo. Estou suada, e hoje de manhã meu marido já bateu o ponto e nem deu tempo eu tomar um banho. Mesmo que eu quisesse tirar o cheiro de bacalhau, lá em casa estava faltando água. Você pelo menos lavou as mãos para fazer meu café? E precisa? O senhor mesmo disse que o meu tempero é o melhor. É, mas esse misturado com o do seu namorado, não fica bom. Minha colega disse que evita o câncer. Ela é médica? Não, vende pastel e dindin num "carrim."


Preciso me concentrar no texto, mas essa viagem da esposa me tirou da zona de conforto. Eu nem sabia que estavam querendo acabar com o estado de direito, e isso também me afetou. Dá um desânimo quando a rotina é quebrada que chego a pensar em “escapulir.”


Pronto!, o café está servido. Eu gostaria de inovar. Como assim? Colocar você deitada no chão com meu prato em cima das suas nádegas, o que acha? Aqui está a conta de água lá de casa. O senhor junta com a sua luz e paga tudo junto, pode ser? Deixe-me forrar com uma toalha. Está gostando? Acho que vou dormir um sono! Quando o senhor terminar, me acorde.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.03.2023 - 08h55min.



terça-feira, 14 de março de 2023

DIA 14 DE MARÇO - José de Castro

 

DIA 14 DE MARÇO


Hoje é o Dia Nacional da Poesia,

em memória a Castro Alves.

Mas há outras memórias não tão alegres

que pairam no ar.

Há quatro anos, assassinaram Marielle.

Quem mandou calar aquela voz de maneira

tão brutal e covarde?

Até quando ficarão impunes, na sombra,

os criminosos?

Silenciaram a voz da mulher que clamava por justiça

a outras mulheres, negras como ela.

A mulher que deixou sua marca, seu registro de luta

pelos direitos de tantos oprimidos.

A poesia se entristece.

Marielle se foi e a poesia chora.

Mas sua lembrança permanece.

Dia 14 de março.

Hoje é o Dia Nacional de Marielle,

a poesia da dor que não se cala.

E seguirá clamando por justiça,

até que se esgotem todas as rimas

de tristeza, ausência, luto, impunidade e vergonha.

E que a poesia seja um brado eterno

da justiça que não se cala.

Viva em nós Marielle!


José de Castro, 14/03/2022



CASTRO ALVES E MARIELLE FRANCO EM 14 DE MARÇO - Gilberto Cardoso dos Santos

 


CASTRO ALVES E MARIELLE FRANCO EM 14 DE MARÇO

14 de março é um dia duplamente significativo. Tornou-se o Dia Nacional da Poesia, estabelecido em homenagem a Castro Alves, o poeta dos escravos; e também dedicado, a partir de 2018, à memória de Marielle Franco, assassinada nessa data.

Ambos, afrodescendentes; ambos eloquentes, famintos e sedentos por justiça. Um na prosa outro na poesia, fizeram de sua voz e escrita armas em prol dos  desfavorecidos. Tanto Castro Alves quanto Marielle Franco foram malvistos por causa de seus ideais humanistas.  Arriscaram-se em prosa e verso.

 Em ABC de Castro Alves, Jorge Amado o descreve como “um democrata na mais pura acepção da palavra” e o chama de “pai da poesia negra da América”. Apesar de Leminski belamente ter dito que a poesia é um inutensílio, vemos nos versos de Castro grande utilidade.

A feminista Marielle, múltipla em seu lugar de fala, era poética em sua prosa. Disse ela: 

“As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando de nossa existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas.” 

"Lutar com palavras é a luta mais vã", escreveu o poeta Drummond. E muitas vezes é assim que nos parece. Mas Marielle incomodou tanto com seus discursos que tentaram silenciá-la da forma mais brutal. À semelhança do que ocorreu com Abel, seu exemplo e martírio não param de clamar. Marielle era um poema. Quantos versos e canções a ela têm sido dedicados desde então!

Hoje, O Dia Nacional da Poesia não é mais comemorado no Brasil em 14 de março, pois foi mudado para 31 de outubro em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Uma pena isso ter ocorrido.

Castro Alves e Marielle viveram poeticamente. Colocavam-se no lugar dos injustiçados, sofriam com eles. Falaram pelos sofredores.

Nada melhor que tê-los em um mesmo dia, unidos pelo olhar poético.


Gilberto Cardoso dos Santos