segunda-feira, 3 de abril de 2023

MEXE E VIRA



MEXE E VIRA


Domingo na praia, bola rolando dos pés do pai para os do filho. Como é chato ser bola, disse a própria querendo fugir para dentro d'água. Pra cá não!, borbulhou o mar. É gente, é prancha, é lancha. Fique aí na areia mesmo! Aqui também não! Além de bola, tenho que aturar fazedores de castelos e cavadores de buracos. Como é ruim ser areia. Eu já fui pedra. Naquele tempo as pessoas me respeitavam e até me utilizavam como arma. Agora sou subutilizada, inclusive, pelos gatos para enterrar o que querem. 

Faço isto sim, sem nenhum problema na consciência porque se eu deixar exposto, como os cães fazem, serei taxado de bicho nojento. Não admito que me coloque em suas comparações, rosnou o cão. Somos nós que damos proteção e já fomos até ranqueados como sendo os melhores amigos do homem, e se não limpamos dejetos é porque nossos donos fazem por nós. Limpo porque quem não fizer assim, a turma toda reclama. É uma questão de bom-senso. 

Coitado de nós, os bons-sensos, sempre nos chamam para justificar ações não tão dignas para um ser humano fazer. Limpar cocô de cachorro não é, mas parece, para alguns, até mais importante do que salvar a floresta amazônica. 

Não sei o porquê que toda conversa dos humanos sempre deságua em mim, ventilou a floresta. Em todo momento, colocam-me no meio das discussões parecendo que só existe a amazônica de floresta no mundo. Pior é comigo, chegou o mundo trovejando. Sou apelidado de o mundo encantado, o mundo das trevas, o mundo do crime e por aí "VAI". Falaram de mim e por isso tenho que colocar minhas indignações. Eu sou o "vai," e estou insatisfeito porque resolveram que tenho que me acoplar ao "vem." Eu já tinha a função de ir, agora querem que eu venha e, assim, passei a ser balançado no vaivém chegando a dar dor de cabeça.  

Não diga que você também está comigo, "chuchou" a "dor de cabeça." Em todos os lugares, usam-me como desculpas até quando não se está a fim de trabalhar, de namorar, e nesse último caso o marido cai na besteira de dizer: tome um 'remedinho minha queridinha." Mas como?!, se não estou lá! Quer dizer que nem sempre você está na cabeça da minha esposa quando ela diz que a cabeça está dolorida?! É artimanha! De jeito nenhum, chega a esposa dizendo que quando está com dor é porque está. Eu nunca usei essa desculpa esfarrapada. Quando eu digo sim é sim, e quando não é não. Ainda bem que inventaram, para me valorizar, essa campanha do 'não é não," porque agora eu estou sendo mais respeitado na minha essência da negatividade, esbravejou o “ene” “a” “ó” “til.” Antigamente me sentia desprestigiado quando era substituído pelo meu antônimo dizendo que por trás de um não sempre havia um sim escondido.  

Eu siiiiim, nunca precisei me esconder, sibilou o sim entrando na briga, mas quando foi tentar defender seu ponto de vista, foi empurrado pela própria briga dizendo que muita gente dá um boi para não entrar nela, depois não quer sair nem por uma boiada. 

Onde estávamos mesmo? Ah, sim, na praia. Um dia de folga é bom porque tem espaço para todo mundo se manifestar sem pressa e sem trauma. Quem não tem praia toma no lago, e foi lá que as moças tomavam banho quando surgiu um mergulhador querendo se casar com uma delas e, para comemorar, foram tomar chá. 

Ele foi desmascarado enquanto fingia estar somente pescando, mas na verdade queria era mesmo propor casamento para aquela que estava com a mão no queixo. Todo mundo olhou para qual delas estava naquela posição de preguiça. Estou assim porque fiquei cansada de tanto apanhar frutas, logo justificou sua pose da estátua de Rodin. Depois ela ficou pensando o quanto foi bom chegar um noivo, pois não mais aguentava tomar tanto chá à tardinha. Mesmo molhado, serve para o que quero, disse pegando as roupas azuis que estavam no cesto de roupa suja e já pensando em transformar aquele mergulhador num autêntico manicaca. 

Casamento marcado para domingo. Daqui a dois, três, enfim, ficou sem definirem qual seria a data, porém jamais num sábado porque ela tinha que ir fazer a feira acompanhando o pai que voltava bêbado dormindo em cima da carroça de burro.

O que importa é que  vai ter festa, e das grandes. Todos ficaram contentes na hora do sim. Não!, chorava a mãe sem acreditar que ia perder sua melhor catadeira de  frutas e lavadeira de roupa. Vai deixar saudades, choramingava a mãe lembrando-se que sempre quem encontrava o cachimbo perdido, era ela. Quem será que vai procurar meu cachimbo? meu Deus do céu, lastimava-se. É só a senhora amarrar um cordão e pendurá-lo no pescoço. Vai ser superinteressante ir para a feira com o bicho pendurado olhando papai caído no chão e os cachorros lambendo.

Os anos se passaram e depois a outra se casou com um homem que adorava observar passarinhos. Ela, para fazer os gostos do seu ornitólogo, começou a criar um passarinho, e a partir daí ele nunca mais precisou ir para a floresta observar outros. Passava domingos e feriado observando o periquito dela.

Os irmãos menores  cresceram, como era de se esperar, porém é bom que se diga porque significa que não morreram jovens. Os pais, não, por não poderem mais crescer, resolveram morrer. Foi numa tarde de chuva o marido chegou para a mulher e disse: que tal a gente morrer hoje? Topa? Ela disse sim e eles chamaram a morte que já estava no quarto de hóspedes só esperando que decidissem. 

O lago secou, todavia o filho mais novo permanecia plantando onde antes pescava, e a menina foi ser presa por livre e espontânea vontade num convento. Lá se especializou em fazer hóstia e bater sino. Sua vida tornou-se um inferno quando a farinha de trigo foi comida pelos ratos. Sem poder fazer o que mais gostava, despediu-se do convento e montou uma padaria em outro lugarejo de trigo farto. As moscas quiseram invadir o pão doce, porém ela deixou de fabricar aquele que mais vendia. As moscas arrumaram suas trouxas e foram prejudicar o concorrente da rua de trás. Ela casou-se com o padeiro e foram passear na antiga Iugoslávia. Seu sonho era conhecer aquele país. Chegando lá, decepcionou-se. As pessoas não estavam nem aí se aquela mulher estava realizando um sonho de menina, porque, naquela época só dormia imaginando como seria um país com um nome tão lindo, é tanto que colocou o nome do seu filho Iogos, e o da filha, Lávia. 

A casa foi reformada e agora funciona um hotel de luxo administrado pelo mergulhador. Vem gente de toda parte para ver os homens empalhados que moravam no fundo do lago e que respiravam debaixo d'água. Os filhos nasceram, expulsaram os pais e a vida continuou sendo um palco de injustiças. 

Ainda hoje, quem se hospeda por lá, adormece escutando uma canção dos anos passados, bem passados, e quem as ouve fica triste. A batida com lá lá lá lá deixa as outras notas musicais com ciúmes, e a pessoas melancólicas. Quem está cantando já ouvia quando menino, e agora assumiu a tarefa de tornar a vida mais triste ainda. Quem canta, dependendo do que canta, no mal se acampa. 

Domingo é dia da internet cair, sem se machucar. Foi o que aconteceu. As pessoas que eu tinha como amigas morreram pela falta de conexão. Sou dependente do sinal  4G. Antes eu era escravo do "ponto G", agora descobrirem que esse ponto nunca existiu, mesmo assim gostei de ser escravo dele. Atualmente, sou órfão dos dois.

O neto do menino que jogava com o pai na praia, está jogando bola como seu avô fizera no começo da narrativa. Só eu que fiquei vivo e da mesma idade, afinal de contas, nesse mundo, só quem envelhece são os outros. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.04.2023 - 08h34min.




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