O que nos diria a teologia se resolvesse encarar algumas questões contemporâneas?
Aécio Cândido
Eu tinha 13 anos quando passei por um
problema psíquico, digamos. Meu senso de realidade estava perfeito, meu
equilíbrio emocional idem, mas uma questão metafísica me atrapalhava o sono: na
hora de dormir, eu começava, invariavelmente, a pensar na imortalidade da alma
e na infinitude do tempo. O problema interferiu na minha tranquilidade e no meu
sono durante uns dois meses.
Nessa época, eu estudava num colégio
interno e, numa dada manhã, aconteceu um assassinato: um funcionário, numa brincadeira
envolvendo arma de fogo, matou outro. Eu, adolescente, era bastante ligado a
ambos, estivera com eles durante o café da manhã, pouco antes do ocorrido, e
essa morte me tocou profundamente. O colégio decretou férias e nos mandou para
casa.
Em casa, sem o conforto das
conversas no dormitório coletivo, eu custava a adormecer, pensando que um dia
iria morrer e que, após a morte, para a alma, que não acompanharia o corpo, o
tempo passava, passava, passava... e continuaria a passar indefinidamente. Isso
não é, certamente, pensamentos para a cabeça de uma criança e, claro, me
causava grande incômodo e o medo de que estivesse ficando louco: era um
pensamento obsessivo, que me ocorria com hora marcada – na hora de dormir. Não
havia ainda, para mim, a solução dada por Caetano Veloso, e o consolo que ela
traz: “E quando eu tiver saído / para fora do teu círculo/ tempo tempo tempo
tempo/ não serei nem terás sido”. Depois da morte, não sou mais; nem eu nem o
tempo.
O problema foi resolvido quando, de
volta ao colégio, eu conseguia adormecer enquanto os colegas conversavam,
contavam histórias, sem tempo para o silêncio e o encontro comigo mesmo antes
do sono chegar. O pensamento recorrente foi desaparecendo até sumir de vez.
A eternidade é uma categoria
teológica, ela é atributo da alma, que “vive” num tempo infinito e absoluto. A
ciência, sem nenhuma intenção deliberada, tem criado algumas dificuldades para
a teologia, embora os teólogos costumem agir nesses casos como se não tivesse
nada a ver com o peixe.
Quando Einstein identifica o tempo
associado ao espaço e com uma duração relativa, a teologia deveria responder
com alguma acomodação em sua concepção, uma vez que o novo postulado contraria
o tempo de Deus, que tem duração absoluta. Mas ela nada disse, que eu saiba.
A teoria da evolução recebeu uma
atenção mais decente da teologia, o que eu interpreto, de modo flagrantemente
otimista, como uma tentativa de diálogo. Falo de uma teologia mais arejada, não
estou falando dessa teologia de botequim, neopentecostal, de fim de semana, em
que pastores analfabetos multiplicam entre si e crentes ignorantes a indigência
comum de leitura e de pensamento. A teologia arejada não criou nenhuma
explicação alternativa melhor, mas pelo menos aplicou algum esforço intelectual
à questão, alegando que o surgimento da vida e a diversificação evolucionista
das espécies não elimina a presença de Deus na obra da criação, mas apenas O
afasta no tempo, porque, no princípio de tudo, está o Onipotente, como motor
propulsor.
A tecnologia da informação, hoje, com
os supercomputadores e a capacidade infinita de armazenamento de dados na
Nuvem, estabeleceu uma Memória Absoluta, aquela que tudo registra e nada
esquece, em tudo semelhante à memória de Deus. Foi-nos dito que a onisciência
divina armazena em si todos os feitos, de todos os seres humanos, e que no
Juízo Final se servirá dela, da onisciência, para estabelecer o merecimento ou
desmerecimento de cada um. Parece que a velocidade de processamento, além da
capacidade de tudo saber (capacidade de armazenamento), também caracteriza a
consciência divina. Ele nos julgará a todos, vivos e mortos, os bilhões de
criaturas que povoaram o mundo desde o início dos tempos, em fração de
segundos. Os supercomputadores (e o ChatGPT neles instalados) copiaram o
modelo; eles processam em segundos quintilhões de dados: identificam,
relacionam e sintetizam tudo que desejamos saber.
Há poucos dias, tive que expandir a
memória do Google Drive. Ele precisava de mais memória para armazenar TUDO o
que faço. Acho um desperdício completo esta necessidade infundada. Eu não
preciso, em absoluto, guardar todas as fotos que tiro e as que me enviam nas
redes sociais, nem todas as palavras que escrevo, nem os sites que visito e as
notícias que leio, mas o Google, como Deus, acha que é necessário não deixar
nada de lado, não descartar nada, numa declarada guerra à possibilidade de
esquecimento. E assim é.
Em nós mesmos, uma consciência
natural absoluta como a de Deus nos sufocaria. Como sufocava Irineu Funes, o
memorioso, personagem de Jorge Luís Borges. Uma memória absoluta é incômoda e
disfuncional. Seria insuportável. O esquecimento é o contraponto à memória, e
se esta é necessária, aquele também o é. Mesmo essa memória adventícia, fora do
nosso corpo e alojada no computador, começa a nos incomodar. O cérebro,
limitado em sua capacidade de armazenamento, responde com ansiedade e outros
percalços psicológicos às pressões da máquina.
Os teólogos nada têm dito a respeito
da super consciência recentemente conquistada pelo homem, não disponível
organicamente, mas efetivamente colocada à sua disposição pela máquina.
Gostaria de ouvi-los. Também sobre o tempo não absoluto. Gosto de apreciar a
ginástica mental de que o raciocínio humano é capaz.
Enfim, Deus pode não ser real, mas o
crente o é, e sua crença produz boa parte da realidade. Em razão disso, seria
interessante que a teologia não se fizesse de muda para os temas desafiadores
gerados por outra realidade fora do seu círculo de crenças.
AÉCIO CÂNDIDO
Aécio Cândido de Sousa nasceu em Cuité, na Paraíba.
Possui graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (1978), mestrado em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (1991) e doutorado em Sociologia - Université Laval (1996 - Quebec, Canadá).
É professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, aposentado desde 2013.
Tem experiência na área de Sociologia do Desenvolvimento, com ênfase em desenvolvimento local, interessando-se particularmente pelos seguintes temas: sustentabilidade rural, agricultura familiar, cultura política, renda agrícola e não-agrícola.
Fluente análise tecnológica sobre ausência de respostas teológicas.
ResponderExcluirLeitura feita. Acho que nosso missivista foi muito feliz em quase tudo o que disse, inclusive na analogia entre o mundo existencial de Deus e a capacidade de memória do computador.
ResponderExcluirO único senão seria pela afirmação da possibilidade de uma "memória absoluta" na máquina, restando contra-argumentar que é e será impossível reter todo o conhecimento ou sua representação. E o motivo é simples, o computador representa o mundo por amostras, são porções de conhecimento e, mesmo que assim não fosse, é impossível representar o todo em um artefato que do todo faz parte. Além disso, ficam de lado a representação dos sentimentos, da intuição e da criatividade e embora ele possa simular, não é a realidade de per si.
Talvez neste ponto, teologicamente, o computador pode até assumir o papel do gênio do mal previsto por Descartes e que pode ser personificado na narrativa do filme Matrix. Em ambos os casos, a realidade é dominada por quem domina o gênio ou melhor, quem faz a programação. Aqui também se pode afirmar que a realidade virtual ou aumentada, de realidade, possui apenas o desejo de ser.
Dados os argumentos acima, com base na analogia proposta, posso afirmar que a tal "super consciência" alegada não existe de fato, Deus ainda se faz necessário como amálgama do tempo, repositório das consciências e bússola moral. Por fim, assim como a parte não consegue representar o todo, a memória computacional também sofre de um mal humano: se deteriora e se perde com/no tempo. Pelo menos nisso ambas as memórias, humanas e da máquina, sofrem da mesma possibilidade de falha no tempo e não conseguirão a sua absolutez. Máquina/homem 0 x Deus 1! Hehehehe! - Luciênio Teixeira
Excelente!! Como sempre. - Ramilton Marinho
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