sábado, 20 de setembro de 2025

CRIATIVAMENTE CAÓTICO



 CRIATIVAMENTE CAÓTICO


Levantou-se, como qualquer pessoa sadia se levanta da cama, da poltrona etc. Colocou os pés no chão, nas sandálias, na lama etc. O autor estava em dúvida sobre o que o personagem faria, por isso o leque de possibilidades. 


Depois que o personagem se levantou, ficou esperando um comando para ir se caracterizando dentro do texto. Sem muita ansiedade, torcia para voltar a dormir, isso porque sentia empatia pelos costumes do autor.


Uma nuvem escura surgiu no céu. Tinha a cara de Haruki Murakami — logo descoberto por tentar tomar conta deste espaço autoral com seu estilo característico de inserir detalhes da natureza em suas obras.


O autor original estava bem descontraído depois de desmascarar essa tentativa, quando percebeu uma mulher linda e bêbada saindo de um bar escuro, fumando um charuto e jogando as cinzas no chão.

— Ah, não! Até você, Charles Bukowski? Também quer tomar conta disso aqui com seu estilo alcoolizado?


O leitor queria desistir da leitura, por causa dessas interferências.

— Calma — disse o autor —, ou apagarei o que já foi escrito e continuarei exercendo meu direito de ficar indeciso. Saiba que aqui é um pouso certo para amigos escritores; portanto, não há pressa.


— Eu não posso ficar aqui parado, esperando a morte chegar — reclamou o personagem.

— Espere aí! — disse uma das leitoras. — Essa frase, “esperando a morte chegar”, é do meu ídolo Raul Seixas. E só porque ele está morto, não quer dizer que você possa usá-la sem dar os devidos créditos.

— Tudo bem! Fica registrado que é dele.


— Vamos adiante... bem... hã... onde eu estava mesmo?


— Vamos colocar ordem nesta escrita — disse um crítico literário.

— Desculpe-me — interveio o autor. — Quem lhe chamou aqui?

— Vi a porta aberta e entrei — respondeu o crítico. E, sem gaguejar, tossir ou escarrar, acrescentou:

— É melhor relevar o que foi escrito acima, porque eu, sinceramente, não considero isso literatura. E digo mais: estou interferindo para evitar que isso caia nas mãos da professora Aurora Bernardini. Ela, que até já disse que o livro "Torto Arado" não é literatura... imagine o que diria disso aqui.


O autor, percebendo que a discussão continuaria sem chegar a um consenso, avançou nos trabalhos — contudo, sem muita convicção sobre qual direcionamento daria ao personagem. E, por falta de criatividade, recuou para o início, repetindo a palavra:


"Levantou-se..."


Deu um branco, pois estava de ressaca. Então, o jeito foi pedir ajuda a quem havia farreado com ele na noite anterior. Bukowski respirou fundo, acendeu um cigarro, tomou uma garrafa de vinho de uma só vez, cuspiu no chão e, finalmente, escreveu:


"Levantou-se e foi cagar."


Nessa hora, mais da metade das jovens alunas de colégios tradicionais desistiu da leitura. Outras não só desistiram, como também levaram o texto ao conhecimento dos pais, que, por sua vez, perguntaram qual professor havia indicado essa leitura.


A Associação das Defensoras dos Bons Costumes entrou com uma ação impeditiva, visando demitir todo e qualquer profissional da educação que fizesse referência ao presente texto. Na reunião, lá estava, no banco dos réus, o personagem — que ainda não havia ido ao banheiro, tendo em vista que a sugestão de Bukowski não fora aceita.


Um cão latiu fora do prédio — colocado por Murakami com o objetivo de suavizar a leitura. E, tomando o leme da obra com permissão do autor, ele continuou com seu estilo inconfundível:


Na sala de reuniões, havia cadeiras cinza, almofadas, tapetes, um birô e duas mesas cheias de salgadinhos. Em cima das mesas, jarras com suco de goiaba; dentro das jarras, colheres de pau. Quase todas as duzentas e quinze cadeiras (ele havia pedido a um autor de livro de estatística para contá-las) estavam ocupadas por mulheres decentes, sendo que os homens... estavam todos infectados de chatos", interferiu novamente Charles Bukowski.


— Bote esse cara pra fora! — gritou a fã de Raul Seixas.


Murakami continuou:


— Uma borboleta pousou na boca do poço. Não consegui ouvir o barulho da pedra que atirei no poço.


— Dá pra você parar de falar em poço? — gritou, mais uma vez, aquela que se definiu como sendo uma "maluca beleza". E outra: pare de descrever os ambientes como se estivesse fazendo um retrato falado. Isso cansa.


— É o meu estilo — disse Murakami —, assim como o meu nobre colega aqui — apontando para Bukowski — tem uma obsessão por escrever sobre mulheres desmanchadoras de casamento.


O personagem que havia se levantado no início da narrativa pediu para se sentar, pois estava cansado a ponto de desmaiar. Nessa hora, chegou José de Alencar com seu repertório de desmaios:


— Se quiserem colocar mais gente para desmaiar, podem contar comigo — disse o autor de "Senhora", admitindo que desmaios eram sua especialidade.


Para não se passarem por torturadores de personagens, a turma da reunião, além de ignorar José de Alencar, deu permissão para que o autor original continuasse.


Depois de se levantar da cama do hotel, onde estava de férias com a mulher e o casal de filhos, ele saiu do apartamento e se dirigiu para saborear o café da manhã à beira da piscina. Mais adiante, num palco improvisado, uma jovem cantava marchinhas carnavalescas, acompanhada por uma banda de frevo.


— Esta narrativa está muito água com açúcar — opinou Quentin Tarantino, que havia saído do meio de uma gravação só para dar sua opinião.

— Se fosse eu, já colocaria um homem-bomba se explodindo, só para colorir de vermelho as paredes brancas do auditório.


— Agora me digam: o que é que um cineasta está fazendo dentro da literatura? — perguntou aquele leitor que já estava querendo ir embora.


Nessa hora, ouviu-se a sirene da ambulância, levando Aurora Bernardini, infartada por ter ouvido dizer que isto aqui era "a pura literatura com ecos no pós-modernismo".


— É mentira que eu falei o que não sei, e nem tenho nada a ver com infarto de quem quer que seja! Eu só leio... Mas, pelo jeito, nem isso vou conseguir fazer hoje.


O filho do personagem principal perguntou:


— Pai, o senhor pode pedir ao autor para me colocar como sendo o menino voador?


 — Você deseja voar? Sim, igual a Jesus Cristo, quando subiu aos céus sem ter um tico de asa.

Bem, se o autor quiser, ele pode — até porque, pelo menos, os cristãos jamais irão dizer que isso é surreal.


— E você, minha filhinha, o que deseja que o autor faça por você?

— Bem, pai, eu gostaria de ser mãe e permanecer virgem, igual a Santa Maria. Será que é possível?


— Sim, vou falar com ele. E, se ele se negar a isso, nós pedimos demissão daqui e vamos trabalhar com os escritores da Bíblia — pelo menos lá tudo isso é possível, inclusive escrever que Jonas passou três dias e três noites na barriga de uma baleia... e ainda saiu vivo.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 20.09.2025 - 11h19min.

2 comentários:

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