quarta-feira, 27 de setembro de 2023

"BEIJO DE MOÇA DO MATO TEM GOSTO DE MELANCIA" - Hélio Crisanto

 


"BEIJO DE MOÇA DO MATO

TEM GOSTO DE MELANCIA"  ( Mote de Gregório Filomeno)

 

Beijo de moça grã-fina

Tem essência de Chanel

Seus lábios feito a pincel

Têm um brilho que fascina

Já a moça campesina

Se perfuma à revelia

Não goza de regalia

O seu perfume é barato

Beijo de moça do mato

Tem gosto de melancia.

 


DIÁLOGOS DO INCONSCIENTE

 


DIÁLOGOS DO INCONSCIENTE


A menina ficou contente porque ia viajar. No dia da partida, acordou logo cedo por estar com dor de cabeça. Retificando: quem estava com dor de cabeça era o escritor, pois desde ontem que não encontrava essa menina para colocar numa frase. Ela se levantou da rede suja. Tão pobre que sua casa estava cheia de goteiras pingando no chão batido. A noite toda recebendo pingos de chuva, para ela já fazia parte da sua vida desconfortável. 

Por que você não apareceu antes, menina? Eu lá sabia que você me queria para inserir nas suas histórias!? Então, os pais dela pegaram os sacos cheios de roupas e meteram os pés na estrada. Eu não posso ir nem de bicicleta? Você não tem bicicleta. Andaram e andaram que ficaram com os pés cheios de bolhas. Acredito que já estou com fome. Isso mesmo. Nos lugares que passavam nem tinha o que comer e nem beber e ficaram durante cinquenta dias sofrendo desnutrição acentuada e desidratação no último grau. Isso é humanamente impossível. Você é minha personagem, e eu faço você passar pelo que eu quiser, além disso não vou apagar o que escrevi. 

Ela, mesmo assim, continuava contente. Mentira, como é que eu estaria contente depois de sofrer fome e sede? Você é minha prisioneira, lembra-se? Quando chegou a um lugarejo, as pessoas eram muito mais pobres e, além disso, estavam todos com lepra. Quando eu vou comer? Calma, mas eles tinham um coração tão bondoso que ofereceram comida e bebida da melhor qualidade. Muito bem, obrigada. Ela comeu juntamente com... seus pais ou com os leprosos? Claro que foi com meus pais. Não, porque seus pais já haviam morrido no caminho. Você não tem o direito de matá-los.

Ela só não morreu juntamente com eles porque furtou um pedaço de rapadura que ele guardava no bolso. Além do sofrimento, você me coloca como ladra. Depois que deixou seus pais para os urubus comerem... Peraí, eu jamais iria abandoná-los dessa maneira. Pois abandonou, já que não tinha como cavar covas e, ainda por cima, você estava muito fraca. 

Ela jantou com os leprosos e foi para o quarto. Quando estava quase pegando no sono, chegou uma velha e a obrigou a lavar a louça sob ameaça de lhe contaminar. Assim é demais, além de cansada ser obrigada a lavar a louça! Isso mesmo. 

Quando ela chegou à cozinha, havia montes de pratos para serem lavados, pois só quando aparecia alguém sadio era que aquilo acontecia. Pela manhã... eu já morta, diga logo, ela estava cheia de lepra. Mate-me, seu sem inspiração que quer aparecer às minhas custas. Calma, não me atrapalhe.  

Ela havia sido contaminada e apresentava as feridas mais feias do mundo. O que é que você tem contra mim? Aquilo doía tanto que ela teve vontade de morrer. Eu poderia querer ficar curada, não restam dúvidas. Só que os outros infectados não deixaram ela cortar seu próprio pescoço. Por quê? Precisavam dela para lavar a louça. 

Os dias foram se passando com ela trabalhando em troca de comida, que por sinal já estava toda estragada. Eca!, eu não como comida estragada! A carne estava cheia de tapurus, no entanto ela comia, de encher a boca, aquela guloseima que servia para aliviar as dores. Eu pensava que estava de boa, só agora foi que descobri que hanseníase causa dores. Isso mesmo! Você sentia dores terríveis e uma vontade grande de se jogar no desfiladeiro. Posso escrever minha própria história? Tudo bem. Vou aqui ao banheiro e volto já. 

A menina rezou tanto que ficou logo curada, enquanto isso o escritor permanecia com uma tremenda dor de barriga defecando sangue. Ele gemia com dores até sair uma lombriga da sua barriga que parecia uma anaconda... 

Voltei garota. Ainda bem que essa anaconda foi fruto da sua imaginação. Na verdade, ela continuava com lepra e sem chance de escapar da maldade do autor. O que aconteceu foi só um cochilo vingativo que não vingou, pois o escritor foi rápido e assumiu o poder a tempo de vê-la sofrer ainda mais.  

Depois, a menina fugiu. Ufa!, ainda bem que aconteceu uma coisa boa. Lá, distante muitas léguas, encontrou um hospital especialmente construído para cuidar de hanseníase. Obrigada mais uma vez. Agora sim, vou progredir na vida. Quando as enfermeiras avistaram aquela menina sem um braço comido pela infecção... Homem!, você estava tão generoso. Agora, é melhor dizer que caí seca sem vida. Sem um braço é demais. As enfermeiras a acolheram e logo lhe internaram na UTI. Aí, a partir daquele momento... Eu fiquei boa, coloquei prótese e levo uma vida confortável. Nada disso. Ela ficou cega. CEGA? Tateava e chorava se lembrando dos tempos bons quando só tinha perdido um braço. Era lá bom, você é quem está dificultando ainda mais para que eu sinta saudades de um pequeno relativo sofrimento. 

Mesmo assim, os médicos descobriram que algumas partes dos olhos dela seriam aproveitáveis para transplante, então retiraram e colocaram apenas algodão nos buracos. Ela nunca gemeu, de tão ruim que era. Quem lhe disse que eu era ruim? Quando tinha apenas seis aninhos, matou a irmãzinha sufocada com um travesseiro. Eu nunca tive irmã, seu cabra safado. Você está querendo é justificar essa tortura. Aos sete anos, sua mãe teve outro bebê que ela jogou no fogo. Não podia ver uma criança que logo matava, retalhava e comia os restos. Vá mentir pra lá. Eu nunca fiz isso. Depois de cega, ela ficou sem poder defecar. Colocaram uma sonda e nem andar direito ela conseguia por causa de uma das pernas amputadas. Quer dizer que eu fiquei também perneta, foi? Assim é demais. O maior defeito dela era ser ansiosa. Queria saber tudo que fosse acontecer na sua vida e também queria interferir onde não era da sua responsabilidade, porém o escritor se negou a dizer antes que ela também ficou com câncer generalizado. Acabe logo com esse meu sofrimento, infeliz. A dor era tão intensa que nem com morfina ela ficava em paz. Vai bem dizer que me matei. Ela não se matou porque o outro braço estava totalmente necrosado. Parecia mais uma corda velha de tanto remendo. 

Finalmente... o quê? Os dentes caíram todos. Fiquei banguela? Aconteceu isso como castigo para ela nunca mais esquecer que torturou, a dentadas, sua amiguinha até à morte. Você acha que alguém vai acreditar nessa conversa fiada? E então... terminou? Ela sabia que seu sofrimento começava naquele momento em que foi transportada diretamente para o inferno com corpo e tudo. Pelo menos fiquei livre de você. Ao chegar ao inferno... vamos continue. É melhor não dizer quem ela encontrou por lá. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.09.2023 – 20h02min.



terça-feira, 26 de setembro de 2023

ENTRE UM DESEJO INCONTIDO E UMA CONTIDA IMAGEM DO CÃO - por Naílson Costa

 


ENTRE UM DESEJO INCONTIDO E UMA CONTIDA IMAGEM DO CÃO

Não sei não, mas acho que um desejo incontido e uma contida imagem do cão devem carregar em seu DNA um algo de atraente, sensual, sedutor, um não sei o quê de chamativo e muito hipnotizador! Lembro-me de quando professor de Educação Física do Instituto Cônego Monte (Ginásio Comercial/Colégio do Padre) de minha amada cidade de Santa Cruz-RN, no ano de 1987, havia um pé de goiaba na casa de Dona Rita Salete, vizinha, parede e meia, da quadra esportiva dessa inesquecível escola. Não cheguei a ver Jesus Cristo nesse pé de goiaba caminhando levemente por entre seus galhos e frutos, apesar de ele, o pé de goiaba, ficar ao lado de uma escola confessional e sob as bênçãos de Mons. Raimundo Gomes Barbosa, inesquecível pároco/diretor daquela saudosa instituição de ensino. Mas via a bola do treino do futsal pular o muro e cair, constantemente, ao lado da sedução daquela árvore. Eu reclamava quando os irmãos, meus “adolinocentes” alunos, os irmãos Au e Au (seus nomes começavam com as mesmas letras), traziam de volta a bola e as mãos cheias de goiabas. “Não permito que pulem o muro pra furtar as goiabas”, reclamava eu. Um desejo incontido é foda! A carne é fraca e as bichas eram gostosas demais! Eu ficava com vontade também de comê-las! Um colega professor dizia que aluno era a imagem do cão! E entre um desejo incontido e uma imagem do cão, eu, sentado na arquibancada abaixo da janela da sala de aula da 3ª série primária, ouvi um “Psiu, Nailson, me dê uma goiaba dessas! Deu vontade!”. Era uma jovem professora, grávida de 6 meses, que, da janela de sua sala de aula, via a movimentação e sentia o perfume daquelas goiabas! Não tinha como negar o desejo de uma mulher nesse estado! Os manos Au e Au ouviram o pedido da professora grávida e não se fizeram de rogados, trouxeram as suas camisetas lotadas de goiabas. E, dessa vez, não reclamei! Peguei-as, dei umas à professora e fiquei com outras! Fiquei também com o sorriso vitorioso e sarcástico dos jovens Au e Au!  À noite, recebi uma ligação. Era Beja, braço direito de Mons. Raimundo, dizendo que o pároco queria falar comigo. Nunca eu tinha recebido uma ligação dessas do amável diretor em todos aqueles anos! Mas me lembrei do colega professor e de sua assertiva, “aluno é a imagem do cão”! Desconfiei, de imediato, do motivo da conversa: as goiabas. Olhei para elas na fruteira! Levo-as ou não as levo? Resolvi levá-las! Aprontei-me e me dirigi à escola, carregando um saquinho com algumas goiabas.

– Professor – perguntou Mons. Raimundo –, é verdade que está havendo, nas suas aulas de Educação Física, nas últimas semanas, o milagre da multiplicação das bolas caídas no quintal de Dona Rita Salete e a transformação dessas em goiabas?

Não fiquei surpreso com a dedurada discente! Claro que não entreguei a professora grávida de seis meses! Eu sempre vou amar o silêncio da contida imagem de um cão sentado à direita de sua paz! Desensaquei as goiabas, coloquei-as em cima de seu birô e o cheiro gostoso dos frutos hipnotizou toda a secretaria! “Ei-las”, disse eu! O Mons. Raimundo as olhou com carinho e, de braços educadamente para trás, passadas lentas e pensativas, saiu para outra sala ao lado. Eu nunca vou saber o que ele pensou, mas entendi que, num pé de goiaba crescido ao lado e sob os olhos do “Colégio do Padre”, não tinha como ter arenga! Nada mais fora dito até então. Então, pequei as goiabas para levar de volta para casa e ouvi de Mons. Raimundo:

– Professor, vamos evitar confusão! Não mexa nas goiabas! Deixe-as onde estão!

– Com certeza! Não haverá mais milagres, Monsenhor! – e saí com a certeza de que nos DNAs de um desejo contido e no de uma imagem incontida do cão há algo de chamativo, de atraente,  de sedutor, um não sei o quê de muito hipnotizador!


(Crônica de Nailson Costa, ex-aluno e ex-professor do eterno Instituto Cônego Monte – Ginásio Comercial/Colégio do Padre Raimundo)



domingo, 24 de setembro de 2023

MARATONA DO CONHECIMENTO

 


MARATONA DO CONHECIMENTO 


Acorda cedinho, olha o horizonte e percebe o sorriso do sol num beijo com o do mar. Está na hora de ir correr. Um pé atrás do outro em direção ao alívio matinal. Acende a lâmpada. Ainda bem que Thomas Edison teve essa ideia. Nem vou precisar mais de lamparinas. 

Durante a transferência de líquidos, fica também agradecido a Joseph Gayetty por ter inventado o papel higiênico. Já pensou se eu tivesse que guardar sacos e mais sacos de sabugo de milho para essa função!? Ele aciona a descarga sem esquecer de fazer referência a Alexander Cumming por não ter que pegar um balde d'água e jogar. Seria muito peso e requereria bastante espaço para guardar o tonel cheio. Lava as mãos num gesto rotineiro facilitado pela invenção dos fenícios 600 antes de Cristo. Se não fosse isso, correria o risco de ninguém querer apertar sua mão.

Naquela rotina, muitos sábios o acompanhavam através de suas invenções. Pega a escova e vê o espírito de William Addis dizendo: essa fui eu. Não se aborrece, até porque precisa dessas contribuições para se sentir um homem moderno, tão moderno a ponto de aceitar correr sem estar na frente de um animal faminto. Lá vai o louco, diziam se fizesse isso antes dos jogos olímpicos terem se popularizado.

Olha para o creme dental. Vou ter que pedir permissão ao dentista Americano Washington Wentworth Sheffield para usá-lo, ou ir até um juazeiro e raspar um galho... ainda bem que não é mais assim. 

Terminada a higienização, o objetivo de correr já estava enfraquecido com tanta cobrança que faz a si mesmo pela vontade de conhecer os detalhes de uma vida simples. 

Com as mãos molhadas, percebe que alguém também pensou na toalha antes dele. Quem terá sido? Vai ao Oráculo de Delfos, hoje substituído pelo Google, e descobre que John McAdam, engenheiro escocês, foi o dito cujo, mas o mais interessante é que também descobre que existe o dia da toalha comemorado no dia 25 de maio. Fica a imaginar que presente daria para uma toalha. Um corpo molhado? Deve ser isso ou a vontade dissimulada dos vendedores de toalhas em dizer que devemos renovar o estoque delas a cada ano.

Não está interessado em saber quem inventou o calção nem a camiseta que está vestindo, muito menos a cueca. Bem, a cueca é interessante saber. Será? Olha não olha, a curiosidade venceu. Lá está Adão sorrindo e escondendo suas partes íntimas com uma folha de figueira. Foi ele sim, o inventor da cueca quando quis esconder adãozinho. 

Acho que foi Eva quem inventou a calcinha e o sutiã. Bom, deixa pra lá. Nem vou olhar, senão perco o horário da corrida.

A sede pelo conhecimento é tão grande que ele voltou da porta, digitou e encontrou: "Catarina de Médici, rainha da França, pode ser considerada quem inventou a calcinha. Isso porque, por volta de 1530, foi ela quem teve a primeira concepção de algo parecido com o que é calcinha atualmente. A ideia surgiu quando ela utilizou um pedaço de pano por baixo do vestido ao montar no cavalo." 

Satisfeito, saiu, e no meio do caminho lembrou-se do sutiã. E agora? Resistiu à curiosidade e meteu o pé na estrada. Toda mulher que avistava, pensava logo no sutiã. Será que foi Eva mesmo? Parecia que haviam combinado. Nunca tinha reparado tanta mulher com a parte de cima exposta. O percurso que, geralmente, demora uma hora e meia, ele tirou em cinquenta minutos. Voltou apressado e meteu o dedo no celular. O bicho tinha descarregado. Tomada nele. Estava faltando energia. O celular da esposa só em três por cento. Quem inventou o sutiã???????????, antes que descarregue... foi... é... acabou a bateria.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.09.2023 - 06h15min.



DICAS EM VERSOS PARA ESCOLHA DO CONSELHEIRO TUTELAR - Gilberto Cardoso

 


sábado, 23 de setembro de 2023

PINTANDO UM DIA



 PINTANDO UM DIA 


Uma casa rodeada de flores vermelhas e brancas com abelhas e beija-flores disputando o néctar. A brisa daquela manhã visita o ambiente sem querer atrapalhar aquela harmonia natural. Timidamente, o vento balança alguns galhos tornando-os vivos num conjunto de convivência pacífica. 

O poeta apenas observa o sol chegando anunciado pelos cantos dos pássaros junto com o cheiro de terra molhada.  Homem, ave e inseto se respeitam naquele pé de serra onde uma menina sanfoneira, debaixo do cajueiro, executa alguns acordes de olhos fechados. A canção é dela, inspiração procurada depois que o pai chamou a atenção para a poesia que existe na natureza.

É naquela horinha que ela gosta de dedilhar o instrumento presenteado pelo avô. Uma vizinha para descansando da lata d'água que foi buscar no riacho. A menina nem se dá conta do cuidado que a outra tem para não atrapalhar. Os passarinhos se comportam como quem diz: agora é nossa vez de escutar. Ela se aborrece. Abre a sanfona e regula o fá que fez doer seu ouvido absoluto. Testa e volta aos acordes serenados nos graves. 

A vizinha já foi embora fazer o café. Na casa dela, não se ouve o som produzido debaixo do cajueiro. O que ela escuta é o borbulhar da água fervendo já no ponto de receber o açúcar. Seu pensamento volta-se para a canção ouvida há pouco. O marido chega com o balde de leite tirado da vaca que teve seu bezerro atacado pela onça. Vou preparar os cães e a espingarda. A mulher sorri com um pano amarrado na cabeça deixando-a sem a tristeza da dor. 

Naquele ambiente harmonizado pela natureza, boas ideias se encontraram nas soluções. A sobrevivência apela para a violência contra o felino. A lei do mais forte sai para a caçada. O rastro da bicha é acompanhado por ele e a matilha. 

Carne de onça é distribuída na vizinhança num gesto de confraria. À noite, há festa comemorando o resgate da paz. É comum a paz pós-guerra, e eles deixam outros afazeres para se juntarem ao redor da fogueira. 

Os vagalumes distraem as crianças que querem guardá-los dentro de caixas de fósforos. A sanfoneira torce por aqueles momentos de oportunidade de apresentar suas novas composições. 

O dia amanhece com o crepitar das brasas produzindo cinzas que serão aproveitadas para curtir o couro da onça. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.09.2023 - 18h17min.




quinta-feira, 21 de setembro de 2023

ATRÁS DO RECONHECIMENTO

 


ATRÁS DO RECONHECIMENTO 


Nasci desprovida de pernas e braços. Até que foi fácil deslizar para fora da linha de produção, porém suportar me manter integrada ao meio social, não. Passava a maior parte do tempo assistindo TV quase como abandonada. Aqui e acolá, é que me tiravam de um lugar para outro, limpavam-me e me devolviam para uma caixa bem arrumada. Eu não chorava, mas sempre ouvia choros de órfãos. 

O local onde me colocaram, depois que nasci, era uma loja de artefatos militares. Eu ficava olhando as pessoas comprarem escopetas, pistolas etc. Chovia, fazia sol e eu lá sentindo todo tipo de intempéries sem ao menos poder reclamar. Minha residência ficava em Dallas, e foi de lá que o mundo me conheceu. Antes, ninguém nunca havia ouvido falar de mim. Sempre, de um presidente que visitava cidades em carro aberto. Isso foi nos anos de 1963 quando os Beatles já eram bem conhecidos. Todo mundo corria atrás do sucesso, inclusive eu. Claro que eu era diferente de todas, mas isso não me fez desistir de ser alguém. 

Raul Seixas já vinha também trilhando seu caminho numa febre compartilhada por João Gilberto. O mundo estava fertilizando acontecimentos culturais nunca antes experimentados. O tropicalismo aconteceu alguns poucos anos depois, no entanto reflexo dessa fertilizada década. Foi nela que as mulheres tocaram fogo em sutiãs, cílios postiços e saltos altos. Nessa efervescência cultural, surgiu também Elvis Presley fazendo a mulherada delirar com seu requebrado sensual. Os pais quebravam as TVs para que suas filhinhas, educadas para serem mães, não fugissem de casa para o movimento hippie. Eu vendo tudo aquilo e querendo me integrar de uma forma ou de outra, mas paralisada pelo medo de ser rejeitada. 

Noites passadas em claro sonhando com o estrelato. Eu tinha inveja de Marilyn Monroe com seu vestido branco esvoaçante, e essa inveja cresceu mais ainda quando eu soube que ela tinha tudo para se tornar um dos maiores símbolos sexuais de todos os tempos. Até com o presidente popular ela teve um caso, e eu lá no meu canto mastigando minhas mágoas. 

Até que um dia, fui convidada para sair daquele lugar deprimente. Fiquei feliz, pois sabia que o mundo ficaria estarrecido com minha performance. O homem que me deu a mão, não era normal, diziam alguns, mas agradeço à sua loucura o fato de ter me tornado famosa. Ele me levou sabendo da minha potencialidade, apesar de não me deslocar por si só. Fiquei na casa dele participando dos planos para a minha estreia. Só eu e ele naquele sexto andar ensaiando para entrarmos em cena. Então, chegou o grande dia. Lembro-me como se fosse hoje. Naquele 22 de novembro de 1963, exatamente às 12h30min, as cortinas vermelhas do corpo do presidente se abriram com minha passagem, e foi aí que fiquei popularmente conhecida como a bala que matou Kennedy.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.09.2023 - 16h17min.



quarta-feira, 20 de setembro de 2023

MÁS ESCOLHAS - Gilberto Cardoso

 




NUM SET DE FILMAGEM

 


NUM SET DE FILMAGEM 


Vivo no meio da floresta servindo de abrigo para muitos, disse a árvore já começando a se balançar com a aproximação do furacão. Nos seus galhos, uma águia teimava em fazer um ninho. Vou te arrancar, árvore conivente com a violência!, riu de longe o furacão. Conivente com a violência? Isso mesmo! Você só serve para dar abrigo às águias e aos lobos com ideias fixas de devorar crianças. Você não sabe o quanto é solitária a vida de uma árvore, por isso estou de galhos abertos para quem chegar, inclusive esse pica-pau malvado. Eu não fiz nada e já estou sendo apontado como malvado. É aquela sua risadinha chata e irônica que você sempre dá no final dos seus vídeos depois que destrói seus inimigos. Sim, mas estou aqui noutro papel sem poder rir. Está no contrato, argumentou o pica-pau tentando cavar um lar naquele tronco avantajado.

Enquanto isso, a menininha continuava seu percurso em direção à casa da avó. 

Eu tenho esperança em sair daqui, pensava o lobo apertado na barriga da cobra. Já devorei várias avós e sempre aparece um caçador, e acho que também tenho direito a ser salvo. 

Não muito distante dali, os caçadores riam com a ideia de salvar o lobo. Estavam se embriagando na taverna da esquina e nem passava pelas suas cabeças sair para tal empreitada. Deixe o lobo ser dissolvido, diziam uns para os outros. 

Acho que temos direito a ser citadas, reivindicavam as mulheres dos caçadores. Nós também! Todos os parentes dos caçadores queriam ganhar uns trocados. Pois é! Nem precisava de uma cobra nessa história. Ela já foi contemplada naquela de Adão e Eva, agora em todo canto tem que ter uma serpente, senão ninguém presta a devida atenção. 

Eu não acredito que eles estão implicando comigo, pensou a anaconda, sentindo um aperto na consciência. Não é na consciência, não, gritou o lobo lá de dentro. Sou eu querendo furar seu couro e sair. Mas você não estava morto? Estava igual à vovozinha quando eu engoli. Vamos decidir que padrão vamos usar de forma planificada. Se serve para uns, deve servir pra mim também. O diálogo entre comida e comedor não está muito lógico. Fique calado aí, seu cabeça de vento. O furacão ficou puto com a anaconda e deu um sopro que foi pedaço de cobra para todo canto. Ainda bem que aqui na taverna não chegou nenhum. Foi só um dos caçadores acabar de falar que o lobo aterrissou na mesa ao lado com um copo já na mão. Uísque, por favor. Vocês viram que arrogância desse lobo? Enquanto tomamos cachaça, ele chega logo pedindo uísque. Meu cachê sempre foi maior do que o de vocês, por isso posso esbanjar. Falar nisso, disse a menina arrumando seu chapéu vermelho, preciso ver se entrou a primeira parcela na minha conta. A águia não tinha nenhum papel importante, por isso continuava fazendo o ninho e doida para lanchar o pica pau.

Falar em lanchar, preciso comprar outros bolinhos para repor o estoque, pois já comi todos esperando a finalização dessa versão barata do meu grande sucesso. No meio da floresta, não existia nenhum ponto de vendas para que ela pudesse fazer o reabastecimento da cesta. Se fosse pelo menos gasolina, ah,  também não tinha, é verdade. 

Quando eu chegar à casa da vovó, nem vou saber o que dizer depois dessas variações que o roteirista está fazendo. Não chegue agora não, minha netinha, pois o lobo ainda nem bateu na porta. Só vou lá depois do almoço. Bote mais uma. É preciso muita cachaça para mastigar uma velha. Olhe a discriminação. Eis aí mais um motivo para matar esse lobo mau. E vocês são bons? Matam-me e ainda saem como herois! Só espero que eu não seja pela águia, bicou o pica-pau já desconfiando que ia sobrar pra ele. Deixe eu saborear ele, implorou a águia para o autor. Por enquanto fiquem fazendo seus ninhos. Tenho medo que essa ventania doida destrua tudo. Não sou doida. Eu sopro quando dizem para eu soprar. Só espero que não ela não  venha desarrumar meu penteado, disse a menina passando na parede do açude. Quem fez esse açude? Haja gasto! Desse jeito não vai sobrar verba para repor os cartuchos que iremos utilizar para matar o lobo. Pensem direitinho antes de apertarem o gatilho, porque esse produtor, depois de vê-los sem munição, vai querer dar um calote. Mas nós temos nossos facões, qualquer coisa, nós o degolaremos. 

Lembrem-se que aqui é uma história infantil. Cala a boca sua velha coroca. Quem falou assim com minha avó? Acho que foi o autor. Não, foi um peixe. De onde saiu esse? Ora, não tem um açude? Açude que se preza tem que ter peixe. Na verdade eu sou um boto-cor-de-rosa. Logo rosa? Não tem um chapéu vermelho? Por quê não posso ser rosa? O problema é que você mal acabou de chegar já foi desconsiderando a avó da chefe. Aqui não tem chefe. Cadê o roteirista? Saiu para a taverna. Hora do intervalo, gritou o diretor.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.09.2023 - 19h25min.



segunda-feira, 18 de setembro de 2023

DEU ZEBRA NA HISTÓRIA



 DEU ZEBRA NA HISTÓRIA


Caminhando pela floresta, de longe ele escutou uma canção. Escondeu-se por trás de uma árvore e ficou aguardando quem era a dona daquela voz tão agradável. Seu apetite estava pedindo comida, e já havia ouvido falar de que uns animais que andavam em cima só das duas patas traseiras eram deliciosos, principalmente quando jovens. Esperou ansioso para ver se poderia saciar-se com aquela fêmea na primeira idade. Muitos dos seus já haviam sido mortos pelas varas de fogo que aquela espécie utilizava para fazer trovão. O caminho estava deserto. A única função dele era sobreviver, e para isso fazia de tudo, até comer quem passasse por aquelas bandas. 

A voz se aproximava. Ele ficou tão nervoso e salivava tanto que lhe deu dor de barriga. Saiu de trás da árvore e foi para uma moita. Após o relaxamento de praxe, percebeu que a voz havia passado pelo ponto de ser silenciada. Apressou-se só pensando na degustação, porém um espinho lhe espetou o pé. Ai, gritou em forma de urro. A voz que vinha sendo ouvida deixou de ser. Eita!, espantei a presa. Ficou quieto por bastante tempo e, silenciosamente, pé ante pé, tentou esgueirar-se para mais perto de onde havia uma respiração ofegante. Bem que seu pai dizia que tinha que ter sangue frio na hora de atacar. Percebia que sua falta de controle estava proporcionalmente ligada aos seus fracassos nas caçadas. Ultimamente só tinha comido restos deixados pelos outros, e precisava ser bem sucedido para quando chegasse em casa ter o que contar. 

A voz voltou a ser ouvida com a mesma canção. Só sabe cantar essa?, pensou dando uma de crítico musical. Seu faro indicava que havia uns bolinhos feitos há pouco. Odiava bolinhos, principalmente quando eram feitos para avós. Ele era jovem e muito macho, por isso jamais se conformava em comer bolinhos. Coisa de quem não tem garra para matar, comer carne e chupar sangue. Tinha inveja dos seus primos vampiros, pois eles não tinham piedade e possuíam muito mais força, só que naquela hora eles não conseguiam transitar por ali. 

Um ciclone aproximava-se, e todos os outros estavam preocupados em se abrigar, porém ele permanecia em querer saciar sua fome. Sofria muito porque toda vez que tentava uma caçada, sempre acontecia uma desgraça para impedi-lo de realizar seus intentos. Quantas noites perdidas planejando um ataque, e agora que estava prestes a acontecer, alguém resolveu colocar um ciclone ali perto. Só pode ser intriga da oposição, pensou olhando para o céu. Ouviu uma voz dizendo: calma, tudo tem seu tempo. Ah, se eu fosse esperar o tempo de encher minha barriga, já tinha morrido de fome. “Quem sabe faz a hora...” No seu treinamento, havia ouvido muito isso, mas não bastava pensar assim, tinha que ter talento para fazer a hora. 

Estava difícil acompanhar a voz, pois precisava evitar os arbustos impedindo-o de dar uma carreira. Sem poder correr, avistou uma serpente que o esperava para lanchá-lo. Não está vendo o ciclone aí, não?, quis argumentar, porém a serpente se lançou em um tremendo bote conseguindo lhe apertar até a morte. Depois que o havia puxado para dentro da sua roupagem encouraçada, foi que a píton percebeu a voz cantando lá longe: pela estrada afora...                


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.09.2023 – 14h19min.



quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A SITUAÇÃO HUMANA - Hélio Crisanto





SELVAGERIA

 


SELVAGERIA


Você tem o mesmo costume dele de ficar com a caneta girando entre os dedos, disse o rapaz do bar-restaurante em que o pai dela lanchou pela última vez. A filha estava refazendo o roteiro que ficara registrado nas câmeras. No dia que aconteceu a tragédia, eu expulsei alguns mendigos que estavam a perturbá-lo. Ele chamou você para tirá-los? Não, eu vi e sabia que ele não gostava de lanchar com alguém perturbando-o. 

No palco, um trio de músicos animava o ambiente. Se você quiser dançar um pouco, pode contar comigo. Ah, faz tempo que não me divirto assim, mas acho que é como andar de bicicleta, aprendeu não se esquece nunca mais. 

Quando o rapaz segurou em sua cintura, ela arrepiou-se. O outro segurança já havia chegado e o casal podia enrolar a noite se divertindo. Dançaram por quase meia hora. No intervalo, ele sugeriu irem dar um passeio no seu 4x4 vermelho. Vamos aonde? Curtir adrenalina pura. Fecharam a conta e saíram pelos fundos. Que pneus enormes! É o ideal para o que eu quero. Se dependesse dela, faziam amor ali mesmo no banco da frente, mas acreditava que ele tinha planos mais interessantes. Hoje eu pego essa danadinha, pensava ele engatando a primeira e arrancando de vez. Aqui é motor turbinado, menina! Saíram em disparada com ela ainda tomando o resto da dose.

Você dirige muito rápido, hein! Ele estava concentrado como se procurasse algo. Naquela noite de ruas desertas, o ideal estava para acontecer. Na avenida principal não podia. O melhor seria virar à direita e entrar nas marginais. Para onde estamos indo? Calma, princesa! Preciso de um estimulante para ficar de bem com você. Mais adiante, subiu a calçada indo de encontro a um adulto de rua. Ele estava dormindo coberto com uma lona suja de vômito. Não acredito que você fez isso. Eu sempre faço. Olhe aqueles ali. Repetiu a manobra. Por isso que seu carro é vermelho. Isso mesmo, para não dar muito na vista que salpicou. E a polícia? Faz vista grossa porque é essa gentalha que assalta durante o dia. Por favor, eu quero descer. Aqui não, né boneca! Vou lhe deixar em um lugar seguro. 

Pararam em um motel. Vamos passar a noite aqui até as coisas esfriarem, e não adianta você dizer que não teve culpa. Estava comigo, então é cúmplice. Por favor, não me fale assim. É a cultura da cidade grande. Eu moro em uma delas, mas lá nós ajudamos as pessoas em situação de risco. Desça, venha! Ela ainda estava chocada, porém subiu os degraus com ele lhe abraçando. Quer tomar banho? É aqui, veja! Água bem quentinha. Ela estava deitada de bruços chorando. Calma minha dengosa, vamos tomar banho. Tirou os sapatos dela, as meias... ela parou de chorar. Ficou esperando... o que não demorou muito. 

Acordaram para continuarem o que haviam parado na noite anterior. O dia todo só foi interrompido quando ele desceu para limpar o sangue do veículo protegido pela garagem do motel. Ela ficou sem forças até para olhar as mensagens. O que está acontecendo? Será que encontrei o companheiro que tanto procurava? Um monstro disfarçado de gente!

Você não vai mais atropelar ninguém não, né? Não, hoje só vou deixar você em casa e voltar para o trabalho, senão serei descoberto.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 14.09.2023 – 08h27mim.



terça-feira, 12 de setembro de 2023

QUE SUFOCO!

 


QUE SUFOCO!


Por trás de uns jarros de plantas, ele ficou escondido. Não dava para pular daquela altura acima do voo dos pássaros. Agora eu me ferrei! Já que a mulher tem uma pistola, o marido dever ter uma metralhadora. Lá embaixo, poucos veículos trafegavam, mas mesmo assim podiam abafar algum barulho que por acaso ele viesse a fazer. 

Começou a chover. Chegar em casa molhado não vai ser fácil de explicar. Lembrou-se de uma vez que precisou fazer o mesmo na casa da vizinha, só que naquele outro episódio foi sua esposa que bateu à porta. A imagem recente daquele corpo violão,  não lhe saía da cabeça. 

Nada de escutar o que o marido e ela estavam conversando. Este vento frio está me dando vontade de espirrar. Deve ter sido aquele suco. Dizem que romã com abacate é bom para levantar defunto, mas eu não sabia que fosse tanto. E se eu for descoberto? Ah, já sei. Vou dizer que vim fazer a vistoria do prédio. 

A esposa do locador estava ficando preocupada. O que terá acontecido? Será que voltou a me trair? Um dos netos insistia que ela continuasse a ler historinhas do livro. O menino tinha hábitos noturnos, e por mais que já tivessem feito de tudo, o tudo não tinha resolvido a escassez de sono no peralta. Vovó, conte novamente a história do homem sem cabeça. 

Era uma vez um homem sem cabeça. Por onde ele andava o pessoal ficava admirado como alguém tinha nascido com boca, orelhas nariz e olhos pregados no pescoço. Já tinha sido até contratado por um circo como atração principal, mas resolveu voltar para a sua terra e fazer piada dizendo que não precisava gastar dinheiro comprando pente e nem xampu. 

Quando ele saía de casa, colocava um chapéu por baixo de uma bola de isopor e colava no final do pescoço. Certa vez, o vento levou sua prótese de cabeça. Ele saiu correndo atrás acompanhado pelos cães, gatos e perus do terreiro. Vovó, da última vez que a senhora me contou, não tinha esses bichos correndo atrás. É porque na nova edição o autor acrescentou. Continuando... 

Quando as pessoas perguntaram onde estava sua cabeça, ele respondeu que os cabelos haviam comido e depois fugiram para o mar. Seu maior orgulho era que nunca a mãe dele iria dizer, como dizia com seus irmãos: fique quieto, senão eu arranco sua cabeça. Isso jamais ele ouviu.

Por força da anatomia estranhamente diferente, ele pensava com os pés. Quando precisava raciocinar, em vez de ficar de pescoço baixo, saía correndo para que o pensamento subisse para a boca e de lá pudesse ser gravado em áudio, pois nos pés não existia um local específico para guardar pensamentos.  Quando a avó olhou para o menino, ele já estava ressonando.  

Senhor, esse é meu marido. Ele soube que o senhor veio aqui para perdoar nossas dívidas e se escondeu aqui quando ele chegou para que não houvesse um mal entendido. Isso mesmo, meu amigo. Um casal tão jovem precisa de um apoio dos mais velhos para permanecerem unidos, por isso tem minha palavra que vocês podem morar o tempo que quiserem por aqui, gratuitamente. 

O homem foi embora sem desconfiar que aquele motoboy apenas tinha ido entregar o dinheiro do crime que ela havia cometido há poucas horas. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 12.09.2023 – 16h19min.



segunda-feira, 11 de setembro de 2023

FECHANDO O CERCO

 

FECHANDO O CERCO


O ataúde encontrava-se no final da sala. Preferi fazer assim para que os funcionários pudessem participar do velório. Num corredor ao lado, havia um bufê. Assistiu ao jogo ontem? Nada rapaz, fiquei em casa com gripe e febre sem nem vontade de ligar a TV.  

Vários grupinhos se formaram em torno da comida farta. Num deles, duas moças e um rapaz, desconhecidos dos demais, conversavam baixinho. Eu já fiz a petição inicial com um pedido de intervenção e estou acompanhando pelo telefone o deslocamento do interventor. Era bom que mamãe tivesse vindo, pelo menos teríamos mais autoridade para enfrentar a fera. 

A quem eles se referiam, estava perto do caixão recebendo as condolências junto com a filha. Ah, eu vi você quando ainda era pequenina. Sempre vocês iam pescar na lagoa da nossa casa de campo, lembra? Sim, você é minha tia. Isso mesmo. Já casou? Ainda não, tia, mas estou aberta a sugestões. Há algum conhecido seu...? 

Os três voltaram e ficaram um pouco afastados, porém dava para escutar o falatório. Parece que aquela é a nossa irmã mais nova. O rapaz foi segurado pelo braço, pois queria ir se identificar. Que eu saiba, foram só dois casamentos. A irmã mais velha, advogada, estava à frente respondendo ao rapaz em início de carreira na robótica. Será que temos direito à herança? Claro que sim, já que ele nunca se separou da nossa mãe, pelo menos no papel. Com aquela ali foi só união estável. De vez em quando, chegava um conhecido da mulher de luto. Quando sair daqui, vou dar entrada no inventário, disse a advogada olhando séria com um rabo de olho para a dona do caixão. 

O homem que ia fazer a encomenda do corpo, chegou auxiliado por uma mulher com um livro na mão e logo atrás um jovem com um violão. Bom dia! Que a graça do nosso senhor Jesus Cristo abençoe este corpo... amém. Quem for comungar, por gentileza levante a mão. Feita a distribuição das hóstias, o Padre continuou apertando as mãos dos presentes e se retirando para um outro evento. Se o povo soubesse o quanto tenho asco em fazer esses eventos, nem morriam e nem matavam. Quanta falsidade nesse chororô besta. Entrou no carro de luxo lembrando-se daquele que andava em um jumento.

Se alguém quiser olhar, por favor se adiante que iremos fechar o caixão. É bom mesmo, porque já está fedendo, pensou uma das carpideiras doida para receber o dinheiro. Era bom que nos pagassem por minuto chorado, pois não aguento colocar colírio caro. Com a idade avançando, até as lágrimas vão secando.

Durante o cortejo, o motorista do carro funerário também não segurava as lágrimas. Sua mulher já havia reclamado que ele deveria ser mais profissional, porém não aguentava ver alguém chorar sem que também não entrasse no clima. Era uma herança de família. 

Muitos veículos seguiram para o cemitério onde os ricos se enterram. Lá, umas mulheres de preto com gola branca orientava os que chegavam procurando onde era o salão. Havia a preocupação em não estar no velório errado. Muitos salões davam conta da clientela que gostava de ficar em sala vip até naqueles momentos. 

Passados alguns minutos na pedra de mármore, o corpo finalmente foi transportado para ali pertinho. Saiu em fila a classificação do grau de parentesco.

Já à noite, quando se dirigiam para o veículo, mãe e filha foram interpeladas pelas três figuras desconhecidas. Nós somos filhos do falecido que você dizia ser seu marido. Ela arrepiou-se, pois não contava com aquela visita tão rápida. Não tenho nada para conversar com vocês, ligou o carro, no entanto ainda permaneceu alguns segundos antes de dar ré. Estamos só lhe avisando que já demos entrada na intervenção, e você está proibida de entrar lá até ulterior decisão da Justiça. O interventor, neste momento, já se encontra com a polícia fechando os supermercados, disse a advogada com ar de superioridade.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.09.2023 – 12h52min.



domingo, 10 de setembro de 2023

DESFIANDO OS RUMOS

 

DESFIANDO OS RUMOS




Dê mais uns tiros. Não, não é necessário. Eu sei o que estou fazendo. Vamos, VAMOS!, gritou a pistoleira colocando o capacete e subindo na moto. Seu parceiro estava chapado sem medo de costurar no trânsito. Vá mais devagar senão iremos chamar muita atenção. Ela também precisou fumar algo a mais para se manter com os sentidos bem aguçados na hora da execução. Troque a placa e o tanque de gasolina. Mesmo sabendo que não havia nenhuma câmera nas redondezas, ela sempre pecava por excesso de precauções. 

O dono do apartamento tocou na cigarra em que ela era a inquilina. Desculpe-me, mas os cinco meses atrasados do aluguel... Daqui a pouco venha buscar, ou amanhã pela manhã. Estou aguardando um pagamento e assim que receber já faço a quitação. O quase idoso passou o dia vigiando-a para poder encontrá-la em casa somente àquela hora da noite. Você deve saber que eu ainda não entrei com uma ação de despejo porque não gosto desse procedimento, mas a senhorita deve ver também o meu lado. Ela ficou estática escutando-o com os olhos aparentando sono. Sou um locador que precisa dessa renda para sobreviver, inclusive estou com o condomínio atrasado vendo a hora ele ser leiloado. Tudo bem, pode ficar tranquilo que o senhor vai receber seu dinheiro. Já falei com o síndico, no entanto ele nem recebe mais minhas desculpas de bom grado. Pode ficar tranquilo, eu já disse, e se eu não lhe pagar você pode estourar meus miolos. Puxou a pistola e ofereceu a ele com o cano virado para ela. Não, não senhora, não precisa disso não. Amanhã de manhã a senhora deposita. Aqui está a conta. Não, prefiro lhe entregar pessoalmente. Quando estiver com ele em mãos interfono para o senhor vir buscar. São quinze mil, né? Isso mesmo, mas se você pagar todo de uma só vez, adianto dez dias no contrato. Eu vou pagar logo vinte para ficar com alguns meses adiantado. O locador abriu os olhos e a boca num gesto sorridente. Ele sempre acreditava nela, e no seu inconsciente, deseja-lhe. 

Ela guardou a arma na cintura por trás. Já que o senhor está aqui, faça-me uma visita. Entre que estou preparando um jantarzinho caseiro. O homem olhou para os lados e, timidamente, adentrou. Desculpe-me a bagunça, é que vivo fora a maior parte do tempo e nem consigo arrumá-lo. 

Quando ela passava por uma situação de estresse como há pouco, havia uma efervescência sexual além do normal. Sua genitália ficava quente e coçando pedindo homem, e aquele ali à sua frente podia lhe servir muito bem. Pode ficar à vontade que vou preparar um suco para o senhor. Ele sentou-se sem tirar os olhos daquela musa torneada que, mesmo estando de roupão, sobressaiam-lhes as protuberâncias atrativas. Aqui está, é de abacate com romã. Ela sabia que ele precisava de um afrodisíaco, e aproveitou para triturar um comprimido enquanto ele desviava o olhar para verificar os estragos na pintura do imóvel.   

Depois de terem seus desejos amainados, alguém bate à porta. Eita, é o meu marido! Nem sabia que você era casada. Esconda-se!


Heraldo Lins Marinho Dantas



sexta-feira, 8 de setembro de 2023

PROVAS HORMONAIS



 PROVAS HORMONAIS


A senhora era esposa do morto? Ela virou-se e viu dois homens vestindo blusões pretos. O de menor estatura deu a entender que conduzia as investigações. Eu era a ex-esposa. A senhora poderia listar as possíveis motivações para o crime? É melhor irmos, papai, porque não pertencemos mais a este plano. Os dois saíram deixando ela se explicando. Não, não desconfio quem poderia ter feito isso e nem qual a motivação.

O outro policial mostrava-se impaciente coçando o nariz e com um cigarro apagado entre os dedos. Não havia quase móveis na sala além de um birô e algumas cadeiras encostadas nas paredes. Uma mulher de cabelos longos adentrou ao recinto. Aqui está uma cópia do laudo. O homem do cigarro apressou-se em recebê-lo. Eu só soube que ele havia sido assassinado ainda há pouco. O que fez a senhora fazer a ligação para o IML? Minha filha, ela passou mensagens querendo saber. Ela está aqui perto? Não, mora fora do país. 

Estou ligando para remarcar. A filha reagendou todos os seus pacientes. Ainda não sabia o porquê, mas sentia que precisava ir ao enterro do pai. Será que é por causa da herança?, perguntava-se arrumando as malas. Nunca fui apegada aos bens materiais, mas já que ele deixou, resta-me oficializar a posse. 

Senhores passageiros do voo 479, queiram se dirigir ao portão sete. Em quarenta minutos, ela já estava acomodando seus fones de ouvido pronta para aturar as doze horas de voo. Uma lágrima rolou quando se lembrou do pai trancando-a no quarto escuro. Ele tinha arroubos de fúria intercalado com momentos de completa harmonia com os seus. Parecia que estava possuído quando se irritava. Hoje ela entende aquele proceder, porém não consegue apagar as más lembranças. 

Aceita suco? A aeromoça serviu tudo que ela tinha direito. Se a senhorita quiser, podemos acomodá-la na primeira classe com um acréscimo de apenas trinta por cento. Ótimo, quero sim. 

A viagem foi bem sossegada, a mãe a ouvia com um contentamento fora do comum, ainda no desembarque. Ele comentava que via algumas coisas estranhas quando estava junto com a senhora? Sim, mas eu não lhe dava muita atenção. Estava preocupada com a empresa, e eu não participava daquelas fantasias dele. Não eram fantasias, mãe. Lá vem você também! Eu tinha ódio daquele jeito dele, todo largadão. Parecia até que eu era a burra de carga, e ele, a carga. Calma mãe, será que a senhora nunca vai perdoá-lo? Nem eu nem você! Lembre-se que você nunca perguntava por ele quando ligava. A senhora não sabe o quanto sofro por ter nascido com essa maldita vocação para conversar com os mortos. Ele estava sendo encurralado! Eu sabia, mas não podia fazer nada. Quem mandou matar foi apenas usada pelos espíritos de baixo. A mãe ficou séria. Será que ela sabe que fui eu?

Senhor técnico. O senhor colocou em negrito a quantidade de testosterona. O que isso significa? Que quando ele foi assassinado, estava enamorado. Com certeza, havia uma mulher sendo objeto dos seus desejos. Pode ter sido a própria, ou alguém aproveitando-a como isca, porém tenho quase certeza que não foi um homem o autor. Por quê? Foi apenas um disparo, e as mulheres quando exercem a profissão de assassinas de aluguel são bem mais milimétricas dos que os homens. Só acionam o gatinho quando têm certeza onde deve ser feito o estrago, e essa segurança perpassa pela confiança de tê-lo feito pensar em acasalamento, por  isso o destaque para o nível alto da testosterona.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 08.09.2023 – 14h31min.



quinta-feira, 7 de setembro de 2023

MUNDOS QUE SE COMUNICAM

 


MUNDOS QUE SE COMUNICAM


No meio da madrugada, levantou-se para ir ao banheiro. Que dor de cabeça desgraçada! Ao olhar para o espelho, percebeu o quanto ficou envelhecida de ontem para cá. Deve ser por causa destas olheiras que não consigo um novo namorado novo, murmurou lembrando-se do pesadelo assessorado pelo barulho líquido da privada. Mesmo com vontade de permanecer sentada, veio-lhe a orientação do proctologista para não ficar por muito tempo naquela posição. Voltou para a cama sem nem imaginar que o corpo do seu ex-marido encontrava-se sendo examinado no instituto médico legal. 

Foi bala dundum. O técnico assinou o laudo, colocou ele de volta na câmara fria e encerrou o expediente. Mas o que estou fazendo ali deitado? A alma do falecido teimava em permanecer no plano terrestre. Ao lado dele, as duas irmãs gêmeas se mantinham sérias com o rosto sem o sangue avistado nas últimas vezes. Outros corpos permaneciam para exame necroscópico, porém sem as almas reivindicando-os.  

Naquele trabalho, não tão invejável, algumas mulheres sentiam-se mal em ter que lidar com a podridão inerente à profissão. Uma delas, recém-concursada, lembrava-se da época em que desfilava nas passarelas. Naquele tempo, eu tinha medo de todo tipo de cão. E era mesmo. Parecia que eles sentiam seu medo. Agora afastam-se quando ela passa. É devido às células de memória levando o cheiro de cadáveres, explicou um antigo colega que passou pela mesma situação. 

Acordou por volta do meio-dia sem a cefaleia, porém indisposta. Naquele domingo chuvoso, gostaria de permanecer deitada se não fosse o apetite empurrando-a para a cozinha. Lembrou-se da grande paixão do ex-marido pelos pássaros. Na companhia de beija-flores, na área pergolada, preparou os seus costumes alimentares e sentou-se olhando para a pequena floresta que mantinha na cobertura do prédio. A cidade aos seus pés não a protegia dos pensamentos tumultuados. 

Guardou a caixa de comprimidos no bolso para não esquecer de ingeri-los depois da refeição. Suas neuroses se manifestavam de um jeito diferente a cada dia. Na última semana, passou a enxugar os sabonetes quando acabava de tomar banho, mas já tinha abusado de tal procedimento. Ultimamente, deixava-os se desmanchando no piso molhado. 

Nem sei se devo ligar o celular. Depois de tanta guerra, resolveu pelo sim. Mamãe, eu soube que papai foi assassinado!? A filha, do outro lado do planeta, havia entrado em contato. Leu as mensagens e disse que não estava sabendo. Há muito tempo que o casal não se via, inclusive seus contatos foram todos apagados. A única notícia dele é que doou seus bens para nós e que estava com viagem marcada para fora do país. Esperou a resposta imediata, no entanto a filha devia estar com algum cliente. 

Ela trabalhava conduzindo pessoas para viagens astrais, regressão etc. Esse seu lado sensitivo puxou ao pai, e a mãe logo desconfiou de que quem havia lhe avisado teria sido algum guia espiritual convidado a aparecer no momento da prática da mesa branca. 

Vou ligar para a polícia para saber. Momentos depois ela estava presente identificando o corpo. Lá está sua mãe fazendo o de praxe. É, agora podemos ir, né papai, disse o filho que havia morrido afogado na piscina anos antes.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 07.03.2023 – 15h15min.




quarta-feira, 6 de setembro de 2023

AGINDO COM NATURALIDADE

 


AGINDO COM NATURALIDADE 


Finalmente viu seu sonho se realizar. Esse peste recebeu o que merecia. Levantou o vidro do carro e arrancou sem despertar suspeitas. Calma, dizia para si mesma. De volta ao teatro, sorriu para os que se encolhiam para que ela pudesse voltar ao seu lugar.

O bilhete do espetáculo estava bem guardado, caso precisasse provar onde estivera na hora do crime. Nenhuma suspeita poderia recair sobre ela, salvo ser testemunha identificada como a ex-mulher do morto. Esta névoa no palco realmente existe ou é produto da minha imaginação? Só se sentiu novamente integrada à humanidade quando saiu junto com os demais espectadores.

Sentou-se no banco da área de convivência. Com licença, acomodou-se uma outra pessoa ao seu lado. O que achou do espetáculo? Fingiu estar digitando para dar tempo a ir se acostumando a ser mais dissimulada. Gostei! Voltou a atenção para a tela apagada. Seu telefone está com problema? Quando chegar em casa eu o coloco na tomada. Se quiser, eu tenho carregador aqui na bolsa. Não, obrigada. Levantou-se e saiu preocupada. Será que já estão à minha procura? Fumou dois cigarros, demoradamente, na área reservada. 

No vazio do espaço, pegou-se enxugando as lágrimas. Sua raiva havia passado ao se lembrar do nascimento da filha e dele corujando a cria na mais alta plenitude de macho alfa.

Agora uma nova página na sua história começava a ser escrita.  Qual será a reação da filha logo que souber? Pensava sobre, quando já estava se dirigindo para o apartamento. Vou ter que agir do mesmo jeito de sempre. Boa noite! Esta encomenda é para a senhora!

Subiu no elevador lendo a correspondência. E agora? O ex-marido pedia desculpas por tudo, inclusive que estava deixando o país e uma declaração doando os bens para ela e a filha. Ficou paralisada ao perceber a data de ontem quando ele se redimiu por escrito.

Passava sabão no prato quando o telefone tocou. Nosso time ganhou! Vou liberar a portaria. O falso entregador de pizza recebeu o combinado pelo trabalho executado e deixou a caixa para enganar as câmeras. Não está faltando nada? Nem sobrando. 

Fechou a porta e foi assistir as notícias do corujão. Homem morto na praça ainda não foi identificado. Fixou o olhar naquele cobertor estendido em cima dele. Muita gente passava, olhava e seguia seu caminho. Há um senhor aqui que disse conhecer a vítima. Ele sempre visitava a minha banca de jornais. Sei pouco sobre ele, mas parece que morava sozinho. Ela também estava solitária. Às vezes sentia falta da filha, e quando fazia uma ligação quase sempre caia na caixa postal. 

Os cinquenta mil pagos à pistoleira não ia lhe fazer falta, já  que há algumas semanas vinha guardando as sobras do caixa. Poderia ter aproveitado para ir viajar, mas seu impulso vingativo não deixou que usufruísse das benesses do perdão. Adormeceu umedecendo o travesseiro.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 06.09.2023 – 20h06min.



ONDE ENCONTRAR O SERTÃO? - Jair Eloi de Souza

 


ONDE ENCONTRAR O SERTÃO?

Dizia o Príncipe dos sertanistas, o Mestre Osvaldo Lamartine, que todos nós dessas nesgas aldeãs carregamos um Sertão dentro da gente. Pois, "O Sertão é o mugido da vaca sentindo o sungado do bezerro apojando em suas tetas";
É o zunir das abelhas a defenderem suas cachopas; é o boquejar noturno do peixe nos açudes; é o marmeleiro murchando em veranicos no inverno, dando coito pras vespas sanguinárias reproduzirem. É sentar quixó pra prender preás; é extrair raiz de mulungu pra fazer cavalete e desafiar o rio abotoado até as beiras;
O Sertão é fazer catimbóias em açude, pra fazer peixe dormir sem frio da cruviana, e fazer as pescarias, pra mandar peixe pro Brejo; é enterrar umbigo junto às porteiras de currais; é curar bicheira com reza no azimute indicado;
O Sertão é um paiol de saudade, a lembrança da cabrocha que fazia da janela, o verso mudo em riso; o cantar de incelências nas noites adentro pra defunto; o clarear de relâmpagos avisando o ribombar de trovões; Latonia de cachorro apanhando de caipora na sexta-feira treze;
O Sertão é o martelo agalopado; é Pinto fazendo verso, lembrando o grande Romano da Mãe d'água; ou mesmo o negro cativo, Inácio da Catingueira; o dia em que a vaqueirama pegou o boi mão-de-pau, lembrando de Fabião.
O Sertão é muito mais...
J.E.S



terça-feira, 5 de setembro de 2023

NEM SEMPRE É O QUE APARENTA SER

 


NEM SEMPRE É O QUE APARENTA SER


Saiu de casa com destino ao bar. Hoje, preciso me embriagar. Soube que a ex-mulher estava lhe procurando para descarregar a arma. Um passarinho bicava um resto de pão. Como seria bom que não tivesse tantos problemas quanto aquela ave. Ficou observando as flores do canteiro. Ainda era claro, porém o sol já declinava num último adeus. 

Um ônibus passou lotado em direção ao bairro dos trabalhadores. Sentiu saudades do tempo em que chacoalhava buscando estabilidade financeira. Viu duas meninas gêmeas na janela. Ao virar rapidamente o rosto, já haviam desaparecido. Ultimamente estava tendo alucinações desse tipo. O mais intrigante era que elas surgiam com os rostos ensanguentados, sorridentes e com os mesmos penteados. Não queria mais pensar naquilo, por isso o bar.

Atravessou a rua. Um mendigo direcionou sua mão suja. Assustou-se com a possibilidade de ser um deles num futuro próximo. Sempre tinha uma frase que murmurava toda vez que se deparava com a representação da miséria humana: “a gente não sabe onde chega.” Aportou do outro lado da rua com um pulo ajudado pelo veículo buzinando às suas costas. Bateu três vezes no poste. Praticava sempre ações com raiz na superstição. Sua avó lhe incutiu forças que regem às escondidas, e ele acreditava piamente nisso. 

Seu estômago deu sinais de que precisava voltar a digerir. O dia havia sido corrido, mesmo assim não conseguia se libertar da sensação a lhe corroer a alma. A ex-mulher nunca quis entender que ele não havia como prever a convulsão do filho na piscina. 

Parou numa banca de revistas. Vai levar o quê hoje, meu amigo? Estou com muita coisa para ler. Acho que só parei porque sou viciado nessa banca. Despediram-se com ele lembrando-se quando passava com a mochila nas costas cheia de livros do sebo. Era seu sonho montar uma biblioteca, até ela fazer fogo deles.

Uma vitamina de pinha. Aguardou sentado num banquinho próximo ao balcão. Aproveitava aqueles momentos de espera para fazer uma leitura dos tipos frequentadores daquela lanchonete. Mais um homem sujo pediu-lhe. Um outro, pago para espantá-los, surgiu. Vá na moral. Não perturbe. 

Uma torrada, só com queijo. Mastigava seu lanche ouvindo reclamações de um cliente que teve as pernas molhadas pelo motorista mal-intencionado. Vai uma raspadinha? Não, obrigado. 

Gostava de frequentar aqueles lugares para fazer comparações com os personagens que viviam em sua cabeça. Estava boa a vitamina? Ótima. Sempre escolhia a fruta-do-conde para recordar-se de quando visitava os avós. Fez o pagamento escondido. Naquela cidade movimentada, até puxar a carteira em público era perigoso, e mais ali no início de noite. 

Nas calçadas, já começavam a chegar as damas perfumadas. E aí, vai um programinha? Eram meninas recém-saídas da puberdade. Muitas se pareciam com sua filha distante por motivos inexplicáveis. Uma moça bonita passou sem cara de programa. Estava concentrada em se equilibrar nos saltos inapropriados para uma estudante. Era recém-chegada sem ter tido tempo para assimilar a cultura local, principalmente do vestuário e da forma de olhar para os lados, observou ele. Boa noite! Ela não respondeu. Aquela seria mais uma em sua vida, se tivesse havido correspondência. Segui-la, nem pensar. 

Ela voltou. O senhor poderia me informar onde fica a faculdade de odonto? É logo ali, depois daquela praça. Sou professor lá, e, por coincidência, já estou atrasado para a aula. Que bom, quem sabe, serei sua aluna. Pode ser mais do que isso. Entreolharam-se e ela percebeu a cara de sem-vergonha dele. Aqui é muito perigoso a senhorita estar sozinha, principalmente pela falta de iluminação. Não tem problema, eu ando armada. Puxou uma pequena pistola e detonou o coração do falso professor. 

Do outro lado da rua, a ex-mulher testemunhava tudo enquanto a assassina profissional subia na motocicleta do parceiro. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 05.09.2023 – 07h03min.




domingo, 3 de setembro de 2023

UM RECORTE DO BELO

 


UM RECORTE DO BELO


Vendo as ondas indo de encontro às falésias. São pedras que se erguem avistando a areia sendo escovada pela água espumante. Ininterruptamente, uma trilha sonora se faz num marulhar de acalento aos passantes. Apesar de aparentar aleatoriedade, a sincronia está padronizada pelas fórmulas da física. Cada bolha de espuma estourada tem o seu tempo pré-determinado assim como o volume de água infiltrada na areia.  Os ajustes feitos pela lua e o sol não deixam a vã mediocridade humana medir tudo isso. Parece simples, mas um composto bater de asas de uma borboleta morrendo do outro lado do planeta interfere nessa harmonização. 

O vento leva um grão da areia para longe desse espetáculo. Ele vai batendo nos obstáculos parando por algum tempo em alguma planta que insiste em barrar sua trajetória. Vem a chuva fixá-lo no caule do que ainda é verde. Depois, vem a seca despindo-o de alguma umidade. O grão continua sua viagem para um destino calculado pela força da rotação e translação da terra. Se vê interferindo no fluxo de automóveis. Um homem, com vassoura e pá, transporta-o de volta para o areal. Ele fica acomodado debaixo de outros que tiveram o mesmo destino. 

As ondas já não batem mais nas pedras. Elas foram embora a mando da baixa-mar. Agora, o observador também segue seu caminho imaginando quando poderá voltar. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.09.2023 – 05h28min.