NAS ENGRENAGENS DO CORAÇÃO
Aruel vivia falando alto sobre automóveis. Dono de um carro de praça, estacionava por lá e ficava sem promessa de mudar, tão cedo, de assunto. Lá para as décadas de outrora, num canto recém-saído da carroça de boi, Aruel se achava o melhor entre os melhores, aliás, sua família toda era assim. Seu pai propagava como se o filho fosse o rei das estradas esburacadas ou o príncipe do pneu furado. Ao relatar suas proezas, aproveitava para dar um banho de cuspe no interlocutor.
No sítio sempre havia festas, e Aruel, quando estava por lá, não perdia a oportunidade de contar histórias das viagens realizadas. Ele era chique, tinha também pressão alta além de um dente de ouro.
Na verdade, o vocábulo "chique" nem existia por aquelas bandas, ou se existia, era usado da porteira para fora. Chamavam-no de metido, isso sim, sem que ninguém da família soubesse.
O carro e o próprio dono tinham personalidades distintas, porém, um não vivia sem o outro. Quando o veículo quebrava, Aruel adoecia ficando por conta da mulher providenciar mecânico e peças.
Ela era muito interesseira, dizem até que se casou com o carro levando Aruel como brinde. Mulher esbelta, dinâmica, e quando o serviço era pequeno ela mesma o fazia.
O casal vivia sendo convidado para ser padrinho e madrinha de menino buchudo em toda a região, desde que pagassem a corrida de casa para a igreja, eles aceitavam. Lá vai seu padrinho, diziam as mães orgulhosas quando a "Rural" passava. A cada viagem, era necessária uma mão de obra proporcional para tirar a poeira trazida das estradas vicinais.
Se caso ele fosse perguntado com qual ficaria, com certeza, decidiria deixar a mulher fora de casa do que seu automóvel.
Aruel fora criado na casa dos avós, e o único aposentado sobrevivente passava boa parte das manhãs jogando milho pilado aos pintos no terreiro.
A mão de pilão tinha sua cintura levantada, diariamente, pela preta “cachimbeira” que suava para esmagar os dois litros de milho exigido pelos famintos e entregues ao avô taciturno.
Ao nascer do sol, as aves vinham ciscar perto da água servida da pia de lavar louça, e lá estava o ancião fazendo sua tarefa mais importante do dia. O resto da manhã passava dando nome às moscas que o rodeava. Ele “aboiava” e fazia vaquejada como se os insetos fossem gado.
Os de casa aceitavam o barulho porque naquela lonjura de tempo e espaço não havia como trancar um idoso com fôlego apressado. Logo de madrugada, ele começava a cantar antes mesmo do galo, e por isso resolveram cozinhar o dono do terreiro na festa de São José por falta de utilidade "despertadora."
Muitas vezes, um galo forasteiro “cantava de galo,” mas os frangos já o haviam expulsado por diversas vezes. As galinhas, muito galinhas, aceitavam, sem mais delongas, tanto o forasteiro quanto os frangos filhos das comadres poedeiras, razão maior dos conflitos.
Os pintos também eram vistos, pelo velho, como animais de grande porte. O gavião que raptava-os, ele o chamava de foguete tracionado. Essa mistura do tradicional com o tecnológico teve sua origem desde o tempo que um avião pousou no rio seco na propriedade da família. Nesse tempo, vovô era lúcido e foi quem deu assistência ao aviador, hoje chamado de Piloto. Nenhum piloto quer mais ser chamado de aviador já que se tirar a primeira e última letra o conceito muda completamente.
A partir de então, o hoje desmemoriado vovô ficou só pensando em tecnologia espacial pregando que Aruel é filho de seres de outro planeta. Enquanto não se resolve essa pendenga, muita gente acredita que essa relação sentimental de Aruel com automóveis tem origem em sua descendência estelar, e não sou eu que vou dizer o contrário.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 03.08.2022 – 11:56
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