quarta-feira, 22 de março de 2023

A DISCÍPULA DE SUN TZU


A DISCÍPULA DE SUN TZU


A mosca pousou no birô. Num ambiente de trabalho com ar-condicionado, sala limpa, jamais um arquiteto pensaria numa mosca pousando na tela do computador logo que levantasse voo de onde primeiro fora avistada. 

Era um inseto grandioso, não diria que do tamanho de um grilo, mas um dos maiores representantes da espécie, ela, ou ele, seria a escolha acertada para o abate, se fosse um boi.

Ficava pousando e levantando voo logo que "espantada." Desaparecia, voltava, e eu digitando, até que, sem paciência, tive que parar o trabalho para tentar eliminar, de vez, a perturbação daquele final de expediente vespertino.

Alguém iria morrer esmagada, pensei com um brilho de sadismo nos olhos vesgos que mamãe pariu. Só nós dois na sala. O silêncio quebrado apenas pela busca incessante de onde ela teria se "socado." Procurava-a, batia nas pastas de arquivo, lixeirinha chutada por várias vezes, e nada. Voltava eu para o serviço, e logo lá vinha ela em voos rasantes fazendo-me crer que abria um largo sorriso ao passar perto do meu rosto. Tá de brincadeira, pensei depois de meia hora de luta. 

Houve uma vez que preferi bater palmas um pouco distante de onde ela estava. Calculei que ela voaria em direção à armadilha das duas mãos se juntando e então estaria consumado o assassinato. Quase que dava certo. Aha!, agora aprendi o "macete." Dá próxima, ela não escapa. Essa "próxima vez" chegou. Preparei o bote. Calculei a distância e fui me aproximando com "gosto de já ganhei." Quando executei o planejado, ela simplesmente levantou voo bem lentamente fazendo-me ficar com cara de dragão saciado. Que droga, resmunguei admitindo que ela deveria ter lido "A arte da guerra".  Uma grande estrategista, continuei trocando meu juízo pelo da mosca e ficando muito mais triste por ter perdido a batalha. 

Depois de reconhecer que minha inimiga era muito além do que pensei, foi que me veio a ideia de estudá-la. Na literatura diz que "as moscas enxergam cerca de 250 frames por segundo (um ser humano fica em aproximadamente 24). Trata-se de uma resolução temporal altíssima – é como se o tempo passasse em câmera lenta para esses animaizinhos."

Nessa hora, alguém bateu na janela de atendimento. Era o emissário entregando-me o comunicado sobre um jogo de futebol próximo a acontecer. Está lembrado de mim?, perguntou-me o motociclista entregador. Deu certo a multa? Deu!, o patrão assumiu porque foi ele que passou no sinal vermelho. Eu nunca trabalho aos sábados, e a foto da infração dizia que foi à tardinha. A pessoa ganha só um salário mínimo, resmungou ele, e ainda ter que pagar mais de duzentos por erros dos outros, é "fróide." Serviu de lição, né? O quê? Para você ficar atento e anotar todo o seu percurso, como lhe orientei da última vez. Isso mesmo! Despediu-se de mim, pegou o capacete numa das mãos, e com a outra encheu o copo d'água no bebedouro da recepção saindo dando uns pulinhos característico de pessoas “Nelson Ned.” 

Pápápá, dessa vez foi na porta lateral. Abri já um pouco constrangido. Sabia que essa porta deve ficar aberta? Por quê você a fechou?, perguntou-me em tom autoritário "uma sarada" se achando o caixão que levou a rainha para o tour. Fechei porque eu quis, disse sem querer prolongar a discussão, e completei apontando: o atendimento é por aquela janela. Não, enfatizou ela: nós, da parte interna, devemos ser atendidos por esta porta lateral. Não é! É sim!,  e assim ficamos repetindo esse "é" e "não é",  até ela resolver dizer: enfim!,  dê entrada nesse ofício e mande para o gabinete, viu? Não tem quem aguente um "viu" num final da frase. Tudo bem!, respondi mudando o olhar para a pobre folha prestes a ser vítima de um homem que adora rasgar papel.

Eu acho que a colega desistiu da peleja por saber que tenho o costume de varar a madruga numa teima. Toc toc toc, saiu no salto achando que seu rebolado iria amenizar o ódio que havia provocado. Fechei a porta sem bater, porém com a certeza que deveria mantê-la fechada de tal forma que nem pudesse passar um cabelo de bebê albino. Voltei bufando de raiva para o assento. A mosca passou gritando em voo rasante: deixe a porta aberta, seu trouxa! Tentei pegá-la no ar. Se estando parada já era difícil, imaginem voando. Meus batimentos cardíacos convidaram-me para uma dose de indapamida. Calma, respire, disse a mim mesmo lembrando-me do repórter no debate político. 

Dei entrada à documentação, desliguei computador e impressora e fechei a porta com duas voltas. Fui para casa nada satisfeito com as visitas de última hora.

Nem consegui dormir direito. Tomei banho, toquei uma música, e quando relaxei, vieram os pesadelos com uma mosca pilotando uma moto e mandando uma rata de saia arrombar minha porta.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.03.2023 - 06h06min.




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