MICROFÍSICA DO PODER
Desde pequeno, percebeu que não podia fazer muitas escolhas por conta própria, principalmente na escola, onde sempre ouvia um sente ali, cale a boca, mão no peito ao cantar o hino. Só mais tarde, entendeu que aquele controle constante sobre a sua rotina tinha o objetivo de moldar seu comportamento.
Você merece zero, disseram-lhe certa vez ao lerem sua redação criticando a rigidez do colégio. Por ingenuidade, ficou feliz, acreditando que havia ganhado de presente o sol e a lua, ali representados por aquele círculo. Não pode questionar, foi dito por uma vítima expulsa na semana da Pátria.
Anos depois, ao ingressar no mercado de trabalho, descobriu que a lógica de controle só havia se sofisticado. No escritório, cada segundo era vigiado, cada ausência anotada, cada deslize registrado. Não havia gritos nem punições explícitas, mas todos sentiam constante vigilância.
Adoeceu frente à pressão. No ambiente médico, sentiu o peso dessa microfísica. Em vez de escutar suas queixas com mais atenção, o médico disse que ele estava “exagerando”, fazendo-o perceber que o saber médico também pode operar como ferramenta de controle, definindo o que é normal e o que precisa ser silenciado ou corrigido.
Foi para casa. A postagem introspectiva que fez à noite rendeu inúmeros comentários: está deprimido? quer atenção? Por não ter calibrado sua emoção, o vigia sutil, conhecido por algoritmo, aproveitou para puni-lo com curtidas a menos.
Desesperado e não entendendo a lógica dos trâmites sociais, começou a ler Michel Foucault, e foi aí que entendeu que o poder se espalha em redes, infiltra-se na linguagem e nos gestos, e até consegue levar alguém a optar pelo hábito de expressar elogios a quem não é merecedor em troca do poder de dominá-lo.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 04.07.2025 -13h50min.
O texto “Microfísica do Poder” é uma verdadeira obra de crítica social embebida de sensibilidade e reflexão filosófica.
ResponderExcluirCom uma narrativa fluida e impactante, o autor consegue traduzir conceitos complexos de Michel Foucault em vivências pessoais, tornando o texto acessível, mas sem perder profundidade.
A escolha de episódios cotidianos, como a rigidez escolar, o ambiente corporativo e o julgamento médico, confere à obra uma dimensão real e universal.
Cada parágrafo é carregado de significado, revelando as sutilezas do poder que nos cercam desde a infância até a vida adulta. O uso do humor sutil e da ironia, como na cena do “zero” recebido como presente, demonstra habilidade literária e capacidade crítica.
Além disso, a conclusão — com a descoberta do pensamento foucaultiano — fecha o ciclo com maestria, mostrando que o autoconhecimento e a leitura crítica da sociedade são ferramentas de resistência.
O texto, enfim, não só emociona, mas também instiga o leitor a repensar suas próprias experiências. É uma aula de filosofia em forma de literatura.