quinta-feira, 23 de março de 2023

COTIDIANO TRAUMÁTICO

 


COTIDIANO TRAUMÁTICO


Vendi a geladeira. A bicha começou soltando a borracha, descongelando-se e vazando por trás. Onde antigamente reluzia uma película "branca como a neve," deu lugar a pintinhas "marrom-estourando."

As frutas vibraram de alegria. Agora nós teremos um lugar estável para ficar, disse a representante delas. Perguntei o motivo da escolha de uma banana para presidente da associação "frutigrangeira." É porque ela é a mais popular entre a gente, respondeu-me uma jaca madura.

Está disponível?, perguntou-me uma mulher interessada na compra. Está! Depois de meia hora negociando, ela escreveu: "hahahaha,” e em seguida disse que queria apenas conversar achando que eu servia para suprir suas necessidades afetivas. Adoro a humanidade, respondi-lhe com "emojis sorridentes." Ela devolveu o "adoro a humanidade" acompanhado com mais hahahas, e enfatizava que gostava muito de cordel, o que me deixou bastante preocupado em descobrir qual a relação de geladeira com poesia.

Outro sugeriu que eu a jogasse no lixo e outro ainda perguntou se era problema de junta. Como assim? Junta tudo e joga fora, kkkkkkkk. É nisso que dá um escritor tentar ganhar a vida montando um vuco-vuco. 

Mas a persistência não me abandonou, é tanto que perdi mais de duas horas escutando o marido gritar com a mulher para ela passar o pix. Não passo agora porque meu aplicativo está "pedindo" atualizações, disse a mulher em viva-voz. Era para ela ter visto isso logo cedo, resmungou ele depois de desligar o celular e coçar a careca precoce para um rapaz de pouco mais de vinte e oito acnes. Passei o dinheiro e ela agora me vem com essa! Por mim tudo bem, disse-lhe sabendo que existe todo tipo de golpe, sem que eu demonstrasse estar desconfiando.

Com muita luta, pude conferir o valor “entrado” na minha conta. Atrás tem umas rodinhas, e basta só levantar a frente que fica maneiro. Descemos o "quase descarte" pelo elevador. Eita!, cadê o homem do frete? Fui à recepção verificar. Está lá fora deitado na calçada, respondeu-me a recepcionista mastigando um "negócio" amarelo com “cara” de fritura. 

Em cima da caminhonete, a "gela" estava sendo amarrada com um certo tipo de cinto de segurança próprio para eletros. O ”senhorzinho” foi girando a manivela enquanto o mecanismo apertava-a na grade da cabine, isso tudo eu assistia do lado de dentro do portão. Fiquei a me perguntar se aquela sucata podia com a outra, observando a despedida de um "ser" que me acompanhou durante doze anos. Se fosse um filho, já estaria na pré-adolescência, a diferença é que eu jamais poderia vendê-lo.

Como é triste a vida de uma geladeira, pensava ela sendo levada para outra cidade. Nem me perguntaram se eu queria ir, agora fico sendo sacolejada neste carro velho, sujeita a sol e chuva sem nada por dentro para me sentir útil. Até o gelo das "caçambas" foi jogado fora. É como se tivessem comido meus pés, pois o depósito para guardar a água do desgelo enfiaram no meu congelador. Isto é lá vida!, continuava dizendo para si mesma enquanto tentava suportar as gargalhadas dos veículos buzinando.

O comprador não se "desligava" do celular. Sou professor de educação física, confessara no intervalo da briga entre ele e a mulher. Na "arrancada" do carro, deu para ver seu semblante de satisfeito por ter feito uma boa compra, e eu por ter me livrado do entulho. 

O motorista do “frete” ia pensando como pedir uma gratificação a mais por ter esperado além do combinado. Ficara debaixo de uma árvore e sem almoço esperando que seu cliente retornasse com a compra. Enquanto remoía suas feridas “mal saradas,” lembrou-se da mãe morta há um ano. Todo dia vinte de cada mês, ela vinha em forma de lembranças quando dizia ao menino obediente: meu filho!, estude para ser gente, e ele entendia estudar para ser agente, é tanto que se tornou, sim, agente penitenciário. Aposentou-se e arranjou um carro para "pegar frete" já que sua aposentadoria está toda comprometida com os nove filhos das viúvas do crime que se voltaram para ele com o objetivo de colher o sêmen de alguém com condições de pagar pensão. 

Que vergonha você me fez passar, disse, calmamente, o rapaz para a mulher entretida em atualizar o aplicativo. O homem poderia ter pensado que éramos estelionatários. Nunca mais vou deixar você resolver as coisas. Isso era para ser feito depois.  É, mas ia dar problema, pois preciso de likes no meu canal. Eu boto onde? Ali no canto. Papai, vamos fazer picolé? Aqui está o dinheiro do frete. Mas está faltando vinte. Depois eu pago o resto. Deixe-me levar estes mamãos em troca dos vinte que faltam!

O “fretista” saiu com um saco cheio da safra do quintal da sogra. Quando ela chegar vai achar ruim, mas eu digo que foram os meninos que comeram. Marido!, aquelas frutas davam para quase um mês de consumo, disse ela enquanto limpava o recém-chegado eletrodoméstico. Não pode ligar agora na tomada, senão queima. 

A menina, que estava fazendo o dever de casa, largou tudo para vir olhar a novidade. É bem colorida, quis se fingir de normal a portadora de daltonismo. É vermelha, disse o menino "tirador de onda." Ela fez que não ouviu, afinal precisava medir as palavras para não fazer seu irmão cadeirante chorar ao escutá-la dizer: fica na tua, aleijado. 

Distante alguns quilômetros, a sogra do rapaz calvo realizava a fantasia de um adolescente. Ela postara suas fotos no site de encontros dizendo ser professora de sexo. Os iniciantes poderiam procurá-la a qualquer hora do dia ou da noite que seus desejos seriam todos realizados.  

Três horas da tarde, o rapazinho, "gazeando aula" em combinação com o tio “sacana,” encontrava-se no ritual de iniciação. Seus quatorze anos não lhe dava direito a entrar num motel, porém sendo sobrinho do dono, sim, foi possível. 

O tio, quando garoto, sentia falta de alguém para lhe conduzir nesses assuntos, e depois que se tornou empresário da noite, não perde a oportunidade de conduzir os seus nessa ação secreta longe dos irmãos.  

A sogra nem se deu conta da falta das frutas quando chegou de volta com a “bolsa satisfeita.” Ela ainda era bem “arrumada.” Tivera sua filha aos treze anos de idade, sendo avó aos trinta, aos quarenta sentia-se uma mulher jovem com potencial para lá de bom, o que de fato era. Fazia academia, plástica, creme hidratante usava até no lavar dos pratos. Aquela especialista em massagem tântrica dispunha de Cleópatra, doméstica, enfermeira... dependendo da escolha do cliente, ela se fantasiava.

Na noite do dia seguinte, uma família inteira chupava picolé caseiro produzido numa geladeira recém-adquirida assistindo ao jornal e censurando a mulher madura, não identificada, que desvirginou um jovem inocente num quarto de motel de luxo. A polícia procura pistas do vendedor da geladeira, dizia a reportagem.        


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.03.2023 – 06h35min.



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