DEITANDO-SE COM A INIMIGA
Amanhece, e uma colheitadeira, ao passar pelo milharal, espanta mais de duzentos javalis em direção à floresta. Logo desaparecem acreditando-se que voltarão assim que notarem a ausência de pessoas.
Chove fino, e a camada de lama dificulta a ação dos matadores que foram contratados. Rifles a postos nem foram disparados devido à distância e a velocidade com que saíram do esconderijo, porém, estimulados pelos instrutores, os cães partem em perseguição.
Uma ação de guerrilha precisa ser montada, disse o administrador da fazenda na sala de reuniões com os mercenários. Estes porcos selvagens estão destruindo a plantação, e, com a escassez de alimentos, logo passarão a enxergar as pessoas como sendo o prato principal. As crianças nem mais podem brincar no pátio, a exemplo que na semana passada uma delas foi levada pelo “bando.” Ficam na espreita e quando veem uma oportunidade atacam devorando suas vítimas a dentadas certeiras e poderosas esmagando até crânios.
Qual o plano? Utilizando estes equipamentos, vocês poderão caminhar entre a plantação sem medo de surpresas. Alguém sabe como manuseá-las?, ele perguntou apontando para a invenção inspirada em pernas de pau. Pois bem! iniciaremos o treinamento regulando-as no tamanho menor. Prefiro me arriscar. Fui combatente em vários países e não são uns “porcos à toa” que irão me meter medo. Você é quem sabe!, mas lembre-se de que são muitos, rápidos e traiçoeiros, e que vocês estarão sozinhos e sem apoio para o resgate. Com certeza eles não são mais traiçoeiros do que os seres humanos. Fui ferido em combate e abandonado pelo meu pelotão, há mais ou menos dois anos. Depois do que passei, qualquer perigo é “fichinha.” Dos quinze contratados, cinco preferiram ir “no peito e na raça,” inclusive uma das três guerrilheiras. Segundo os “discordantes,” aqueles apetrechos alongando as pernas só atrapalhariam.
Como podem ver estes ferros pontiagudos, cravados até um metro acima do solo, servem para protegê-los de contra-ataques. Enquanto estiverem treinando, é bom vocês portarem as pistolas prontas para disparos, pois eles atacam quando menos se espera. Destroem tanto quanto milhões de gafanhotos, além de atacarem o gado e causarem erosão, por isso a necessidade de exterminá-los.
Como está a vida lá no campo? Aqueles porcos e mais o escândalo envolvendo você e minha esposa, deixaram-me com os nervos à flor da pele, respondeu o fazendeiro à garota do beijo fácil. Ouvi dizer que seu namorado quer me matar, então diga a ele que estou pronto para espantá-lo como estou fazendo com os porcos. Acho que é boato, na verdade ele só fica bravo quando demoro a repassar o dinheiro para o churrasco do fim de semana. Não sei até quando vou poder lhe proporcionar estas mordomias, levando em consideração que, com as novas contratações, os recursos estão minguando. Amanhã, logo cedo, tenho que levar, em espécie, o pagamento dos mercenários, e não é pouco. Então decida, porque seu vizinho manifestou interesse em “bancar” tudo, caso você desista. Acho que foi ele quem soltou alguns porcos selvagens depois que cercou suas terras férteis. Ele sabia que as feras iam direto para minhas plantações, pois se multiplicam descontroladamente comendo o que encontram pelo caminho, e quem não está preparado, vai à falência.
Os cães estão latindo “pra’quelas” bandas, disse o comandante do pequeno grupo que rejeitou o equipamento de proteção. Quem conhece o melhor caminho vá na frente. Lembre-se de parar a cada final de subida, pois precisamos avaliar se é melhor ir a pé ou motorizados. Chequem as armas!
A primeira motociclista foi seguida por um jovem tatuado que queria mostrar serviço para os mais antigos. Afoito por natureza, foi, ainda adolescente, recrutado pela guerrilha urbana e, recentemente, para lutar na Ucrânia. Agora, voltou com um olho perfurado e aproveita o novo contrato para não esquecer a emoção de estar em constante perigo.
No pátio, observados por jagunços, os “bombados” testavam os novos equipamentos. Logo, ficaram tão ágeis que a regulagem chegou ao último nível. Dali, deu para ver a plantação se mexendo, sinal de que os bichos haviam voltado. Caminharam já de armas em punho e nessa primeira ação houve baixa de mais de trinta javardos, e uma queda humana.
Eu falei que não era brincadeira. Se você não estivesse lá, ele teria morrido ao cair. Faz parte da estratégia desses animais: um ataca e os demais vêm para terminar a carnificina. Vou mandar o trator pegar os abatidos. É melhor ir pelo menos três de vocês para dar proteção aos trabalhadores. Eles estão armados, não? Sim, porém estarão ocupados no recolhimento das carcaças, e é melhor evitar baixas.
As três guerreiras do grupo, dando apoio aos trabalhadores, planejavam com quem dividiriam suas camas naquela noite. Com personalidades dominadoras, “bateram o olho” e decidiram quais deles seriam seduzidos. Pelo exercício da profissão, não conseguiam, nem de noite, ficar sossegadas, e a vigília, quase permanente, era aproveitada para dar vazão ao instinto erótico. Precisavam de vários homens por noite para se acalmarem, tendo em vista que os do grupo tornaram-se apenas colegas sem motivação para o “ato,” além do mais, nada melhor do que carne fresca, riam no mesmo padrão masculino que estavam acostumadas a ouvir.
Na avaliação delas, os colegas ficaram tão “abrutalhados” que nem mais conseguiam relaxar na “hora da coruja piar.” No aconchego, elas desejavam serem apenas mulheres prontas a receber a semente da fertilidade, nada mais do que isso, com o diferencial que não precisavam tomar misoprostol, pois o próprio organismo, submetido à tensão constante, expulsava os embriões, às vezes até no meio de um tiroteio como já havia acontecido. Sabendo disso, nem se preveniam. Apenas diversão e morte faziam parte do cotidiano.
A noite chegou. Depois do jantar “regado” a vinho produzido na própria fazenda, os forasteiros dirigiram-se para seus chalés. As três mulheres já haviam definido a sequência das visitas dos jagunços escolhidos pelo olhar da malícia. Só bastaria um cochilo reparador, por volta das três da madrugada, que estariam prontas para mais uma farra do porco. A festa foi grandiosa para aquela “jagunçada” que nunca esperava namorar mulheres tão saradas. As guerreiras mostraram porque eram assim chamadas.
O rapaz do olho furado, que exagerou no vinho, abriu a porta em busca de uma brisa suave. Fumava olhando para um dos chalés que ainda matinha a luz acesa. Seus pesadelos o perseguiam em todos os lugares, motivo maior de escolher ficar deitado no chão da varanda escura. Sua negligência lhe custou a vida. Absorto, nem se deu conta da aproximação dos “monstros” que logo concluíram o lanche. Ninguém ouviu sequer os “roncos famintos” mastigando-o com cigarro e tudo.
Apenas aquela luz avistada pelo devorado há pouco, continuava acesa com o chefe a realizar seu ritual de adoração à filha morta. Ela nascera com insuficiência respiratória vindo a falecer aos três meses de idade, e a partir daí o pai acendia velas ao redor de “uma bebê Reborn” implorando perdão pelos atos cometidos na profissão de matador. A boneca era colocada no centro da estrela de Davi enquanto ele fazia uma oração para que a menina voltasse à vida através da de silicone. Frustrado, guardava-a na mochila e, só então, tentava dormir.
O dono da plantação não voltou de imediato para a fazenda, pois sua esposa o aguardava para um jantar em família. Há muito, vinha sofrendo pelas escapulidas, pouco disfarçado, do marido, e, ainda, mais penoso era ouvir sua amiga relatar o que a outra conseguia dele. A amante fazia questão de levar o mostruário de joias para a sala da repartição, onde ambas trabalhavam.
O fazendeiro ainda gostava da esposa, contudo a “arranjada” numa feira agropecuária o encantava. Voltaria para a fazenda no dia seguinte antes do sol nascer, e os cuidados com a plantação serviam de desculpas para se ausentar de casa. A esposa vivia se enganando ao pronunciar um “está certo,” a cada fechar de porta.
Como havia sido planejado, ao cantar do galo ele já se dirigia para a fazenda. Na curva do pé da serra, percebeu um dos pneus furado. Parou para averiguar. Com o eixo dianteiro do veículo suspenso, começou a desparafusar a roda do lado do motorista e logo chegou seu vizinho transportando reprodutores de grande porte. Bom dia vizinho!, sem obter resposta, apagou as luzes, desceu e aproximou-se tomando chimarrão como se a paz reinasse entre os dois. Quer ajuda? Antes que pudesse dizer não e se levantar, pancadas na cabeça, e mais pancadas foram desferidas, à exaustão, por alguém que veio por trás, sorrateiramente.
Depois de certificar-se que o seu amante estava “morto a machadadas,” a belezinha procurou, encontrou e se apossou do dinheiro que seria para o pagamento dos mercenários e, alojando-se na boleia do caminhão, ficou esperando o suinocultor jogar seu ex-rival para que a “vara faminta” apagasse as provas do crime planejado pelos dois.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 31.03.2023 – 07h07min.
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