Trinta anos, indo a passeios com diferentes mulheres todas as noites. Várias delas se aproximavam apenas para mais uma noite de consumo quente, assim definiam aquele momento em minha companhia. Em qualquer lugar, parecia que havia um convite no meu olhar. Os desejos saltavam, ricocheteando, e, de pronto, a mensagem era entendida. Dali até os “finalmente” bastava só mais um “olá”.
Nunca tive filhos, pois saíam embalados no preservativo diretamente para a lixeira. Temia que nascessem com algum transtorno mental, eis o motivo de tanto medo de colocá-los no mundo. Pensão, escola, vacinas... jamais enfrentei tais responsabilidades, pois aprendi a evitá-las, tomando como exemplo meus colegas que amadureceram antes de mim e reclamavam por não terem se precavidos.
Fui casado com minha grande paixão, que sonhava em voar sem paraquedas. Escondida, agendou um salto, e até hoje sinto sua falta. Dez anos mais nova, pensava em ser atriz. Pena que desistiu depois de experimentar o volume de páginas a decorar. Ela me inspirava ao me desafiar a escrever vinte páginas todos os dias, como fazia com o pai falecido. Viciou-se em rasgar meus péssimos poemas, servindo-lhe de autoafirmação como coautora da minha produção literaria. Reclamava que eu precisava estar à disposição dela sempre que precisasse sair às compras. Ainda bem que nunca procurou outro financiador dos seus projetos.
Gravava vídeos longos, fazendo caras e bocas. Nunca gostou de ler, porém comprava livros em sebos para pintar de amarelo as interjeições, verbos de vermelho e quando encontrava uma palavra que não conhecia, cortava com um estilete e colava no espelho da pia.
Eu a conheci no lançamento do meu décimo livro. Lá estava ela, saltitante, com grandes olhos verdes para o autor. Foi direta. Disse que queria se casar comigo naquele momento. Seus pais? Já sou de maior, disse apontando para seu registro de nascimento de vinte anos.
Aceitei o desafio de perambular pelos trâmites cartorários durante dois meses. Valia a pena, pensava eu, até que finalmente ficamos a sós. Já na primeira noite, ela montou toda uma fantasia de branca de neve, chamando-me de meu Zangado. Sempre exercia uma personalidade diferente a cada amanhecer. Obedeci-lhe como um jumento de carga. As noitadas fora de casa foram transferidas. Não saía nem para comprar mantimentos. Os livros nos sustentavam. Nos lançamentos, lá estava ela no caixa. Que sorte a sua, hein?, diziam os mais chegados. Ela apenas ria. Deixava os discursos para mim, porém em casa dizia o que dizer. Eu lia para ela. Chorava em narrativas dramáticas, na mesma intensidade que gargalhava em momentos graciosos.
Nunca fomos de beber nem fumar. Depois do aconchego, um sono leve despertado para que ela pudesse contar histórias inventadas na hora e que eu aproveitava em meus romances. Gostou? Perguntava-lhe depois do capítulo escrito. Ela sempre modificava, e, por incrível que pareça, para melhor.
Hoje, quando estou escrevendo, lembro-me dela. O que será que ela diria?, penso quando travo. Incorporo-a. Imagino seus lábios carnudos ditando palavra por palavra, saindo daquela boca de sorriso perfeito. Sua convinha do lado esquerdo do rosto, indicava quando estava pensando. Aí vem coisa, eu pensava em silencio, esperando mais uma fabulosa narrativa.
Hoje, chorei pela sua ausência.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 17.06.2025 – 09h00min.
Conforme demonstrado, as palavras podem eternizar laços e aliviar ausências. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirO texto é uma narrativa marcante, que mistura crueza e lirismo de maneira habilidosa. Um dos pontos mais positivos é a autenticidade da voz narrativa: ela flui com naturalidade, alternando momentos de sarcasmo, crítica social e ternura com grande domínio da linguagem. O autor conduz o leitor por uma jornada emocional intensa, revelando vulnerabilidades e contradições humanas sem disfarces.
ResponderExcluirA construção da personagem feminina é particularmente cativante — complexa, instigante e cheia de vida — e sua ausência no presente do narrador confere ao texto um tom melancólico muito tocante. O casamento entre literatura e cotidiano, vivido pelo casal, dá à obra uma atmosfera quase mágica, onde o amor, mesmo imperfeito, alimenta a criação.
O texto emociona, provoca e convida à reflexão, sem jamais perder sua força poética. É um belo exemplo de como as palavras podem servir de aliança entre o vivido e o imaginado.
Sou representante da Editora Moderna. Descobri este Blog recentemente. Parabéns pelo alto nível de literatura aqui apresentada.
ResponderExcluirBom demais!
ResponderExcluirGostei muito...
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ResponderExcluirO texto “Aliança com Palavras” é um relato intimista e de forte carga emocional, que transita entre a crônica memorialística e o conto confessional.
Possui ma voz narrativa madura, que equilibra ironia, lirismo e melancolia. A escolha de palavras é, em muitos momentos, habilidosa e provocadora, prendendo o leitor com imagens marcantes como: “os desejos saltavam, ricocheteando” ou “montou toda uma fantasia de branca de neve, chamando-me de meu Zangado”. Há um domínio notável da linguagem emocional e simbólica.
A figura da esposa é traçada com detalhes que revelam sua complexidade – criativa, intensa, excêntrica, mas também controladora e instável. Essa ambiguidade enriquece a leitura e confere densidade psicológica ao texto. O narrador, por sua vez, transita entre a apatia prática da juventude e uma maturidade tocada por perdas e reminiscências, formando um contraste interessante.
A escrita aparece como ponte entre o casal e como elemento simbólico da convivência, ora libertadora, ora opressiva. A ideia de que ela “modificava [os textos] para melhor” é uma metáfora poderosa para o impacto da convivência na própria construção identitária e criativa do narrador.
Em alguns trechos, o texto alterna abruptamente entre registros líricos, confessionais e quase humorísticos, o que pode quebrar a coesão emocional. Por exemplo, o parágrafo sobre o uso de preservativos e medo de filhos destoa do lirismo melancólico do restante, soando mais cínico do que reflexivo. Uma transição mais cuidadosa entre os tons ajudaria a manter a consistência narrativa.
Uso pontual de clichês ou imagens excessivamente carregadas
Expressões como “obedeci-lhe como um jumento de carga” ou “saltitante, com grandes olhos verdes para o autor” beiram o exagero dramático ou o estereótipo e podem ser substituídas por descrições mais sutis e inventivas. A originalidade presente em outras passagens poderia ser estendida a esses momentos para manter o alto nível.
Mesmo assim, é um texto tocante, criativo e intimamente construído, que revela a habilidade do autor em fundir vida e literatura. Apesar de alguns pequenos tropeços estruturais e de tom, o texto brilha ao oferecer uma memória viva e contraditória de uma mulher intensa e inesquecível. A relação entre escrita, amor e perda é tratada com sensibilidade, e o texto cumpre com vigor sua proposta emocional.
ResponderExcluirEsse texto é um exemplo perfeito de como desperdiçar um bom tema com uma execução desorganizada, vaidosa e pretensiosa. O narrador soa como um personagem que confunde libertinagem com profundidade, e cuja autopercepção narcisista irrita mais do que instiga. O texto tenta flertar com a confissão íntima e a autoficção, mas tropeça na própria falta de estrutura e no sentimentalismo piegas.
Logo no início, a repetição de ideias ("indo a passeios com diferentes mulheres todas as noites") cansa e soa artificial. O trecho sobre o medo de ter filhos por possíveis transtornos mentais não só é mal explicado como também moralmente duvidoso e ofensivo — gratuito, sem nenhuma função narrativa clara além de chocar por chocar. Fica difícil simpatizar com um personagem que parece se orgulhar da própria covardia emocional e da irresponsabilidade disfarçada de sabedoria.
A esposa, que deveria ser o coração da história, vira uma caricatura bizarra: mistura de musa, controladora, palhaça e editora literária improvisada, tudo isso com atitudes que beiram o inverossímil (colorir interjeições? cortar palavras com estilete?). Em vez de parecer excêntrica ou fascinante, soa como uma personagem mal construída, criada para sustentar a vaidade do narrador.
A linguagem tenta ser lírica e reflexiva, mas na prática é apenas carregada e sem ritmo. Metáforas como “obedeci-lhe como um jumento de carga” são toscas e destoam do tom. O excesso de detalhes inúteis (ex: "convinha do lado esquerdo do rosto") dilui a emoção, tornando tudo forçado e melodramático.
Por fim, o texto termina como começou: perdido entre a nostalgia barata e a masturbação do próprio ego autoral. Em vez de emocionar, entedia. Em vez de iluminar, escurece com uma névoa de palavras desnecessárias.
crítica apresentada acima demonstra grande rigor técnico e literário, o que é digno de respeito. Contudo, ela falha ao não considerar o texto dentro de seu próprio universo poético, bem como desconsidera tradições literárias brasileiras que justamente flertam com a oralidade, a autoficção desregrada e a figura do narrador vaidoso — veja-se Lima Barreto, Nelson Rodrigues, Caio Fernando Abreu ou mesmo Machado de Assis, em sua fase mais íntima e irônica.
ResponderExcluir"Vaidoso e pretensioso": O narrador é, sim, vaidoso — mas isso é proposital. O texto é narrado em primeira pessoa por um personagem assumidamente ególatra, cuja autopercepção beira o cômico. A vaidade, aqui, é elemento de construção, não defeito estrutural. Autores como Rubem Fonseca e João Gilberto Noll usaram a vaidade e o hedonismo de seus personagens como camadas para revelar suas fragilidades.
"Confunde libertinagem com profundidade": Esse é um julgamento moral, não literário. A libertinagem do narrador revela sua tentativa de preencher vazios, sua fuga da responsabilidade e o medo da finitude — temas clássicos da literatura existencialista. É um homem em decadência afetiva, com ecos de Dom Casmurro e Brás Cubas, que também eram narradores com falhas de caráter e visões distorcidas do amor.
"Sentimentalismo piegas e falta de estrutura": O sentimentalismo é parte essencial da voz narrativa. É um texto de memória, de reconstrução afetiva — e como tal, está sujeito a rupturas, a elipses, ao exagero emocional. Em “Felicidade Clandestina”, Clarice Lispector transforma a emoção em desestrutura narrativa; aqui, o mesmo processo ocorre: o narrador tropeça porque lembra, não porque escreve mal.
"O trecho sobre filhos é ofensivo": A fala sobre não ter filhos por medo de doenças mentais é crua — e deve ser. A literatura tem o dever de tocar em zonas desconfortáveis. Não se trata de fazer apologia à irresponsabilidade, mas de apresentar o retrato de um homem que viveu à margem das obrigações sociais. É imoral? Pode ser. Mas também o era Bentinho, quando manipulava Capitu. Também o era Riobaldo, ao negar seu amor por Diadorim. O incômodo não invalida a função narrativa.
"A esposa soa inverossímil": A esposa é símbolo. É a musa, a revisora, a amante, a antagonista — e, como tal, carrega traços caricatos. Machado criou personagens como Quincas Borba, que beiravam o delírio filosófico. Aqui, a mulher que pinta livros e rasga poemas com estilete talvez não exista de fato — talvez seja mais uma invenção do narrador. Uma construção fantasiosa de alguém que vive preso à memória. A pergunta correta não é se ela é real, mas: o que ela representa?
"Metáforas toscas e linguagem sem ritmo": A metáfora do “jumento de carga” é rústica, sim — e exatamente por isso eficaz. Serve para ilustrar a passividade voluntária, o cansaço da obediência amorosa. O ritmo do texto se encaixa no fluxo da memória — por vezes rápido, por vezes lento. O autor opta por um estilo entre o confessional e o cronístico, o que permite que o lirismo bruto conviva com o detalhamento cotidiano.
"Nostalgia barata e ego autoral": A nostalgia é o motor do texto. E o ego, uma armadilha deliberada do narrador. Se há excesso, há também coragem. Poucos personagens contemporâneos têm coragem de dizer: “Temia que meus filhos viessem com transtornos”. O que a crítica chama de masturbação do ego pode ser lido, na tradição machadiana, como autossabotagem. O personagem se admira, mas não se perdoa. Ele se descreve com orgulho, mas também com uma tristeza que só é possível a quem já perdeu.
Em suma:
O texto não tenta ser um clássico. Tenta ser uma confissão atravessada pela memória, pelo desejo e pela perda. Dentro desse universo, a aparente desorganização é coerente, o lirismo exagerado é legítimo, e o personagem — apesar de irritante — é profundamente humano. A literatura brasileira já fez de personagens moralmente questionáveis seus maiores ícones. Este narrador segue essa tradição, não para ser admirado, mas para ser lido com desconforto, empatia e, sobretudo, interpretação.