terça-feira, 25 de novembro de 2025

CONSUMIDOR DE IDEIAS

 


CONSUMIDOR DE IDEIAS 


Naquela manhã, ele iniciava a turnê pelas 377 páginas de A Pintora de Henna. Um gargarejo vindo do banheiro o fez perceber que a esposa já havia se levantado.

Desviou o olhar para apreciar o quadro exposto ao lado do computador, quando o forte apetite ordenou que escolhesse o que iria almoçar. Abriu a geladeira e aproveitou para pegar também o arroz, na mesma situação congelada em que se encontravam o feijão e a carne.

Dirigiu-se ao quarto para colocar as conversas em dia e, em seguida, retornou para continuar o diálogo com a autora. Passou à página seguinte, deixando um provérbio hindu para trás e encontrando o sumário com seus personagens, prólogo etc.

A esposa ouvia uma música que chegava aos seus ouvidos; ainda assim, o som não atrapalhou a leitura de palavras estranhas ao seu repertório, típicas da cultura indiana.

Ele coçou o pescoço, olhou pela janela e imaginou o zênite como o oposto do nadir — embora nada tivessem a ver com o romance, essas palavras surgiram estimuladas por outras tão comuns ao universo de Alka Joshi.

“... era quase bonito.” Esse quase bonito o fez parar na página 23. Não seria o mesmo que dizer feio?, lembrou-se da discussão tão popular:

— Está meio vazio — disse o pessimista diante de um copo com água.

O otimista sorriu:

— Eu vejo meio cheio.

O filósofo interrompeu-os:

— O copo está apenas pela metade. Nem cheio, nem vazio. O resto depende da interpretação de cada um.

O bom de conhecer novas criações artísticas é a capacidade de tentar, em vão, livrar-se da realidade ao manter as necessidades básicas supridas.

— Com licença! — entrou no escritório a esposa, pedindo que ele cozinhasse dois ovos enquanto ela ia nadar.

Sim, farei isso assim que souber se a pintora de henna conseguirá entrar no palácio, pensou, enquanto a esposa fechava a porta sem se despedir.

A personagem permanecia numa negociação sutil para conseguir prestar serviço a uma das palacianas. Se conseguisse, certamente galgaria posições privilegiadas graças à habilidade para desenhar em unhas.

O alarme mandou desligar o fogo. Foi preciso deixar o romance descansando para evitar que a gema ficasse escura — assim orientava a receita para evitar gases.

Telefonou para a portaria:

— Quando minha esposa voltar, por gentileza, entregue a encomenda que chegou.

O rapaz respondeu que sim e confirmou:

— Conheço — disse, ao ser perguntado se sabia quem era sua esposa.

— Está certo, senhor. Pode deixar. Tenha um bom dia.

“Ele estava perdido em pensamentos e levantou os olhos com um sobressalto.” A frase coincidiu com seu estado de espírito. Há pouco, havia consultado o Sistema Eletrônico de Informação, perguntando por que seu processo de aposentadoria estava parado. Já tinha ido várias vezes à assessoria jurídica, e os advogados não davam prosseguimento aos trâmites legais.

Sentiu calafrios ao passar pela narrativa do aborto induzido e, assim, preferiu deixar para o dia seguinte saber se a criança gerada na traição continuaria viva. Durante esse intervalo, recebeu uma mensagem da esposa dizendo que, há trinta anos, tentava se adaptar a ele. Poxa, pensou sobre o quanto era defeituoso. Acreditava que as viagens que planejava com ela eram uma afirmação de que estava sendo legal, mas não: ela fingia que gostava dele. E agora? Depois dos filhos criados, separar-se não parecia uma boa ideia.

Verificou que, no livro, os personagens estavam vivendo igualzinho e, daí, entendeu a famosa frase: “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.” Pesquisou mais e descobriu que as pessoas passam a enxergar e viver o mundo de acordo com o que a arte mostra — e, assim, imitam comportamentos, estilos ou ideias vistos primeiro em obras artísticas.

Será que ele era o que era por ter acesso a várias produções artísticas? Seu jeito arrogante devia vir de algum personagem, pois, quando um vendedor pergunta seu nome, ele responde que só diz se receber pagamento adiantado; quando a atendente dos totens pergunta se deseja ajuda, responde que precisa de cem bilhões de dólares para permitir ser ajudado. Já percebeu que essas “ajudas” são tentativas de vender combos envenenados; por isso, sai com lorotas para disfarçar o ódio das interferências inconvenientes.

Foi difícil voltar à leitura depois que um personagem enfiou um cabo de vassoura nas partes íntimas da própria mulher por ela ter rido de uma piada de outro homem. A cultura da Índia permite tais atrocidades. Fechou o livro e ficou com o mesmo sentimento de quando estava lendo Ensaio Sobre a Cegueira ou Os Miseráveis.

As dificuldades da pintora de henna aumentaram quando ela foi apontada como ladra. Nessa viagem pelas páginas, ele visitava um primo que sonhava em adquirir o hábito da leitura. Falou da necessidade de sofrer junto aos personagens, sair do mundo real e ir para a fantasia, torcendo para que desse certo a vida narrada pela autora.

Os momentos da criança recém-nascida foram excelentes. A mãe de treze anos, tomada de ciúmes da mãe adotiva. O depoimento gerado pelo lado animal da mãe legítima encontra eco em todos os sentimentos mesquinhos do ser humano.

No condomínio de luxo, os jogos continuavam como forma de entretenimento. Os hotéis visitados pelo leitor despertavam o lado despreocupado da rotina. Alguém para cozinhar e lavar a roupa contrastava com a labuta da pintora de henna.

Ufa! Finalmente, depois de traições, conquistas, abortos, torturas e violência contra a mulher contada por uma delas, chega-se ao final, recomendando que esse é um livro digno de ser lido.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.11.2025 — 18h12min

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