domingo, 23 de abril de 2023

FAZENDO ENQUANTO É VIVO



 FAZENDO ENQUANTO É VIVO


As mãos dos pedreiros são cheias de cortes em constante cicatrização. As minhas estão nesse patamar, pois “inventei” de dar continuidade à colocação de porcelanato nas paredes. Mãos digitadoras passaram a ser desviadas para a função de vítimas de calos. 

Ano passado, tive a ideia de fazer o revestimento aqui de casa por conta própria. Olhei nos vídeos que ensinam como se faz e “fui pra cima.” Mesmo recebendo palavras de “desencorajamento” da boca feminina que divide o teto comigo, insisti usando como cobaias as paredes longe das visitas. Deu certo, e até ela me elogiou pela capacidade comparada a um profissional de duzentos anos de prática. 

Desta vez, estou quase na metade das duas paredes que resolvi embelezar. O ritmo é de fazer inveja a qualquer um: uma pedra por dia. Assento-as e fico olhando o nível, conferindo o prumo com equipamento manual, sem esquecer de ficar lançando olhares perscrutadores, bem de longe. 

Alguns segredos vão sendo desvendados com a constante prática, por exemplo, retirar o espaçador quando a massa está dando adeus ao seu estágio de mole e assim obter o último retoque de milésimo de milímetros. Se eu fosse ganhar por produção, morreria de fome, mas o olho brilha quando chego ao ponto que quero. 

Perdi várias noites de sono planejando como faria quando o pessoal da entrega do material chegasse. Devo conferir? E se tiver algum porcelanato quebrado dentro das caixas lacradas, como faço? Ainda bem que os presenteados com torta de chocolate foram legais conferindo junto comigo. Quando eu falei que haveria lanche, o peão mais baixo foi logo dizendo: eu passei a noite sonhando com torta de chocolate, logo em seguida ouvi a gargalhada do outro com seus dois metros de altura por quatro de largura. 

O zelador já havia me dito que as paredes eram tortas, e, ao conferir, comprovei que o gesso às vezes dá sinais de que seguiu o padrão do alinhamento e depois aparece grávido. Vai muito bem, quando “dá fé,” um bucho. 

A parede de cá, consegui desbastá-la, mas a outra ficou para a próxima semana, quem sabe, no próximo mês. Essa demora também tem a ver com a retirada do sofá da linha de frente da poeira, e não adianta cobrir com lençol já que o pó fino do gesso passa entre os buracos do tecido. O bom seria uma lona plástica, mas iria onerar a obra, disse-me o lado “contabilístico” do escritor travestido de engenheiro.

Ao preparar a argamassa, deve-se passar quinze minutos sem tocá-la para que haja a perfeita reação química que cola a pedra na parede, li nas instruções do pacote. É como uma durepoxi. Depois de duas horas, o que foi feito tá feito só arrancando com marreta, eis o motivo do cuidado. 

Já fiz até a contagem de quantas colheres de massa são necessárias para cada pedra. No tamanho da colher que uso, são nove bem cheias que são retiradas do saco utilizando a paciência de Jó para que não suba o fumaceiro de pó. Quem quiser dizer que essa foi a primeira rima numa série de duas, pode continuar procurando a outra. 

Uma das observações importantes é levar em conta que as pedras são boleadas, portanto se deve colocar mais massa no centro evitando o tum tum fofo quando se bate nelas depois de prontas. Nesse momento sagrado da colagem, despacho a mulher para ir assistir filmes na televisão para que eu fique com as pedras, argamassa, desempenadeira... sim, porque durante o assentamento fico conversando com elas perguntando se está na hora de começar o ritual. 

Teve uma pedra que apareceu com um pedaço arrancado. Você deve ter saído para a farra sem me avisar, indaguei recebendo como resposta um não. Ela disse que aquele pedaço tinha sido arrancado dela ainda em cima do caminhão, eu é que não tinha visto. Tudo bem, fique aí escorada que depois analiso seu pedido para ser assentada onde todo mundo possa lhe admirar. 

Eu estava com vontade de coloca-la lá atrás, mas vou ver depois. Deixá-la-ei na “geladeira” para que ela pense que não será assim, e quando perceber que é melhor ficar ganhando um salário menor de olhares do que ir para o lixo, vai aceitar minha proposta de ser colocada num local não tão vip. 

Quem chegou ontem foi a “riscadeira.” Tomei emprestado de um parente que recebe o pagamento em forma de limpeza da ferramenta, pois a “bicha” chegou parecendo ter sido feita de cimento. Tive bastante trabalho para saber se sua cor ainda era azul e logo fiz o teste em cima da pedra que se partiu com facilidade, todavia a peça responsável em riscar o porcelanato eu a coloquei nova. Estando bem afiada, não precisa fazer força, dizia um dos professores do canal visitado. Vi um tutorial onde “o cara” colocava uma chave de fenda embaixo e pisava nas bordas. Passei a utilizar assim sem medo que a pedra caia no chão. 

Há pouco, quem bateu na porta do meu escritório foi a caixa de plástico me chamando para reiniciarmos os trabalhos. Essa masseira sempre me pede que a deixe limpa depois de usá-la, inclusive depois que ela começou a fazer essa reivindicação até as luvas querem também o mesmo zelo alegando que já evitaram muitos cortes depois que reconheci a importância da utilização dos “EPIs” neste hobby com risco de acidentes. 

A pessoa começa um trabalho achando que é dono dele. Após alguns dias manuseando as ferramentas, passa a sonhar com elas criando vida. Foi o que aconteceu recentemente. Ao procurar um nivelador, não o encontrei. Deixei em repouso a vontade de usá-lo, e de repente lá estava ele em assembleia sindical querendo ficar na parede para mostrar sua importância. Não pode porque enfeia a sala, disse eu sendo logo aprisionado por seu exército. Levaram-me para uma sessão de tortura onde eu tinha que ficar deslizando-os por cima do porcelanato até sair o esmalte da pedra. Ainda bem que o martelo de borracha veio em meu socorro acordando-me para o trabalho.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.04.2023 – 19h19min.





2 comentários:

  1. Parabéns pelo despertar de mais essa habilidade. Você está revestindo sua parede no ritmo em que Juan Rulfo escreveu Pedro Páramo, com a meticulosidade de Flaubert na produção de seus textos. Mais que uma parede revestida, no fim veremos uma obra de arte. Senti desejo de contratá-lo, mas não na diária. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Obrigado Gilberto...
    Estou comparando o assentamento das pedras com as palavras que utilizo para “formatar” o pensamento numa página em branco. Cada um verbete deve ser polido, aprumado e alinhado para que no final a parede textual possa ser digna de olhares.

    Não existe uma atividade prática separada da racionalidade, e por pensar assim, no serviço aparentemente só de pedreiro, utilizo o momento para raciocinar sobre a influência do peso, textura e material no desenvolvimento do pensamento estético, chegando ao ponto de até a poeira ter seu papel envolvente no “clima da construção.”

    Seria como se fosse os espíritos dos materiais que ficam a redor tentando mostrar que ali está sendo exercida a força da transformação de uma nova paisagem. É como se fosse o sangue no nascimento de uma criança. A poeira é o sangue da matéria que surge sem provocar dores no nascimento de um novo entendimento depois de um trauma, por exemplo.

    A parede está sendo “vestida” com roupa de festa e essa ação promove uma reação positiva no ambiente, é tanto que ninguém faz uma reforma pensando somente na aparência do ambiente, e sim, sabendo que isso tem influência na personalidade dos que ali residem. É um novo estágio alcançado que será levado para onde a pessoa for, seja na lembrança ou em registro fotográfico, a exemplo de um presidente famoso na história que precisava cortar lenha para que ideias pudessem lhe guiar sobre as decisões adequadas para seu país.

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