DECEPÇÃO ESPACIAL
Quando eu disse que queria "dar um tempo da Terra", não imaginei que a NASA fosse me levar tão a sério. Mas cá estou, flutuando numa cabine apertada, cercado por painéis piscando — e agora me veio à mente a dúvida: será que desliguei o gás antes de sair?
O papagaio deixei com a vizinha — uma senhora gentil, embora desconfiada das minhas intenções desde que comentei sobre minha “missão interplanetária”.
O gato… bem, lembrei-me que nunca tive gato. Apenas disse que sim para dar a impressão de que sou uma pessoa sensível, carinhosa e boa com os animais.
Olhando para a Terra parecendo uma bola de gude azulada, pergunto-me: era isso mesmo que eu queria? Quem sabe eu só precisasse de férias no sítio do vovô, caçando préa e comendo fruta de cardeiro — mas agora é tarde para desistir.
O treinamento foi intenso: meses de simulações rigorosas, testes físicos exaustivos, exames psicológicos intermináveis e palestras técnicas sobre como não morrer no vácuo. Aprendi a operar painéis de controle e até a dormir em pé... flutuando, melhor dizendo.
O que está difícil mesmo é dividir o banheiro com três colegas em gravidade zero. Se já é chato segurar a vontade em casa, imagina no espaço — onde qualquer gota fora do lugar vira parte do sistema de circulação de ar. É preciso agendar, negociar, quase mediar tratados de paz só para conseguir cinco minutos na privada.
A solidariedade forçada de quem divide poucos metros cúbicos nos transforma na família Addams. Cada um tem suas manias, seus horários, seus barulhos — alguns agudos, outros tipo trovão — e aqui, no silêncio eterno do cosmos, qualquer som é motivo para alerta.
Os primeiros dias foram empolgantes. Fotos da Terra, vídeos para as redes sociais. Flutuar feito fantasma tinha seu charme. No começo, era divertido trombar nas paredes, dar cambalhotas no ar, sentir-me o próprio super-herói em câmera lenta. Mas aí o tédio bateu.
Primeiro notei que já havia feito todas as fotos possíveis da mesma janelinha. Quando me dei conta, estava conversando com o aspirador automático só para ouvir uma voz que não fosse a minha.
Com o tempo, senti falta de um ventilador ligado no fim da tarde e até de carro de som anunciando velório. Aqui, a gente dorme amarrado na parede, como se fosse um casaco pendurado atrás da porta. Não tem essa de virar de lado, nem de puxar o cobertor no meio da noite, muito menos aquela alegria de achar a parte geladinha do travesseiro.
A gravidade não me deixa deitar; simplesmente flutuo, preso por tiras de velcro, tentando fingir que estou confortável enquanto meu corpo insiste em lembrar que não fui feito pra dormir dentro de um saco colado na parede.
Aqui, banho é com lenço umedecido. Eu daria tudo por um sabonete de verdade, uma toalha fofa e aquele barulhinho da água caindo sem medo de flutuar.
Comecei a escrever um diário. Na Terra, isso é chamado de "terapia barata". Aqui, é chamado de "manter a sanidade enquanto orbitamos a 28.000 km/h".
Meu diário tem entradas do tipo:
Dia 15: Senti cheiro de chocolate. Era miragem.
Dia 16: Flutuei demais e bati a cabeça. Agora vejo duas Terras. Ambas igualmente lindas.
Dia 17: Ouvi um barulho estranho na cabine. Era meu estômago gritando por socorro.
A internet aqui funciona com a velocidade de um pombo cansado. Mandei uma mensagem para minha mãe. Ela respondeu uma semana depois. Disse: "Leve um casaco". Mãe é mãe até em órbita.
Tenho pensado muito na grama do meu quintal. Na brisa da manhã. Até nos mosquitos. Aqui, não tem mosquito, mas tem um colega que ronca como se fosse um enxame inteiro.
À noite, olho para as estrelas e penso: “Bonitas, mas preferia o céu de casa, com nuvens que parecem algodão e não sensores de navegação.”
Na decolagem, senti-me um herói. Foguete subindo, motores rugindo, lágrimas nos olhos. "O universo é o limite", pensei. Mal sabia eu que o limite era o cardápio: sopa em pó, café com gosto de sabão e um creme amarelado que parece ter sido cuspido por um alien gripado.
O que realmente me quebra é a saudade da comida da minha avó. Lembro do cheiro do arroz com alho, do feijão encorpado, do frango assado. Aqui, o almoço se parece com tinta de impressora. É o tipo de coisa que me faz questionar se a evolução da tecnologia realmente valeu a pena. Nenhuma IA ainda conseguiu replicar o sabor do tempero feito por uma senhora que não segue receita. E quer saber? Nem precisa. Porque o que ela faz é memória servida no prato.
O espaço tem seu charme, claro: silêncio absoluto, nenhuma fila de banco, zero boletos. Mas também tem suas desvantagens. Tipo o fato de que não há uma esquina sequer para comprar um pão com manteiga.
Outro dia, sonhei que estava no mercado, comprando frutas frescas. Acordei abraçado a um pacote de comida com gosto de manga vencida. Acordar de um sonho assim é tortura espacial.
Meu maior medo é voltar e descobrir que meu time foi rebaixado enquanto eu salvava a humanidade comendo comida com gosto de isopor.
Cheguei à conclusão de que o espaço é incrível. Mas não tem cheiro de chuva. Nem abraço de vó. Nem pão de queijo saindo do forno. E, sinceramente, um universo sem pão de queijo talvez nem mereça ser explorado.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 23 de setembro de 2024 - 16h23
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