CALÇAS E DESCALÇAS
Houve um escândalo na repartição quando a funcionária saiu dizendo que ia comprar um presente e voltaria logo. Retocou a maquiagem, deu partida na moto e saiu toda empinada sem dizer a hora exata do regresso.
Logo depois, uma mulher chegou gritando: ela está com meu marido no motel. A senhora me desculpe, mas nós não temos nada a ver com isso. Se quiser pode resolver em outro lugar, porém aqui em frente não é permitido. Ela foi para a outra calçada bufando desaforos que não cabiam num caminhão trucado.
Anunciou aos “sete ventos” a promessa de quebrar a cara da “galinha ciscadeira.” O galo chegou todo humilde pedindo para que sua esposa deixasse “pra lá.” Quem denunciou mentiu, eu estava trabalhando. Vamos para casa, mulher! Vou demais! Aquela bichinha vai apanhar e não é pouco. O ódio tem uma particularidade que é causar espuma branca no canto da boca de quem está sentindo. A mulher parecia que ia tirar a barba, com tanta espuma. Seu short preto ficou cinza em solidariedade à dona. Até umas nuvens que estavam se formando querendo pingar foram embora para o sertão. Não se ouvia nem um piar de pardal.
Cheguei com meu carro de som e ela fez uso dele para anunciar o quanto estava sendo traída. Um vendedor ambulante foi passando e pediu para que ela divulgasse seus ovos. A bandeja era quinze reais. Diga que é caipira, do bom. Ela comprou logo duas dúzias para jogar na cara da descarada.
Pela demora da outra, ela começou a treinar arremesso de ovos jogando-os nos veículos que iam passando. Quando a bandida chegar eu vou jogar isso na cara dela, dizia e arremessava-os também nas costas dos transeuntes. Ainda bem que o vendedor tinha uma “maquininha para cartão.” Acabava uma bandeja e ela, rapidamente, comprava outra. Por fim, os ovos foram todos arremessados e nada da outra chegar.
Passou mais um ambulante vendendo cocos e bananas. Ela comprou, e uma vez jogava coco, da outra, uma banana sem ovos. A “galera” aplaudia e alguém perguntou: a senhora abandonou seu marido? Vou abandoná-lo! Ainda hoje pela manhã ele prometeu que quando chegasse do trabalho ficaríamos no bem bom, mas pelo que estou vendo aquela safada sugou tudo, deixando-me sozinha com a “desfalecida.”
Sou quem cozinho, lavo as cuecas deste porco, eu digo porco porque não quero desmerecer os cachorros, e quando eu mais preciso dele, o “frechado” vai atrás da piranha motoqueira. Por isso é que as mulheres estão preferindo amigas íntimas. Querida, bote os peitos pra dentro porque essa sua blusa está muito escandalosa. É para o povo ver que sou gostosa, dizia a “baixinha torneada.” O que é que ela tem e eu não tenho? Isso aqui aguenta serviço, batia em cima e a vaia comia.
Foi juntando gente e perguntando se era um culto ou campanha eleitoral. A senhora me dá um santinho para eu votar no seu número? Pastora!, pode fazer uma oração para que minha filha encontre um marido? pronto, aqui está ele. Este cabra safado vai ficar com sua filha, serve? Serve sim senhora. Leve agora, ou nunca mais. A mãe da solteirona, com a ajuda da traída, amarrou o noivo para a filha encalhada. E a papelada? Limpe o seu com isto, disse a mulher para a “perguntadeira” jogando, na cara dela, a certidão de casamento com o pedido de divórcio.
A senhora dá para anunciar que meu pai morreu e que estamos convidando todo mundo para o sepultamento? Acaba de morrer um homem, como é nome dele?, e vai ser enterrado junto com a mulher que gosta de tomar o marido das outras! Minha senhora, eu digo sem medo de errar, seu pai vai poder ficar com ela a vida eterna no inferno porque é pra lá que vou encaminhá-la sem conexão com o purgatório. Quem quer apostar?, chegou o porteiro com uma prancheta querendo anotar os palpites da luta prevista para daqui a pouco.
Mas isto tudo é por causa de um pedaço de homem?, perguntou uma beata com um pano de prato na cabeça. É muito mais do que isso, minha senhora! É pelo cuidado que tenho para que funcione na hora agá. Dou caldo de mocotó, sopa de amendoim, carne charqueada, e não me conformo que ele fique indisposto comigo enquanto posa de galo com outras por aí. Seu marido é prego?, isso mesmo! Prego, espada, parafuso, só não é brocha.
Por que a senhora não o trai?, estou à disposição, disse um folgado mostrando que faltava um dente embaixo. Os demais voaram todos com o soco que ela desferiu no queixo no magrelo. O murro foi tão violento que ele caiu voando por cima de um camelô que vendia boi de barro.
A senhora vai pagar o prejuízo. Chegue pra eu pagar agora! Pegou o camelô pelo braço e o rodou numa velocidade maior do que a turbina de um jato 747, depois soltou o homem que foi bater no sino da igreja. Nem sabia que tinha missa hoje, disse um coroinha já pegando o terço e caminhando para a matriz.
Finalmente, a causadora do ódio chegou apressada querendo, a todo custo, entrar na repartição para assinar o ponto do segundo expediente. A outra correu de lá, e, como a porta não fora aberta a tempo, a servidora saiu fugindo e a mulher atrás. O povo correu para ver a desgraça. As lojas fecharam liberando as atendentes para ligarem as câmeras. Quem fizesse a melhor filmagem, com certeza, teria mais seguidores.
O sinal fechou e as duas gladiadoras ficaram pulando fora da sincronização, de forma que enquanto uma estava no ar a outra chegava ao chão, assim nunca se encontravam, coisa difícil de se entender.
A multidão que ia acompanhando as duas feras era tão grandiosa que o padre resolveu aproveitar a oportunidade para organizar no formato procissão, em homenagem a alguma coisa criada na hora. Saíram aquelas pessoas levando uma imagem nas costas seguindo as duas briguentas. Lá na frente, os mototaxistas fizeram um cordão de isolamento em duas fileiras dando proteção ao duelo. As rádios e os canais abertos de televisão logo enviaram seus repórteres.
A merendeira, bem novinha, sempre gostou do moído desde os treze anos. Agora ela era mãe e estava casada, entretanto não esquecia o vício de pertencer a muitos ao mesmo tempo. Me fez lembrar o filme: “os amores de Carmem,” tema já discutido lá nas antigas e que ainda hoje se repete. Algumas feministas defendem que a luta deve continuar para que seja comum a mulher trair, mesmo sabendo que haverá algumas mudanças no código civil relativo à herança, mas isso é outra história.
Acho que vou lhe transferir, disse a chefe da repartição. É mentira, eu não estava com o marido dela. Eu fui só comprar um presente e voltei. Tudo bem, da próxima vez será transferida, porém, de hoje em diante, nada de ficar saindo na hora do expediente. Se quiser dar, procure outro horário, porque durante o trabalho fica proibido fazer qualquer tipo de doação. Mas eu não dei. Verdade? Sim, eu nem cheguei a comprar.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 29.03.2023 – 08h46min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”