terça-feira, 11 de junho de 2024

AÇÕES VIRTUAIS

 



AÇÕES VIRTUAIS 


Sua vida continua perdendo o significado porque tudo que quer  saber está na palma da mão, e isso rouba-lhe a característica de curioso que sempre o acompanhou.

À frente, está uma jovem que ele jamais imaginaria que fosse leitora de livros. Ela parou a leitura, abriu a bolsa e passou batom. Há uma parede da mesma cor daquela apertada entre os lábios que agora se arrumam por estarem sendo observados. 

Lembrou-se que o viver é composto de quarenta e sete por cento de pensamentos aleatórios. Mesmo que a pessoa trabalhe durante a tarde inteira, ela se entretém com aproximadamente três horas fora do contexto. 

Lá fora, passam carros, enfeiando um quadro natural de uma árvore enorme, enquanto uma mulher caminha, olhando para dentro dos olhos. Ele desvia o olhar daquela pedinte de atenção desleixada. 

Está aguardando o dentista e só faltam seis minutos para tirar os pontos da cirurgia que marcou um descanso forçado de dez dias. Levanta a cabeça e filma um velho carregando a careca e a barriga inchada. Será que bebeu cachaça para estar com o fígado forçando a camiseta marrom? Por isso que a humanidade fica triste pela falta de estética no meio do mundo, disse para si. 

Agora, quem saiu do lugar foi uma atendente a passos miúdos para fechar a porta de vidro sem vedação automática. Aquele momento está tão sem graça que até o bater do encaixe de uma porta lhe chama a atenção.

Não suporta esperar, ainda mais quando, pela hora marcada, já era para estar sendo atendido. Sua rotina agora é uma verdadeira turnê em ambientes que fazem manutenção de organismos igual paredes que precisam ser pintadas. 

Alguém tosse na recepção usando máscara e ele não quer mais ficar preso naquele ambiente de poucos acontecimentos. Imagina que saiu por aí e na esquina havia uma dinossauro controlando o trânsito. Um motorista tem seu veículo açoitado pela cauda do bicho por falar ao celular. De repente, já podem entrar. 

Como foi a recuperação cuspindo sangue? Ela está com medo da retirada dos pontos. Um gemido é ouvido pelo marido que sabe sobre o limite de dor dela abaixo do normal. São dois profissionais na empreitada enquanto o observador só digita o que está se passando na sala com iluminação amarelada de arquiteto.

Saem para um outro consultório vertical onde só há espaço no espaço. Que tal se fizéssemos casas tipo balões?, pensou enquanto olhava para uma varanda cheia de roupas secando entre outras vizinhas.

Fica esperando no carro-cama por uns cochilos, mas o sol manda sair para outra vaga na sombra. Um homem com luvas cata lixo levantando o boné e olhando assombrado para os lados. O outro está sentado no chão, com uma garrafinha d'água na mão admirando os carros que levam sua esperança de um dia se levantar. Uma mulher avantajada é acompanhada por um homem magro de chapéu de couro. Suas celulites são orgulho do magro que admira a bonança exposta sem pudor. 

Ah, esqueceu de dizer que o ambiente havia mudado desde algumas horas. Agora está indo para uma cidade do interior. Sente cócegas no cérebro por utilizar a técnica da concentração forçada nas faixas da rodovia. Nunca mais tinha sentido a sensação de apertar o pé na tábua de velocidade chegando a respirar de alívio ao descobrir que é dependente de adrenalina.

Uma parada na casa de uma idosa chamada tia nova. Ela adotou uma boneca e colocou o nome de Luzia em homenagem à padroeira dos cegos. A vizinhança já conseguiu os olhos de uma outra boneca no monturo. Faltam os cabelos. Vocês não têm cabelos de boneca por lá não?, pergunta entre risos. Ela chora? Não, é até conformada. 

Um magote se gente passa correndo na rua. Daqui a pouco quem não correr não se enturmará. Tocou na chave passando por cima de quebra-ânimo sem, necessariamente, fazer jus aos nomes pela velocidade respeitada.

Já é de madrugada e nem pensa em desligar o espantador de muriçocas assim que uma entrou no seu nariz. Acessa as meninas das redes sociais com seus apetrechos chama-homem à vista. São muitas com preço abaixo da concorrência que lhe mata de vontade de cinco minutos. 

Fica com a cabeça no tampo da mesa esperando o tempo dizer que está no momento de sair de casa. Seu tempo assumiu uma postura de estar à frente do tempo coletivo desde que acostumou-se em ficar acordado numa concorrência com o cantar do galo. 

Pessoas dormem, deixando o silêncio reinar naquela madrugada média de frio, e ele, sem camisa e sem vergonha de estar num quadrado rodeado de ângulos retos, uma mesa com uma cadeira, e só. 

Olha para o teto branco apenas para não ficar sem ter o que fazer. Ainda é jovem, e fica temeroso de ter que repetir, diariamente, o ritual de abrir a janela atrás do sol que nem dá sinais. Voa de volta para o ponto onde deixou a tristeza hibernando e se abraça com a rotina que manda em tudo. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 11.06.2024 - 17h03min.

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