sábado, 29 de abril de 2023

AS LEIS NOSSAS DE CADA DIA - (MACIEL SOUZA)

 


                           

  AS LEIS NOSSAS DE CADA DIA           (MACIEL SOUZA)

 

Certo dia, advoguei a favor do Xote Ecológico do centenário Gonzagão. Ouvi que cantarolavam “que nem o Chico Bento sobreviveu”. Pelo poder da argumentação e persuasão, devolvi Chico Mendes à música, sendo justo com quem de direito. Outra vez foi com Oração Pela Família de padre Zezinho “Que ninguém interfira no lar nem na vida dos bois”. Intervi para que trocassem bois por dois.  Nos dois casos, fiz pelo autor para que sua composição não seguisse com injusta deformação, mas não fui capaz de corrigir meu sogro, aos gritos: “Deem água a esse bezerro que ele também é ser humano”, nem ousaria usar de autoridade para constranger um dos nossos homens de negócio em sua felicidade pela concretização de um diálogo bem sucedido com seu interlocutor:

— Me dê um copo de H2O!   Ao que prontamente em resposta colocou sobre o balcão um copo e o encheu com água, animado e não emudecido:  — Tá vendo, também sei inglês!

Na condição de testemunha, presenciei uma situação representativa daquelas que neste contexto se submetem à legislação gramatical, sem nenhuma transgressão. Foi numa interpelação, quando assisti a um senhor cativando o freguês para ser justo na cobrança da conta, tanto quanto o foi no exercício da linguagem formal: “Foram quantos sequilhos mesmo?”

 

Ouvindo casos contados por meu pai que se passaram em nossa cidade, faço o relato de dois deles e justifico a ação da autoridade policial. Um se deu pela passagem de um sargento, quando junto a sua esposa o policial organizava, participava e era um dos mais animados nas noites de carnaval. Num desses dias seu Zé André puxou da cintura uma faca a fim de fazer um cigarro de palha, logicamente foi abordado pelo sargento em traje carnavalesco e munido do artigo 244 do Código de Processo Penal Brasileiro criado em 1941:

— E essa faca?

— E o senhor, quem é?

— Eu sou o delegado!

— A mim não me consta, pois eu conheço a “poliça” é pela roupa e pra mim o senhor tá nu.

 

Pela letra da lei, o Código de Processo Penal Brasileiro na época dos fatos previa que “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito...” Em minha insistência na procura achei coerente e lógica a interpretação prevista no citado artigo de que “Diante da fundada suspeita de que uma pessoa esteja na posse de arma proibida, o policial pode e deve realizar a busca pessoal, independentemente de mandado”.

 

O segundo caso foi com um senhor conhecido por Boa Noite. Seu Boa Noite foi abordado pelo Policial Militar diante da denúncia de que estava embriagado e portando um objeto cortante:

— Me dê a faca!

— Num dou!  

— Pois teje preso!

— Num tou!  – O Código Penal no artigo 330 já fixava pena para quem desobedecesse à autoridade, o que neste caso deve ter sido um agravante.

 

Por justiça, atribuo ao meu bisavô Fernando Vazinova a autoria da frase: “A ‘ignorânça’ atravanca o progresso”. A citação é dos dias em que seu Boa Noite obscureceu a autoridade policial e contempla ainda atualmente, desde a reação do senhor que se envolveu num acidente, batendo boca com um transeunte curioso que importunava a sua paciência dando palpites em sua desgraça “E você é da lei? Se não é da lei, cai fora!”, até o seu julgamento nos Tribunais amarrotados de processos longos e lentos, dos debates acalorados em torno das vidas congestionadas, face ao emaranhado de leis, decretos, portarias, estatutos, códigos, regimentos, normas, regras, artigos, acordos, combinados, etc., nos livros, nas placas, nos murais, na vertical, na horizontal, à esquerda ou direita volver, com base no ordenamento jurídico de longas narrativas em parágrafos e incisos para delimitar, organizar, moralizar, corrigir, advertir, coibir, permitir, penalizar, cansar...

 

Todavia, citando Euclides da Cunha quando engenhou Os Sertões, “Resumamos: enfeixemos estas linhas esparsas” que diferentes na obra do escritor—jornalista—militar, na minha ousadia aqui são bem poucas, mas intensamente passíveis de penalidades, tanto quanto quando expostos a simpáticos lembretes: Sorria, você está sendo filmado! ou àqueles bem autoritários: Silêncio!...

 

4 comentários:

  1. Maciel, vc me fez lembrar dos fãs de Reginaldo cantando "Esse corpo negro e tão pequeno...", ao invés de corpo meigo, por se tratar dum adjetivo pouquíssimo utilizado. Outro dia alguém quis cancelar o grupo Skank por causa da música "Macaco cidadão". Na verdade ele se referia a "Pacato Cidadão. Esse tipo de ilusão auditiva é bem comum e gera episódios engraçados como os elencados em sua crônica. Já que vc falou em H2O, há um termo em inglês para esse fenômeno: "Slip of the Ear". Teje intimado a escrever com mais frequência.

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  2. Que bom que nosso amigo Maciel voltou a escrever! O cara é muito bom! Gostei da crônica! - Nailson Costa

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  3. Crônica excelente. Maciel escreve muito bem.👏👏👏👏👏👏 - Lindonete Câmara

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  4. Texto hilário e bem escrito por Maciel. Sendo sucinto bastante neste comentário, para não delongar no escrito ou na vida alheia de cada personagem, diria: isso não é da minha "ossada".

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