quarta-feira, 31 de maio de 2023

A EXCELÊNCIA DA FLOR - Poema de Xexéu

 

O poeta Xexéu (1938 - 2019)




A EXCELÊNCIA DA FLOR

João Gomes Sobrinho – Xexéu

 

Quando o sol nasce sorrindo

Dourando a nova manhã

O girassol faz na chã

Um espetáculo mais lindo

Como quem está exibindo

Um quadro do grande autor

Parecendo um professor

Mostrando nos gestos seus

As maravilhas de Deus

Na Excelência da Flor.

 

 A flor apura elegância

Suavidade e candura

Afago, mimo e ternura

Paz, harmonia e fragrância

Se não tivesse importância

Jamais nosso criador

Tinha lhe dado primor

Para o mundo inteiro ver

A graça do seu poder

Na Excelência da Flor.

 

 Desabrocha com sorriso

Mostra toda plenitude

Despertando a juventude

Com tudo quanto é preciso

Seja Verbena ou Narciso

Cada com devido odor

Pode confundir a cor

Porque nenhuma desbota

Mas pelo o cheiro se nota

Na Excelência da Flor.

 

 Além da flor alegrar

Alma, vida e pensamento

Serve de medicamento

Tem o poder de curar

Decora o divino altar

Onde se canta louvor

A Deus eterno pintor

Do universo existente

Como se ver realmente

Na Excelência da Flor.

 

Ninguém avalia a soma

Das coisas que a flor enfeita

Compõe a matiz perfeita

De beleza e de aroma

O conceito ninguém toma

Pode haver imitador

Mas se uma rosa for

Feita pelo  artífice

Não tem a mesma meiguice

Da Excelência da Flor.

 

A rosa nasce singela

Entre a própria vizinhança

Tudo aquilo é segurança

Para ninguém tocar nela

Cada espinho é sentinela

Sem nenhum ser sabedor

Que está sendo defensor

Sem se mover do lugar

Corta quem for machucar

A Excelência da Flor.

 

 Até a Rosa do Mato

Onde não tem energia

Recebe com alegria

O vaga-lume barato

Vem assumir o contato

O único iluminador

Que sem interruptor

Passa a noite sem capuz

Jogando pingos de luz

Na Excelência da Flor.

 

 A flor na noite de lua

Dá impressão de uma fada

Com a face prateada

No clarão da deusa nua

Sem poluição da rua

Onde não tem refletor

Ela apresenta o fulgor

Na natureza divina

Na pureza cristalina

Da Excelência da Flor.

 

Realça a flor cintilante

Por entre as folhas da rama

Que não tem primeira dama

Que traje tão importante

Na luz do sol radiante

Exibe o belo esplendor

Desafiando vigor

Com o programa da Xuxa

A sempre-viva não murcha

A Excelência da Flor.

 

 Faz pena ver a beleza

Das pétalas da rosa seda

Se acabar na labareda

Sem poder fazer defesa

O planeta com certeza

Também sofre a mesma dor

A terra com o calor

Faz o gelo derreter

Como está o proceder

Na Excelência da Flor.

 

A flor ensina de graça

E o ensino é correto

Onde o recreio é direto

Desde a mata até a praça

Mas está sofrendo ameaça

Do homem destruidor

Que por falta de amor

Ou seja, barbaridade

Nem se quer tem piedade

Da Excelência da Flor.

 

 A flor nasceu pra ser linda

Decora nosso caminho

Trate ela com carinho

Agradeça a boa vinda

Senão a beleza finda

E ninguém sabe recompor

O que Deus fez com amor

Vamos zelar com presteza

Baseado na pureza

Da Excelência da Flor.


terça-feira, 30 de maio de 2023

CAMINHANDO EM TEMPOS DIVERSOS

 


CAMINHANDO EM TEMPOS DIVERSOS 


Hoje amanheci nostálgico perguntando-me pelas mulheres que amei. Onde estão?, fiquei a fazer a relação de todas com a intensidade anotada na escala descendente do bem querer.

Também me lembrei dos amigos que foram sumindo ao longo do tempo. Olhei para o mar que há muito eu tinha vontade de morar em frente, no entanto não encontrei as respostas. 

Acho que foi a visão de dois amigos caminhando na praia que me fez sentir assim. Eles caminhavam fazendo-me recordar quando éramos jovens e íamos às festas juntos. Muitas garotas foram seduzidas pelas mensagens que eles me ensinavam a dizer, de forma poética, para impressioná-las. 

Noites e mais noites pelas estradas afora em busca de aventuras amorosas sendo que eles nunca deixaram de me acompanhar. Amanhecíamos o dia em rodas de conversas etílicas onde eu sempre enfatizava que a vida de casado era boa, porém a de solteiro era melhor. Confesso que falava assim por não conhecer ainda o sossego de um lar. Nem sonhava em estar aqui falando deles. Foram pessoas que marcaram muito a minha vida de adolescente dentro de um fusca azul na década de mil novecentos e oitenta. Eles tocavam e cantavam muito bem, motivo maior pelo qual eu sempre os mantive por perto.

Ontem, vi-os caminhando sorridentes em um vídeo ensaiado, mas sem o brilho de antigamente. Muito tempo se passou sem que eu tivesse motivos para me lembrar deles. Sei que não precisa agendar para a pessoa se recordar dos amigos, porém muitas vezes é necessário imagens marcantes para despertar esse passado. Eles surgiram no meu celular e me fizeram parar para analisar a cena deles suados. Isso me transportou para os bons momentos das serenatas em que eu os levava para cantarem na janela de uma pretensa nova conquista.

Os dois tiveram tanta influência na minha vida que passei a querer imitá-los. Comprei violão, aprendi suas canções usando-as como lastro para conquistar amizades, etc. Formidáveis e superinteligentes, eu poderia dizer até que foram meus gurus. Hoje me deparei com dois velhinhos que quase não os reconheci caminhando na orla marítima. Aquele que era magérrimo está com uma barriga que só vendo. O outro, surgiu com uma aparência além da idade biológica.  

Eles são bem mais velhos do que eu, mesmo assim éramos três almas num corpo só. O tempo foi passando, o meu gosto musical foi mudando e eles, proporcionalmente, foram se afastando. Parecia que havíamos combinado de quando eu passasse a escutar música clássica eles fossem embora, como de fato aconteceu. Aqui e acolá eu ainda os escutava, entretanto sem a força da época de ouro. 

Lembro-me quando caí num barranco na sobra de uma curva, e logo em seguida os dois tiveram a ideia de me acalmar cantando as músicas que eu mais gostava. Enquanto o pneu era trocado, eles continuaram fazendo um duo sem arredar o pé.   

Essa coisa de ficar relembrando o passado muita gente diz que é coisa de velho. Quando jovens éramos, nem imaginávamos que estávamos construindo algo que serviria para recordações futuras. Esse futuro chegou transformado em presente nostálgico. Todas as recordações estão violando o conceito de que quem gosta de passado é museu, só que a verdade é que não há como se ver livre disso.  Elas foram presentes, tornaram-se passado e agora retornam com uma força bem maior do que na época. 

Pena que não sinto mais o mesmo encanto que sentia pelas músicas deles, meus velhos amigos e ex-ídolos Zé Ramalho e Fagner, personagens dessa história, em parte, fictícia. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 30.05.2023 – 14h14min.  




segunda-feira, 29 de maio de 2023

UM DOMINGO DIFERENTE


 

UM DOMINGO DIFERENTE


Preparando-me para sair. Água e toalha na bagagem. Ontem desci com as malas dos bonecos e acomodei-as no porta-malas. Subi, pintei as portas que faltavam e fui dormir. Agora pela manhã, seis e pouco, já estou pronto para ir ao Parque das Dunas realizar o espetáculo sobre fissurados. 

APAFIS é a associação que está me contratando. Vá ajeitar o cabelo, escutei ordens vindo da madame criticando os arrepiantes fios. E agora? Ah, ficou bom. Dez minutos para descer. Descendo no elevador. Não precisa se estressar. Eu só não me estresso se você ficar calmo, disse ela respondendo ao meu comando. Vou preparado para aceitar que o porteiro me impeça de entrar. Acho que eles fizeram um curso para ser tão incompetentes, comento enquanto me lembro das vezes que havia combinado e fui barrado.  

Cheguei ao parque e fui decepcionado para cima. O porteiro era educado e me deixou entrar. Estou no palco arrumando a estrutura. Você tem a chave?, pergunta-me uma mulher chegando sorridente em minha direção. Não tenho. Conseguiu a chave do camarim e começou a varrer o palco. Vixe, já estou suada. Não vai ser aqui não, disse o contratante chegando e se disponibilizando a levar a troçada para um outro local menos central. Estava muito bom para ser verdade, comentei com João Redondo.

Tenho seis filhos, disse a varredora enquanto continuava a passar a vassoura. A minha supervisora é uma pessoa muito boa, humana e gosta do que faz. Também cuido de uma idosa com câncer de útero. Tem dia que descarrega toda a raiva das dores em mim. Disse também que sempre foi doida por comida e que tinha disposição para devorar uma caixa de chocolate sozinha. Parou um pouco a vassoura, passou a mão na testa e sorriu. É boa de risada.  

O rapaz da TV veio buscar a outra mala. Saí com a tenda já armada no meio da pista de corrida. Se alguém dissesse que eu teria que fazer aquilo antes de me contratar, seria o triplo do valor do contrato, mas como foi um imprevisto, tive que fazer das tripas coração e sair sorrindo igual à varredora. Nada de miséria, pensei enquanto ia desfilando com aquela arrumação de fazer qualquer palhaço tarimbado de circo rir. 

Lá no novo local já estava o pessoal do som e o quarteto esquentando a voz. Vai ser ali em cima. Tenho que dispensar a cobertura porque não cabe. Não, então faça aqui embaixo. Você deve fazer do jeito que deve ser, disse ele aberto ao diálogo.

Foi chegando o pessoal que já me conhecia de longas datas. Abraços e apertos de mãos foi em abundância. Falei com um cidadão de longe. Depois fui até ele. Você é baixista? Perguntei-lhe. Não! Rapaz, tem um baixista que assisto nas redes sociais que é a sua cara. Eu sou vereador aqui na capital. O mico foi absorvido pela simpatia dele e a minha alegria em ter errado. Adoro errar, por isso preciso viver correndo em busca dos acertos senão no final do dia os erros superam os acertos. 

A professora, autora do livro sobre meu trabalho, chegou com o marido e a mãe idosa. E aí? Tudo bem. Seu marido foi convidado a apertar a mão do tecladista. A gente se confraterniza, disse o músico tirando o boné e mostrando a careca tanto quanto a do outro. Deve ter algum trauma, pensei. 

Daqui a pouquinho show de mamulengos com Heraldo Lins, anunciei no bom som. A irmã do músico que esconde a careca debaixo do boné riu da minha voz achando bonita, oia! Pronto, ganhei o dia. 

Durante o espetáculo, procurei o orelhão para colocá-lo em cena, que nada,  havia esquecido em casa. Improvisei com o celular que criava vida a cada palavra dita. Muita estrada para saber improvisar e não perder o ritmo do espetáculo, pensei depois que terminei o serviço imaginando que se eu tivesse notado a sua falta antes daquele momento, não teria sido tão engraçado. 

Uma coisa que me estressou foi a tampa do ventilador. No mesmo instante, tive a ideia de amarrar com nylon, deixe só chegar em casa, pensei sem demonstrar decepção com os objetos que vão se quebrando durante o espetáculo. Toda vez a revisão é feita antes e depois do show. Nunca vi uma coisa precisar de tanta manutenção quanto o teatro de bonecos.  É uma pintura descascando, um elástico sem força, ferrugem na armação... 

A professora ficou abismada com a articulação da boca dos bonecos. Heraldo é danado, enquanto ele não conseguiu colocá-los para abrir a boca, não sossegou, comentou ela com minha esposa. A sua filha veio dizer que tomou um susto quando o boneco olhou para ela e falou o texto. Parecia que havia ganhado vida. Esse depoimento me encheu de felicidade.

Comentei aqui em casa que quando se está longe desse trabalho a vida perde a graça. Parece que dependemos desses bonecos para ter acesso à classe artística de Natal. 

Ex-colegas da universidade estavam presentes falando que foram à França fazer estágio em regência, etc. E o seu menino? Ah, sabe tudo sobre informática. Já fala inglês? Desde os dois anos de idade. Tive que dar-lhe um freio porque ele aprendeu primeiro inglês para depois começar a falar português, disse-me a fonoaudióloga cantora. 

Vou levar você para o interior. Quando? Deixe-me ver e te ligo, disse o dono da TV depois da minha entrevista. Voltei para casa com uma caixa de CDs para doação. Na portaria, já deixei oito para os funcionários. São de música instrumental. Violão. Agora vou escutá-los. Com licença.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.05.2023 – 20h00mim.




sábado, 27 de maio de 2023

ATMOSFERA CEREBRAL

 


ATMOSFERA CEREBRAL


Olhando para a escuridão da madrugada, esperava o sol nascer sentado na cadeira de balanço do alpendre. Naquele instante, quem o visse diria que ele estava representando a mais autêntica solidão. O véu negro transformava as árvores em sombras e ele também era sombra, pensava procurando seu ponto de referência para formar uma opinião sobre o mundo. 

O jantar comemorativo do qual havia participado, ainda permanecia influenciando seus pensamentos. Naquela época, houve um deslocamento do curso normal do cotidiano quando um estrondo igual trovão trouxe a notícia da barragem sendo destruída. Os convidados só foram poupados porque correram para o andar de cima e se juntaram aos empregados de risos abafados por estarem no mesmo nível social de vítimas. 

Voltou para o presente e detectou um astronauta olhando para a mesma escuridão em que se encontrava. Tinham em comum o fato de permanecerem vagando no imaginário. Havia o propósito de ficar sozinho, sem necessariamente estar na solidão, pois permanecia no mesmo espaço residencial junto com as mulheres que vieram depois que as águas baixaram.  

Estava consciente da escolha em conectar-se a um ser pensado e interligado numa só sensibilidade. Isso era ele com os pés na terra e o psíquico no vazio infinito. Percebeu que a grande distância entre os dois era apenas um simples detalhe, e que não precisava desprender esforços para visitar a realidade de cada um deles.

Sua vida cada vez mais se complicava por ter atraído as damas da noite para a mansão. Com a intimidade sendo enlarguecida, elas começaram a exigir do bom e do melhor, e a informação de quando voltariam para suas casas estava sendo negada pelas ladras que contribuíam para sua falência.  

Como é bom ser sombra, pensava ele impulsionado pela situação dramática em que se encontrava imaginando permanecer mais tempo longe da dor angustiante das incertezas. Era sombra, e isso já o completava mesmo sabendo que não iria ficar imune ao processo do desgaste mortal do tempo. Passou a fumar um cigarro atrás do outro, mas isso não lhe satisfez e nem resolveu suas travas mentais. 

Ninguém ataca uma sombra, pensou consigo mesmo refletindo também que ninguém paga ingresso para ver a cara comum dos artistas antes de entrarem em cena. Quanto mais teimava em ser um desmiolado, mais imagens saltavam à sua frente. Era como se o sol desmanchasse o esquecimento trazendo uma enxurrada de lembranças que o fazia permanecer sentado para não tontear.

Uma outra sombra, lá longe, emitiu um som de corça esforçando-se para parir. As lamúrias atraíram um leão que a fez se calar para sempre. As sombras estavam criando vida carregadas de morte. Ele já podia ver seus pés, mãos... o mundo da luz vinha chegando trazendo preocupações e fatalidades. 

Levantou-se para admirar as cores e formas definidas que estava a se formar lentamente. É como se o sol fosse parindo um novo mundo que, ao mesmo tempo, expulsava os borrões noturnos e suas divagações. Agora só restava vivenciar a realidade que não deixava de ser também um personagem criado pelo mundo das sombras.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 27.05.2023 – 06h42min.



sexta-feira, 26 de maio de 2023

NÃO EXISTE DESVIO

 


NÃO EXISTE DESVIO


Chegou em casa atordoada pelos primeiros acontecimentos da manhã. Vinha do plantão. Sentou-se na cama, sorriu e deitou-se. Era muita felicidade para início de um dia de folga. Meu Deus! Vai dar certo! Levantou-se e foi ao banheiro. Começou a escovar os dentes sentada na privada imaginando o quanto tinha lutado para que tudo isso viesse a acontecer. Cheirou a toalha como de costume. Tirou uma seca e jogou a que estava molhada na máquina. Odiava toalha com cheiro de mofo e aquela havia passado a noite sem tempo para enxugar e não tinha como ser diferente.

Olhou para a calcinha e nela nada apareceu que a fizesse desistir da ideia que estava grávida. Seus dias de solidão iriam acabar. Tinha contratado um homem para fazer sexo com ela, pois precisava ter um bebê, mas a convivência com um ser que a chamasse de namorada estava fora de cogitação. Odiava os homens pelos seus maus hábitos de se coçarem em público, dar gargalhadas acima dos decibéis permitidos e urinarem na tampa do sanitário, porém precisava deles para gerar filhos. Claro que já havia conversado tudo isso com as colegas, entretanto nenhuma delas concordava em ficar dormindo sem um ronco com cheiro de cachaça ao lado. Que nojeira, dizia ela enquanto ouvia que muitos soltavam gases durante o sono. 

Ela queria um príncipe encantado que saísse de cena toda vez que ela quisesse ficar sozinha. Já havia tentado com muitos rapazes, porém já havia acontecido de ser abandonada em pleno jantar pela sua mania de controle exacerbado. Tratava-os como deficientes quando estava numa convivência parecida com namoro.  

Durante o banho, já planejara tudo como ia ser. Enxugou os pés com uma toalha pequena. Outra coisa que odiava era frieira, e sabia que se não passasse um pano entre os dedos criaria chulé, inadmissível para seu padrão perfeccionista. Para ela, esses ensinamentos eram a salvação da humanidade. Odiava piadas. Na verdade ela odiava quase tudo, e ficou pensando que a dor do parto iria fazê-la sorrir. 

Foi dormir depois do café. Fechou as cortinas, ligou o ar e tentou fechar os olhos. Revirou-se com uma coceira no couro cabeludo. Depois a coceira foi passando para o corpo ao ponto de tirar-lhe o sono. Ligou a TV e parecia que todos os que lá contracenavam também estavam se coçando. Ela percebeu que as pessoas caminhavam unicamente com o intuído de coçar o solado dos pés. Esses pensamentos ela escondia das outras pessoas para não pensarem que era maluca. Quando começava a perceber um som ou ação, tudo soava com muita intensidade. Parecia que a mente projetava o que ela queria ver e ouvir e assim acontecia. 

Após tomar o antialérgico, acertou o alarme para dali a seis horas de sono. O sol já estava a pino quando acordou no mesmo instante que o telefone tocava. Quem será que em pleno século vinte e um ainda faz ligação telefônica?

Ele morreu! Quem morreu? Seu filho. Não tenho filhos. Estamos adiantados vinte anos, e ele acaba de ser assassinado. Quer dizer que vou ter um filho? Sim, e ele será assassinado depois de lhe dar muito prazer e você quase perder o juízo tentando enquadrá-lo no seu querer. E você também não suportará a perda e se suicidará. Então é melhor abortar. Sim, se não quiser passar por tudo isso. 

Ela levantou-se, foi à caixa de remédios e tomou um abortivo. Já havia feito isso muitas vezes por suas dúvidas não permitirem se arriscar. Dê um tempo e tente fazer sexo com outro, talvez o destino dele seja melhor. Não tem como saber antes de engravidar? Não, só depois de gerado é que se pode dar uma alma e fazer o escaneamento sobre sua vida.   

Morto antes de nascer, essa era a sua sina. Sempre estava a adivinhar o futuro, e por isso amealhava mais e mais experiências dramáticas antes de vivenciá-las. Sua angústia consistia em ter vários projetos com o final sendo dela quase totalmente conhecido. Como foi a morte dele? Ninguém pode informar-lhe. O jeito é pegar um novo ser em seu útero e tentar amenizar essa sua capacidade de interferir no futuro. 

Já era tarde da noite. Perdera o sono e um pouco da esperança em se transformar em uma pessoa normal. Tomou o aparelho nas mãos e telefonou de volta para o plantão do futuro. Aqui não se dá treinamento como chegar aqui são e salvo. Você precisa ir tentando, e com o tempo o destino vai sendo construído pela sua mente. Largou o telefone e saiu procurando espermatozóides pela noite afora. Conseguiu mais um, e logo o descartou.

No dia seguinte, adentrou à sala e encontrou vários caixões perfilados onde exercia a profissão de bioquímica. Ao abrir o primeiro, lá estava ela própria com uma fita marcando a data de amanhã, e foi aí que percebeu que de tanto encurtar o ciclo de outras vidas, a própria, correndo na mesma esteira do tempo, também havia sido encurtada. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.05.2023 – 17h25min.




quinta-feira, 25 de maio de 2023

APARENTANDO SER

 


APARENTANDO SER 


Naquele dia, depois do almoço, uma aflição tomou conta da mulher. O marido não estava em casa e um homem jovem descabelado chegou dando ordens. Prepare o meu jantar que mais tarde vou dormir aí dentro. Colocou a trouxa dum lado, armou uma rede no alpendre e deitou-se.

É melhor o senhor ir embora porque meu marido não está e ele não vai achar nada bom encontrá-lo aqui. O mendigo nem deu para conferir permanecendo de olhos fechados e com um sorriso irônico fingindo estar dormindo.

A mulher fechou a porta da frente e me mandou sair pela de trás. Vá à casa do compadre, conte a história e diga que venha expulsar esse mau sujeito. Fui, no entanto o compadre encontrava-se no barreiro. Parti e o encontrei vindo com uma carga d’água. Vou descarregar os barris para poder ir.

Parecia que o compadre estava com medo do homem. Nunca vi uma carga demorar tanto para ser descarregada. Vamos? Deixe só eu amarrar o jumento, disse ele caminhando lentamente em direção ao tronco de amarrar jumentos. Vou à moita. Deu frouxidão no compadre e impaciência em esperá-lo sair do mato.

Entrou em casa para pegar terço e crucifixo. Esse povinho, disse ele, sai com reza. Ele é magro ou gordo? Um tipão de homem sujo que só vendo. Depois de caminhar um pouco, voltou para pegar a espingarda de soca. Parou para tirar raspa de pau para fazer bucha e comentou: homem grande precisa de muito chumbo para botar abaixo. Percebendo o assobio, quatro cães nos acompanharam.

No caminho, passamos na casa da viúva e ela me deu um litro de querosene. Se ele estiver dormindo, jogue e toque fogo nos cabelos que é melhor canto. Eu só não vou porque estou com uma panela no fogo, mas qualquer coisa grite que levo a turma daqui para ajudá-lo. A senhora não vai escutar por mais que eu grite. Não está vendo que além de ser longe é contra o vento!?, ainda quis convencê-la, porém ela embirrou, e para que eu não saísse falando mal do seu gesto de lavar as mãos, foi buscar uma garrucha que o seu falecido esposo usava na proteção do galinheiro. Leve, só tem duas balas, mas resolve, é só não errar.

Saímos. Coloquei na cintura e logo a arma foi descendo pela virilha. Caso houvesse um disparo acidental, nem é bom imaginar. Arrumei um barbante e amarrei a bicha no cós da calça. Fui caminhando atrás do compadre imaginando o que iríamos fazer. A minha sandália quebrou o pitoco que segurava a correia no solado. Peguei um espinho de xique-xique e atravessei na ponta já pensando onde arranjaria um prego para substituí-lo. Um dos cães acoou um tejuaçu e os outros saíram em dispara fazer a festa.  

O compadre não perdeu tempo: Ave Maria, cheia de graças... Eu pensava que ele fosse corajoso. Chegamos e entramos pela cozinha encontrando a patroa com uma mão de pilão numa das mãos e na outra uma vasilha vazia de alumínio amassada. Ele está roncando, foi logo dizendo. Joguei água, mas nem se mexeu.

O compadre pediu café. É melhor a gente matar logo o homem, depois eu faço o café, o que acha? Não comadre!, vou ficar rezando pela brecha da porta e você vai preparando. Só gosto de matar cabra ruim depois que tomo café com pão. Não tem pão, só broa. Ave Maria, cheia de graça... misericórdia! 

Nessa hora, chega a filha da viúva. O compadre continuou a reza e a moça, aproveitando o escurinho da tragédia, agarrou-me puxando para o quarto. Minha patroa nem sonha o que aconteceu por lá. Eu até achei bom aquele homem ter aparecido para que tudo tivesse acontecido do jeito que aconteceu.

Quando saí do quarto, encontrei a patroa empurrando o compadre para ir enfrentar o forasteiro. Não teve jeito. O covarde se apegava ao terço que só vendo. Era tanta reza que minha cabeça ficou zonza uns dois dias depois da ladainha. Ele começou baixinho, e percebendo que o cidadão não arredava o pé passou a gritar aleluia, vá embora satanás, etc. Misturava candomblé, louvor e gritos de torcida de futebol com suor descendo.   

Os cães entenderam que era para dormir também. Ficaram lá na maior paz e a patroa permaneceu aperreada em ter que dar explicação para o marido sobre aquele estranho dormindo folgado na ausência do dono da casa. Vá lá e dane bala nesse desgraçado, ordenou-me ainda com a porta fechada. Comadre!, gritou o compadre fazendo-a voltar do corredor. Traga logo esse pretinho e não se esqueça das broas. Acabou-se, só batata, serve? A preta seria bem melhor porque dá coragem. Enquanto a discussão sobre broa preta e batata se processava, escutei um estrondo do lado de fora e um mau cheiro entrando pelas frestas. Parecia que o sujismundo havia comido carniça.

A patroa se avexou para olhar pela brecha da porta e avistou seu esposo se aproximando com os trabalhadores. Criou coragem, deu de garra de uma foice, e abrindo a porta cortou os punhos da rede. Eu saltei atirando e os cães... ô carreira grande.  Gastei as duas balas que nem perto passaram. O homem, ao sentir estar sendo molhado com querosene, gritou: mãe, sou eu, seu filho pródigo.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.05.2023 – 10h48min.




quarta-feira, 24 de maio de 2023

FAMÍLIA ESTRANHA

 


FAMÍLIA ESTRANHA


Pisou num olho ao adentrar o casarão abandonado. Era azul puxado para verde. Lindo olho solto no chão que se tornara apenas uma gosma depois do incidente. Subiu os degraus evitando mãos, intestinos e outros pedaços humanos espalhados pela escada. Alguns em fase de putrefação, outros pingando sangue. Tapou o nariz com um lenço dando a impressão que enquanto subia ouvia gritos das vítimas ressoando por todo o quarteirão. 

Chegaram ao andar de cima encontrando tudo limpo num contraste disparado em relação à poeira, fezes e urina de ratos no andar de baixo. Um piano estava sendo tocado por um homem pálido, vestido de preto e com olheiras. Uma taça de vinho tinto...?, em cima de uma mesinha de mármore branco. Polícia!, o chefe da equipe gritou em alto e bom som. Os outros policiais se posicionaram de arma em punho. O homem de preto continuava tocando Bach indiferente aos quatro homens e aquela policial que havia pisado no olho. 

Eu sei coisas sobre você, disse o homem parando o movimento das mãos sobre o teclado. O “sobre você” bateu diretamente no cérebro da policial. Ele estava em transe e ela sentiu como se sua mente estivesse aprisionada. O vento quente do bafo dele foi sentido por ela a dois metros de distância. O zumbido monótono de um solfejo permanecia como se a música continuasse a ser tocada na imaginação daquele ser pálido e triste que ora estava sendo apontado como responsável pelo desaparecimento de pessoas nos últimos meses.  

Os dedos dos policiais ficaram como petrificados. O homem grisalho levantou-se, aproximou-se da taça bebendo seu conteúdo de uma só vez. Dirigiu-se aos policiais e recolheu as armas como se fossem bonecos de cera. 

O que querem aqui? O chefe quis falar sobre o mandado de prisão expedido contra aquele, porém só a mulher conseguiu se expressar. Você sabe que não há como ser aceito por aqui, não sabe? O piano começou a tocar uma canção suave sem que ninguém estivesse dedilhando-o. Como não? Sou dono da Terra, portanto tudo me pertence, inclusive o gado humano que deixo se reproduzir para meu consumo. É melhor voltar para lá e ficar mais mil anos em estágio letárgico, sugeriu a moça que tinha uma cicatriz no pescoço. 

Diga-me o que sabe sobre mim, disse ele virando-se para sentar-se ao piano. Ela atirou na sua nuca, com a arma que estava na bota. A bala de prata atravessou a garganta, mais uma e outra espatifaram a cabeça sendo, rapidamente, decepada por um golpe certeiro da espada dos antepassados samurais que ela carregava nas costas. 

Os policiais voltaram a si e, a mando dela, separaram os membros e depois tocaram fogo ali mesmo. Ela juntou as cinzas, misturou com urina de cavalo capado e enterrou nas valas cavadas em forma da estrela de Davi. Ao saírem, incendiaram o casarão enquanto canções variadas foram sendo executadas como se o instrumento tivesse criado vida. Depois da meia-noite até o primeiro cantar do galo, ventos esverdeados varreram os destroços em busca de algo que permanecia enterrado.  

Após esse dia, as pessoas deixaram de sumir e a cidade voltou a sua pacata rotina. A moça continuou tentando adaptar-se a tomar sangue apenas de animais aproveitando a carne para negociar no açougue da sua irmã, agora também órfã de pai.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.05.2023 – 08h11min.



O OUTRO LIXO

 



O OUTRO LIXO

(MACIEL SOUZA)

 

O quintal aqui de casa é maior do que o necessário, nele tenho até pista de caminhada e dele acumulo alguns relatos. Outro dia recebi a visita do rapaz da Vivo, sondando o local para instalar uma antena. Foi do quintal que surgiu a crônica Frutos Adocicados, em homenagem a meu vizinho, seu Arlindo, e é de lá que colho pinha, laranja, acerola e flores. Ali nosso cachorro foi sepultado e é onde hoje vive a nossa gata.

O ruim é que ele fica numa esquina, limita-se com um beco. Daqueles que pegam o beco, aparecem latinhas jogadas por cima do muro, garrafas pet e, do nada, insistiram em jogar sacos de lixo. Mesmo assim, prefiro esta certa desordem à organização imposta dos condomínios, onde até espirros precisam ser educados. Mas tudo tem limites, depósito de lixo não dá. Investiguei o lixo e, a exemplo do lixo de Luís Fernando Veríssimo, o conteúdo e as pistas apontaram ao funcionário do seu dono. Chamei o proprietário para uma conversa, ele reconheceu seu lixo com mil pedidos de desculpas, fez a limpeza do local e tudo ficou resolvido.

Outro dia jogaram um gato recém-nascido num dia chuvoso, tomei-o nos braços, envolvi-o com uma toalha, coloquei-o em lugar seguro e fiz um rápido diagnóstico conclusivo de que setenta por cento de seus órgãos estavam paralisados. Ao meio-dia, entendi que esse comprometimento chegara a noventa e cinco por cento e o vi agonizando. À tarde, encontrei-o se arrastando e consegui com que bebesse leite através de uma seringa. A partir daí a recuperação foi instantânea: passeou, brincou dentro de casa e começou a reagir às investidas de ciúmes por parte do meu cachorro. Passamos então a chamá-lo de Vitório porque ressurgiu do nada. Minha esposa ficou surpresa e expliquei-lhe que gatos possuem sete vidas.  Depois foi adotado por uma família e ficamos sabendo que era uma fêmea.

Do quintal para frente da minha casa, vivia sendo importunado com um menino que passava e tocava a campainha: Um dia eu pego! Flagrei! Pra ele estava tão comum que simplesmente cruzou o beco, enquanto o segui até a lotérica. Pedi para que não mais se repetisse, do contrário iria conversar com seus pais. A façanha voltou a se repetir e desta vez era a mãe do menino, neutralizando meu poder de argumentar e até de dizer alguns palavrões.

Mas foi hoje à tarde que palmas infantis na minha porta me motivaram a escrever esta crônica, com o título o Outro Lixo, para não confundir com O Lixo de Veríssimo. Eram quatro crianças:

— O senhor é o dono da casa?

 Sim, sou eu!

— Dá pra o senhor devolver nossas bolas?  São duas que caíram no seu quintal.

— Tá certo, vou procurar e jogo de volta!

 

No momento pensei: Por onde andam os pais destas crianças tão educadas e me imaginei bem velhinho rodeado por elas adultas, lembrando do ocorrido. Depois, passou em minha mente minha própria imagem riscando a calçada de seu Zé Lopes com uma patinete, e de repente ele em pé com um bodoque numa das mãos e quatro bolas de barro cozido na outra. Pra nunca mais! E no dito beco sem muro, eu adentrava a área particular do quintal de seu Hermes Nascimento e colhia limões sem que ele ou meus pais nem sonhassem.

terça-feira, 23 de maio de 2023

NEM SEMPRE É DO JEITO QUE SE PENSA

 


NEM SEMPRE É DO JEITO QUE SE PENSA


Mesmo na penumbra, a moça permanecia ocultando os peitos com os cotovelos. Acariciei sua pele bronzeada enquanto ela se encolhia ainda mais, arrepiando-se. Talvez uma da manhã fosse a hora que só o abajur ainda estivesse aceso. Naquele quarto de hóspedes, receávamos que outros escutassem nossos corpos se aproximando. Na mesinha do espelho, seus simples pertences haviam sido colocados a pedido dos meus gestos. Deu para perceber que ela não tinha prática, apenas servia na casa há poucos dias, mas, acredito, a ilusão de fugir levada por um homem forasteiro talvez tivesse lhe impulsionada a fazer a visita. Com a cabeça baixa, permanecia tensa. Quem sabe, nunca estivera "limpa de roupa" em frente a um outro homem. 

Hum!? Levantou o queixo ajudado pelos meus dedos. Queria vê-la olhando para mim, entretanto, com sutileza própria da vergonha, a cama que ela havia arrumado, antes da minha chegada, foi o paradeiro do seu olhar. O silêncio imposto pelo medo de sermos flagrados, obrigou-me a falar a linguagem do toque. Tive o cuidado de mantê-los com suavidade enquanto acariciava seus cachos soltos, lindos e bem cuidados observados durante o jantar. O olhar, que ela me negava naquele momento, havia sido farto durante a refeição como também sua disposição em demonstrar as boas-vindas através do sorriso. Fui servido na área reservada da mansão, e ela foi quem veio, juntamente com uma colega mais velha, me servir. 

Sentia-me um sujeito feliz ao analisar meus sentimentos naquele instante.  Diante daquela formosura, lembrei-me do tempo em que éramos hóspedes da casa do estudante. Nas “noites sorrateiras,” íamos para a “zona” mendigar descontos das profissionais que nos deixavam esperando para só depois da meia-noite é que, se não estivessem alugadas, podiam nos fazer o “favor". Livre dessas amarras financeiras, hoje me via atraindo mulheres por força do cargo. Daria para ser um casamento?, perguntava-me sem chance de prosseguir naquele intuito. Outras virão, e me envergonharia de ter pensado assim. 

Seu respirar pausado e forte chegava-me através do ar quente sentido na base do pescoço. Linda precisava ser tocada com cuidado. Se era a primeira vez, minha responsabilidade aumentaria por saber que todo o processo imaginativo de uma virgem esbarra no medo da dor. Minha experiência em frequentar mulheres, tornou-me perito em detectar cheiros de uma fruta em época de colheita. Ela estava, sim, nesse momento e eu não poderia desperdiçá-lo. Ela veio, não porque quisesse, mas conduzida por hormônios compatíveis com sua juventude.

Um anel de noivado não ficaria bem na minha mão tendo a dela como cara metade, apesar da beleza dela extrapolar a média das modelos, em quilômetros. Minha educação tradicional e a posição social alcançada através de muito esforço, não deixaria amar uma menina do interior sem formação. São as barreiras que vão surgindo e que nos faz utilizar, até de forma inconsciente, a régua da discriminação para medir tudo que vem à frente. Pus-me a domar o querer de ficar com ela eternamente, pois precisava de liberdade, mesmo sentindo algo a mais naquele momento. Estava sendo diferente das milhares de vezes já acontecidas. Deveria ser uma paixão adormecida e que agora estava vindo à tona... não sabia, nem demorei muito nessa dúvida.  

É bom deitar-se, murmurei depois de beijá-la incessantemente. Ela já estava “um mel.” Conseguia retribuir as carícias dando a entender que fosse expert. Mas não, suas mãos deslizavam indecisas sem a “automatização das tarimbadas. Eu estava com fome e ela também. Uma fome contida pela sensação de conforto e paz, isso foi o que senti pela primeira vez em toda minha existência. Encolerizei-me por estar me deixando levar por algo que não dominava. Será que é o tão falado amor?, perguntei-me deitando-me também. Percebi os “olhos da santa” fechados. Como estava linda a minha linda. Ela é humana, pude comprovar ao sentir seu murmúrio cadenciado por duas horas ininterruptas. Mesmo saciados, permanecemos abraçados sem vontade de que aquele momento acabasse. O mundo jamais seria o mesmo. 

Ela chorou e não quis dizer o motivo depois que começou a sorrir. Chorava e sorria. Cobriu o rosto com vergonha de estar se expondo. Nunca pensei que fosse tão bom, disse com voz sussurrante.  Passou a mão em meus cabelos, beijou-me e sorriu novamente virando-se para um momento a sós. Fiquei em silêncio e quieto. Nosso futuro dependia das articulações mentais que estava a fazer. Retornou o rosto e disse: vou me casar com você. Obedeci.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN,22.05.2023–11h25min.



segunda-feira, 22 de maio de 2023

FILHO DEDICADO

 


FILHO DEDICADO


Ela saiu do carro dando conversa às empregadas que estavam a nos esperar na entrada da casa. Naquela noite, meu pai havia sido encontrado no jardim onde sempre ia fumar nos bancos brancos suspensos enquanto “tragava seus segredos.”  

O legista nem se deu conta da nossa aproximação. Estava transtornado por ser amigo da família e isso mexia com seu humor, pude ver de cima da varanda onde fui obrigado a permanecer. Disseram-me que havia sido uma execução vinda não se sabe de onde. Vizinhos? Bom, as duas casas fronteiriças estavam desocupadas e podia ter servido de esconderijo perfeito para os criminosos. 

Com papel e caneta na mão, uma policial tomava nota das medidas que um outro fazia. Para adiantar o serviço, muitas equipes vasculhavam os arredores após duas horas do fato ter acontecido. Minha mãe, aparentemente calma, observava com “cara de paisagem". 

Muitas pessoas continuavam sendo ouvidas, porém o remetente do pedido de execução “permanecia em mistério”. 

O anúncio da morte do meu pai saiu em todos os noticiários do país com artigos enfatizando que ele transitava com desenvoltura em todas as “tendências políticas” e ninguém encontrava motivos maiores para seu assassinato, mas, “em off,” desconfiavam de um certo suplente que havia debandado para a oposição, porém as suspeitas não se confirmaram com o avançar das investigações.

Minha mulher permanecia ao lado do pessoal da cozinha ouvindo o que “saía nas reportagens.” Ali era a “central de notícias clandestinas,” tendo em vista que todos os que “correram” tentando ajudar passaram pelo café servido junto com o pipocar dos “comentários extraoficiais.” 

O padre enfatizou as inúmeras qualidades do morto durante as exéquias noticiando que ainda não se sabia as verdadeiras motivações para o crime. Muitas testemunhas foram dispensadas sem maiores esclarecimentos, inclusive de outros Estados vieram investigadores a pedido do partido do qual ele era presidente, entretanto só serviram para tomar mais café acompanhados de pão de ló. 

Uma mulher apareceu com duas “moças já grandes.” Diziam ser filhas do falecido, momento em que minha mãe mandou expulsá-la da igreja. Não admitiria tal ofensa naquele momento. Depois soube que a “dita cuja” estava entrando com reconhecimento de paternidade, coisa que nem pude acompanhar da minha morada nova nas ilhas gregas. 

Deveria ter uma certa verdade naquilo. Ele sempre mandava a assessora ligar para nossa casa informando que estava em assembleia permanente devido às ameaças de intervenção. Até uma semana longe, ele já havia passado, porém um ou dois dias era comum, daí minhas dúvidas sobre outras famílias “apanhadas” nessas ausências. 

A exumação foi determinada pelo “Juizado Especial de Família.” Outras mulheres apareceram com mais filhos e eu nem desconfiava que tinha tantos irmãos e irmãs distribuídos de norte a sul do país. Assim que mamãe faleceu, cuidei logo de vender tudo e fugir para longe. Ainda bem que eu já havia liquidado o patrimônio quando o a justiça declarou mais de dez irmãos que ficaram sem direito à herança.

Providenciaram uma praça para mudar o nome para o do meu pai. Escolheram uma com nome de flor sabendo que os vegetais jamais iriam reclamar a modificação, só que os comerciantes do entorno, por mais que protestassem, tiveram que gastar com a nova mudança de endereço, especialmente, nos carimbos e nos talonários de notas fiscais. 

Não foi suicídio. Ela morreu durante a noite “sem dar um pio,” ficou provado no laudo médico, quem sabe, remédio para dormir. Desde que o velho se foi, minha mãe via vultos andando dentro de casa. Suas visões tiveram grande influência para ela despedir quase todas as auxiliares. Dizia que as “pessoas chorosas,” ao se lembrarem dele, estavam destruindo nossa família, mas acho que a solidão fez o que ela pensava ser a influência negativa de algumas auxiliares.   

Naquela manhã amanhecida com ela morta, uma lufada de vento chegou-me onde eu morava. Senti um odor de “flores de cemitério” que me provocou ânsias. Tive a intuição de ir lá, sem ao menos saber porque estava a caminho. Parecia uma profecia empurrando-me para o casarão zero nove, como ficou conhecido aquele endereço depois do total de projéteis encontrados no corpo do meu pai.  

Era evidente que estávamos à beira da falência. Os trabalhadores levaram uma boa parte do patrimônio em direitos trabalhistas contribuindo para o desespero dela. O que ela falava de forma enérgica era que nunca chegaria a ficar demente, no entanto foi o que mais se viu nos últimos meses de vida. Sempre dizia que tudo dependia dela e que ainda estava lúcida, apesar de esquecer até que cheiro era aquele da panela esquecida no fogo. 

Respirei fundo ao saber que outras formas femininas diziam ter direito ao espólio por terem sido amantes. As meninas não passavam de adolescentes e não tive como respondê-las de tão cansado que me encontrava. 

As recordações me faziam lembrar dos dois que não mais estavam presentes, e meus irmãos, conhecidos por fotografias nas manchetes, nada significavam. Eu precisava limpar a memória, e nada mais justo do que viajar e me instalar longe daquilo que me enjoava. 

Hoje, encontro-me distante e rico sem que ninguém desconfie da minha participação naqueles assassinatos por motivações financeiras. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.05.2023 – 18h17min.




sábado, 20 de maio de 2023

FLOREIOS

 


FLOREIOS


A obrigação imediata é de continuar "cozinhando" palavras para só depois consumi-las. Por enquanto, alimentos sólidos e água estão proibidos de serem disponibilizados para um cérebro que luta para espremer ideias e colocar o suprassumo na cadeia do entendimento.

É preciso estar disposto a esperar que algo chegue de bom grado para conseguir escolher a pequena porção que irá nortear o discurso. Nessa hora, é necessário usar o que irá dar apoio ao pensamento, senão torna-se uma mensagem tão abstrata que o meio produz repugnância pelo final.

Neste momento, estou com uma faca no pescoço obrigando-me a trazer a fala para a compreensão facilitada. A rede de admiradores da literatura abrange também a ala radical que “força a barra” por uma experiência agradável. Eles estão achando graça do meu nervosismo em não encontrar palavras carregadas de significados que possam exprimir encantamento. São seres invisíveis que mexem nos neurônios organizando a persistência que muitos apelidaram de vocação. 

Sinto que estou subindo a ladeira das dificuldades, e isso me faz usar metáforas como esconderijo das minhas deficiências. O suor permanece pronto para ser derramado se eu continuar a dar sinais de incompetência. Olho para o chão de terra e tenho inveja do grão de areia que compõe a imensidão da estrada. Ele está estático há bilhões de anos fazendo o seu papel de servir de alicerce para quem passa em busca de aplausos. É a sua função, enquanto a minha é caminhar por horas tentando encontrar pérolas entre cascalhos. 

Avisto ideias sendo descartadas pela comissão de frente. O processo de análise se dá na beira da própria estrada onde cada uma delas fica esperando a minha permissão para apresentarem-se da melhor forma possível. O objetivo da amostra é incorporar-se às vitrines vazias das “capas duras” que há muito foram desocupadas pela indiferença dos leitores. Isso se deu pelas inovações alcançadas pelos algoritmos que tiraram os sentimentos e passaram a educar mentes para a objetividade. 

As emoções foram retiradas até das vírgulas. Já não cabe mais o argumento de pausa respiratória, já que os leitores asmáticos ou atléticos servem de exemplo para mantê-las como sinais, simplesmente, gráficos.

As regras permanecem valendo independente de se gostar ou não delas, só que não existem regras no mundo das ideias. Um pacato anjo pode imaginar o que bem entender sem que o transforme num monstro, e eis aí a riqueza das infinitas possibilidades. 

Não há provas da existência do que se imagina existir. Cabe ao processo da crença a função de incorporá-las no repertório, e aqui o processo se assemelha. É preciso desapegar-se de estilos e outras façanhas tradicionais para ingerir o que o autor quer "passar." O próprio devaneio já se torna a lança que quebra o cristal há muito sedimentado no imaginário proveniente da lógica. Nesse caso, o psicológico assume a liderança de todo o processo criativo sem esquecer que a verossimilhança é a âncora que norteia a interligação entre os envolvidos no pacto da interpretação.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.05.2023 – 14h18min.




sexta-feira, 19 de maio de 2023

NO AR

 


NO AR


Está difícil de ser um "Zé Ninguém." Para todo canto que se olha há sempre um conselheiro dizendo como fazer sucesso. Você pode se tornar um bilionário, basta aplicar cem reais "ali" que depois de quinhentos anos você "chega lá," dizem os gurus pedindo um like em troca do conselho. 

Quem não tem bunda pode usar calcinha bundex e remexer em troca de seguidores, sim porque essa parte do corpo feminino tornou-se mercadoria de troca na internet. Falar quantas vezes "finalizou durante uma pegada" também faz parte do caminho a ser trilhado para o pódio. Até uma casa de taipa é motivo para exposição "vangloriante."

Pode tirar o "cavalinho da chuva" se a pessoa gosta de dormir, pois ninguém sente atração em ficar olhando o outro "roncar," e essa mania besta, que é dormir, não é sinônimo de consumo. Quem gosta de consumir sono está fora do mercado, e é recomendável tomar algo para “ficar aceso,” esse é o conselho dos “famosos.”

Estamos vivendo a era da imagem, e o movimento, principalmente dos quadris, tornou-se ouro. Quem não remexer ou ficar olhando os outros remexerem está longe de ser um "influencer."

O dia a dia de um hospital ficou sem graça assim como a labuta de um coveiro. A rotina de buraco sendo escavado não dá likes, mesmo assim já vi garotas dançando em cima de um caixão, e por ter sido pouco aplaudidas, deixaram de postar. O mundo real não cabe no mundo virtual. É preciso sofrer uma "topada" e sair sorrindo, se gritar ou fizer careta, é descartado. O sorriso mascara a dor, e é por isso que existe tanto sorriso onde cabe um choro.

Ontem assisti uma mulher dizendo como ler rápido utilizando a leitura dinâmica, só que ela não falou da dor de cabeça que dá depois. A "zonzeira" e a falta de entendimento não foram ressaltados. 

Os danos causados por uma taça de champanhe, não podem ser publicados. Parece que as pessoas deixaram de tomar água. Ainda não vi uma “bonitona” com um copo d'água na mão dizendo que é a bebida ideal para ser consumida em um voo de primeira classe.

Sinto falta também de pessoas dizerem que se deve escrever para o próprio aperfeiçoamento. Escuto  muito que o importante é ler vários livros por mês, inclusive há canais e mais canais de leituras coletivas, porém de escrita coletiva, ainda não vi um. Pode ser até que exista, mas... A cultura do escrever está em baixa. Consumir é o que vale, e para que escrever?, se já existem vários livros no mercado que não foram comprados? 

Fui visitar um sobrinho na ala infantil de um hospital e ele havia dito à enfermeira que o nome dele era de um personagem do jogo que ele é fã. A coitada, "desinformada," "ficou no doido," foi preciso um outro garoto explicar o que significava aquele nome. Velho é quem não entende essa nova linguagem. 

Tenho pena até de chapeuzinho vermelho. Hoje o que dá "Ibope" são os personagens que atacam, que usam espadas e superpoderes. Uns bolinhos levados para a vovozinha estão no "lixo da atenção." Acredito que se Tarzan fosse relançado, chita teria sua rival "em close" usando fio dental a cada jacaré esfaqueado, e Jane estaria dançando funk, a todo instante, em cima de elefantes, girafas e rinocerontes.

Como ficaria Ali Babá com tão poucos ladrões para fazer frente às organizações criminosas? Tenho certeza que sua caverna seria invadida no outro dia. Os Jetsons seriam ultrapassados por defensores da vida no espaço e os botos cor de rosa, bombardeados por submarinos atômicos. 

Não há mais espaço para Mister Magoo com sua “miopêz” sendo quase acidentado por onde passa. Infantil agora tornou-se sinônimo de aniquilação. Não tem graça um desenho sem explosões e tiroteios. A indústria de armas investiu pesado nos desenhos nesse estilo e hoje colhe os frutos de ser uma das indústrias que mais cresce no mundo. A vontade de destruir e matar só está sendo barrado porque há ainda a vontade de se construir família, e ninguém quer ver seu filho crivado de balas. Será que ainda teremos tempo para reverter esse quadro? 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.05.2023 - 10h48min.



quinta-feira, 18 de maio de 2023

BEM ANTES DO QUE SE IMAGINA



BEM ANTES DO QUE SE IMAGINA


Estava escuro, escuríssimo, dando a impressão que todos estavam cegos. O vento, "com cheiro de chuva," vinha, sorrateiramente, invadindo os narizes dos que estavam naquela mata. Muito silêncio a ponto de pensarem que estavam surdos. Num instante, um odor de mata queimada substituiu o anterior. Surgiu claridades verdes de vagalumes se aproximando, não, não era verdade, tinha sido apenas ilusões criadas pelo desejo de se ver algo. 

Continuavam esperando sem saber porquê. Foi ouvido um barulho abafado. Quando foi isso? Ontem. Ontem estávamos aqui e eu não ouvi. Então foi anteontem, ano passado, há dez, ou mais milhões de anos, não sei dizer. Realmente, essa escuridão nos fez perder a noção do tempo. 

Posso sentar-me? Acho que não tem onde. No chão. Não existe chão. Isso que estou pisando é o quê? É o escuro. Estamos pisando no escuro, vivendo no escuro e somos a própria escuridão. Você se lembra como é a luz? Obrigado pela pergunta, mas nunca tive esse privilégio de saber.

Mesmo de pé, não se sentiam cansados. Uma pausa longa se fez entre eles. Não tinham assuntos e resolveram continuar esperando que alguém os tocasse com o pensamento. Suas almas precisavam ser reativadas. Agora sabiam pelo que esperavam. A lembrança deles acionava um fio conectado com o “outro lado,” entretanto ninguém se lembrava deles para reativá-los, já que ainda não haviam construído nem destruído coisa alguma.

O que faço da vida? Você não tem vida. Como assim? Tudo que você faz é deglutir as horas e esperar por uma “saída para onde não tem entrada.” Isso está além da compreensão terrena. Não me diga que estou morto!? Estamos inertes. Sente dor? Não sei o que é isso. Então relaxe e viva a sua inércia. E eu vou ficar aqui sem sentir? Nem decepção. Estamos na fase da esperança. Aqui, nem de conselhos precisamos, pois o perigo ainda não nos alcançou.

Abriu-se outra janela, e nessa havia claridade mostrando uma multidão de gente em pé. As sensações haviam sumido naquelas pessoas paralisadas pela coragem. Era tanta coragem que o medo nunca se aproximara, mesmo assim, eles continuavam estacionados num deserto. Sem frio nem calor, a diferença do padrão da mata consistia em estar cobertos de luz e com a consciência de permanecer sem fazer absolutamente nada, até que decidissem se alistar nos conglomerados que utilizavam o pensamento coletivo para construir mundos. Uma voz direcionava a atenção dos pensantes e assim cada item ia sendo formado. Não tinha escapatória. Ou ficava trabalhando com o pensamento ou ficava vagando sem utilidade, coisa que fugia do objetivo da criação. 

Com a prática, poderiam ir tirando um pouco de luz para si. O pagamento era em feixes como se fosse uma estrada pronta para se caminhar. Às vezes esses feixes se dividiam gerando novos brilhos, e quando isso acontecia o pensador necessitava abrir mais estradas para que as divisões pudessem trafegar. 

Destrancada a última janela, viu-se o mundo todo construído. Nele foi percebido dores e imperfeições. Cada lugar estava com uma aparência resultante das infinitas mentes que opinaram de como deveria ser. Alguém quis voltar arrependido de ter se habilitado para estar num mundo bastante controverso, mas já era tarde demais. Suas dúvidas não foram perdoadas, por isso permanece, até hoje, dividindo-se em bilhões de feixes humanos, como forma de punição.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.05.2023 – 14h15min.



18 DE MAIO DE 2007 - Maciel Souza




Era o dia 18 de maio de 2007 e a aniversariante amanheceu festiva. Na praça pública, homens sonolentos terminavam de montar o palco onde, à noite, quatro bandas se apresentariam em comemoração à sua emancipação política. Numa delas, o paraense Beto Barbosa.

Nesta noite, antes do início do momento mais aguardado pelos japienses, viajei a Santa Cruz, cidade vizinha a trinta quilômetros. Endereço? Teatro Municipal Candinha Bezerra.

Iniciou-se ali, às 20:00 h, a cerimônia de publicação da 4ª Antologia poética da ASPE (Associação Santacruzense de Poetas e Escritores). Foram convidados para este outro palco os autores do livro Cantos e Contos do Trairi: o professor e escritor Nailson de Medeiros, o fundador da Associação da Rádio Comunitária Santa Rita de Santa Cruz, cantor e compositor Hugo Tavares, o professor e jornalista Marcos Cavalcanti, o advogado Marcelo Pinheiro, o poeta Hélio Crisanto, o músico e compositor Hélio Gomes, o escritor Paulo César, o professor Alessandro Nóbrega, o também professor Gilberto Cardoso, e eu, entre outros tantos.

Por considerar que aquela cerimônia seria significativa para a cultura de minha terra, por um elo, dada a minha participação, tentei fazê-la extensiva às nossas comemorações de aniversário. Embora o tenha feito de maneira moderada, para não parecer exibido, ainda divulguei o evento, tentando em vão convencer algumas pessoas a participarem conosco. Entre outros agravantes, eu tinha um concorrente de peso naquela noite: o cidadão de Belém, já consagrado rei, que atrairia nossa multidão à praça pública, o rei da lambada. Assim, especificamente minha esposa e meu filho foram comigo. É certo que meu cachorrinho também queria ir. Após a cerimônia, retornei à minha cidade trazendo comigo exemplares do nosso livro e a alegria de ter participado do seu lançamento, figurando entre pessoas tão ilustres em um evento tão bem organizado e não menos emancipatório.

Aqui chegando, como era de se esperar, a cidade esbanjava alegria, e percebi que a terceira banda já se apresentava, conforme anunciado: "Tum, tum, tum, bum, bum, bum... vai descendo até o chão..." - esse era o refrão. "Tum, tum, tum, bum, bum, bum... vai descendo até o chão..." - o chão era o limite. Até que anunciaram a próxima estreia e estrela da noite, o cantor Beto Barbosa, que já iniciou sua apresentação adocicando as nossas vidas. Minutos depois, abruptamente, o cantor encerrou a sua participação. A justificativa foi que um senhor que residia próximo ao palco precisou ser socorrido, atrapalhando o show, já que o som potente da banda prejudicava o atendimento. A intervenção para transportar o paciente até o hospital foi rápida, mas a saída de Beto de cena foi definitiva.

No outro dia, a cidade amanheceu ressacada dos seus quarenta e nove anos de emancipação política, com cinco livros autografados, doados para açucarar, sem aspas, a vida de pessoas que com certeza cuidarão muito bem deles. Enquanto isso, cidadãos se dividiam diante da postura e cachê do cantor, que não cumpriu o tempo de dance balance previsto no contrato.

18 DE MAIO DE 2007 (Maciel Souza)

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