sexta-feira, 27 de junho de 2025

DANDO A VOLTA POR BAIXO


 

DANDO A VOLTA POR BAIXO


A vontade de me afastar de todos vem da placenta. Não há outra explicação. Já tentei me enturmar, dizer que faço parte de um ou outro grupo social, mas nada me deixa mais feliz do que ficar trancado em casa.

Fui, inicialmente, isolado e protegido para me desenvolver no reino da fantasia, onde havia uma escrava para atender minhas necessidades básicas. Por isso, senti um choque quando fui expulso do paraíso. A serpente que trazia a maçã a todo instante foi assassinada, transformada em cordão umbilical e jogada fora do paraíso. Deus desistiu de mim naquele momento. Ele batia cerca de noventa vezes por minuto para dizer que estava ali pertinho, transformado em um simples coração, quando tomei consciência da anatomia humana.

Se eu tivesse me conhecido antes, talvez fosse um fracassado. Não que eu me ache um ídolo, mas teria sido o escravo mais açoitado no pelourinho por não querer fazer absolutamente nada. Acho que nem teria permanecido vivo, e se permanecesse, seria doente, sem rumo, nem prumo. Fome e frio eram agravantes na minha experiência de morte, sim porque depois de habitar o paraíso durante nove meses, praticamente morri e vim para o inferno, onde tenho que trabalhar para suprir o que antes chegava através da serpente.

Lá, eu assistia ao filme dos alimentos sendo digeridos pelo estômago. Escutava a trilha sonora do fígado lançando a bile feito míssil atômico, quebrando tudo e refazendo substâncias para a próxima batalha. Meus sentidos aguçados percebiam quando minha cápsula gestora fumava ou bebia. Aprendi a me defender com os níveis de dopamina me recompensando, distraindo-me e me levando à morte de viver aqui fora de forma satisfatória.

Foi lá que tive meu silêncio respeitado. Precisei de décadas para entender que minha inadequação ao mundo não era doença, mas memória. Sou um saudosista do líquido amniótico.

Minha gestação foi uma novela cósmica de nove capítulos, cada um narrado por um órgão da minha mãe. O baço era o cômico. O intestino, o vilão. Os pulmões sussurravam as canções da angústia. Já o coração, fazia papel de protetor, batendo forte, mas me abandonou no parto. Cheguei no palco sem aplausos, nu, escorregadio, chorando por não saber atuar nesse roteiro improvisado chamado vida.

Por isso, sonho em viver num lugar onde não se precise explicar o porquê de tanta insistência em voltar para o início.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 25.06.2025 - 10h21min.



Um comentário:

  1. Crônica visceral que transforma a saudade do útero em poderosa metáfora sobre a solidão e a busca por pertencimento. Boa reflexão sobre a memória primal e o desalento de existir fora do paraíso. - Gilberto Cardoso

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