sábado, 29 de abril de 2023

OBJETO HUMANO

 


OBJETO HUMANO

O doador nasceu depois de um longo trabalho de parto. A enfermeira que o “pegou,” rasgou seu tórax com um bisturi e arrancou seu coração.

Logo após a “cirurgia sem anestesia,” apenas o coração, ainda batendo, foi levado em uma caixa com gelo e o resto jogado num beco disfarçado pela escuridão da madrugada.

O receptor estava em outra sala acompanhado por familiares que sabiam que alguém estava sendo devorado por cães viciados em revirar latas de lixo, mas isso não cabia a eles se preocuparem. 

A mãe do doador se mantinha alegre, pois teria um ano de regalias na clínica de reabilitação para drogados. Durante esse período, ela estará pronta para "receber" um dos reprodutores escolhido pela equipe.

A próxima gestação será a última de uma série de dez, só depois, mesmo sem que ela saiba, será descartada como seu filho foi. Nesse comércio legalizado de órgãos, os profissionais tiveram seus sentimentos excluídos. Caso derramem lágrimas ou demonstrem ressentimentos, “os fracos” serão demitidos com justo desaparecimento.

O corpo devorado agora viaja pelo estômago dos animais que vivem nos arredores apenas para manter funcionando o processo de reciclagem natural. Ao amanhecer, um garoto sujo se aproxima espantando cães com a superioridade do ferro pontiagudo que sempre carrega para poder ter acesso aos restos mortais de mais uma criança depositada há pouco. Guardou num saco, e, olhando de lado e caminhando apressadamente, certificou-se de que seu café da manhã não seria surrupiado. 

Quando estavam todos reunidos, o menino apareceu entregando a encomenda a uma das mulheres que foi logo tirando o intestino para os que, recentemente, haviam se incorporado ao bando. Essa era a regra da comunidade: o melhor seria dado aos mais antigos! Aos demais, os dedos dos pés ou “partes menos nobre.” Um naco para cada um já está bom tamanho, disse a responsável pela divisão se apossando dos lábios da vítima.

O espírito do menino retalhado acompanhava o corpo sabendo que voltaria para o coração depois de transplantado, porém sua moradia ainda estava sendo no cérebro daquele “assado” no fogo atiçado por garrafas e sacos plásticos.

Como se ensinasse aos mais jovens a escolher uma boa parte do corpo, quem se passava pela chef explicou, com muito contentamento, que as nádegas estavam entre os melhores pedaços, pois apesar da panturrilha também ser uma parte boa nem se comparava “àquela delícia.” Onde o sangue havia jorrado, subia uma fumaça mais densa embaixo daquele viaduto há muito habitado por desocupados.  

Dois jovens, seguindo as ordens do líder, tomaram o crânio e dirigiram-se a uma mesa improvisada utilizando um facão para descobrirem o cérebro que seria comido cru como forma de sobremesa. 

Os olhos foram colocados em uma vasilha transparente feita de garrafa pet para, mais tarde, servir como tira-gosto. Havia outros três corpos apodrecendo ali perto, só que ninguém conseguia sentir o odor devido terem perdido o nariz cheirando entorpecentes. Era a comunidade dos sem narizes, conhecida por “Os aprosopos.” 

A alma ficou olhando aquelas ações contra sua antiga moradia sem poder interferir. Havia um plano maior, e ela estava só esperando ser designada para poder tomar rumo, só que não sabia quanto tempo ainda teria que esperar. 

Quis chorar, entretanto as glândulas lacrimais só produziram um sentimento parecido com algo feito de pedra. Não demorou para que surgisse uma interrogação querendo entender o que tudo aquilo representava, pois, apesar de estar a nível de névoa, não conseguia ir embora. 

O bebê, no qual habitou, estava sendo digerido no estômago daqueles cães, e todo esse processo deixava a alma em sintonia com cada célula, e se quisesse acompanhar todo o processo mais de perto, bastava se concentrar de onde vinha a energia quebrando moléculas.   

A consciência permanecia em profundo silêncio. Era desesperador ficar sabendo de tudo e ao mesmo tempo se manter impotente diante dos acontecimentos “sem força nem para dormir.” 

A transformação, ocorrendo de forma "separatista," trazia um sentimento de pavor diferente, caracterizando-se como uma obrigação de ter que se desapegar do próprio orgulho inerente a quem está vivo. 

Aproximou-se dos olhos guardados e viu todo o universo que habitava cada um dos participantes do banquete. Aquele mundo mostrava-se em forma de imagens azuladas expandindo-se a cada sentimentos de satisfação, e retraindo-se quando algo não estava de acordo com o almejando. Isso tudo acontecia, em cadeia, num ritmo imposto pela cadência do coração que estava sendo transplantado, lá longe. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 29.04.2023 – 15h06min.



2 comentários:

  1. Seu conto nos faz refletir sobre tristes realidades, Heraldo. Perturbadoras, sim, mas que precisam ser encaradas. O cenário é distópico e expõe a falta de empatia e compaixão dos personagens envolvidos na trama . A sociedade retratada no conto está profundamente corrompida e doente. É um texto que provoca reflexão sobre as consequências de uma cultura que se distancia da humanidade e da ética em busca de lucro e poder. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Obrigado, Gilberto, pelo Comentário.

    Essa inspiração veio-me quando assisti um vídeo feito na “Cracolândia” em São Paulo, onde os drogados atacaram um cidadão que ia passando com sua mulher. Um por trás deu-lhe uma “gravata” e os outros correram para ajudar. Levaram todos os pertences do homem que não teve como reagir a tantos, inclusive sua camisa e calças. A vítima ficou só de cuecas em plena luz do dia.

    Foi daí que me veio a indignação: se o governo não tomar medidas mais duras contra aqueles locais, além de servir de inspiração para outros lugares do Brasil, daqui a pouco a pessoa, além dos pertences materiais, poderá perde um órgão do corpo quando a doença, causada por ingestão de drogas, corroer o cérebro, como já vem acontecendo gradualmente.

    Não quero prever o apocalipse, mas logo que passarem a se alimentar de carne humana, então a geração zumbi estará oficialmente no comando, e nós reféns na própria casa.

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