segunda-feira, 11 de julho de 2022

GENÉTICA INDOMÁVEL - Heraldo Lins

 


GENÉTICA INDOMÁVEL


Morava sozinha do outro lado do rio perto de uns serrotes infestados de cascavéis. Um dos filhos dividia a vizinhança, nem por isso ela queria companhia. Pela manhã, encontraram-na morta na rede sem nenhum sinal de picada de cobra. Morte natural como se diz. 

Por várias vezes, passei por lá para tomar-lhe a bênção recomendada por minha avó. De quem você é filho? perguntava-me como fazia com todos os bisnetos que a visitava. Mais de noventa anos e ainda nos oferecia agrado feito há pouco. Raramente dialogava além do Deus te abençoe! como está sua mãe? quer café? Nos últimos anos, viveu a maior parte do tempo deitada, com a porta de cima aberta e um cachorro branco do lado de fora. Era proibido visitá-la sem objetivos delineados quanto ao tempo e assunto em sua presença. Se aborrecia com tudo e todos. Cada vez que passávamos por lá, saíamos com um pirulito de rapadura na mão, assim mesmo, tínhamos medo daquela senhora baixa, morena, cabelos longos e sorriso difícil. Não nos era permitido ir além da cozinha onde nos recebia oferecendo também bolachas sete capas. Até que ela era agradável se a visita não extrapolasse os cinco minutos.  

A frente da casa permanecia com janelas e portas fechando um mistério imaginado por nós. O terreiro bem varrido, não sei por quem, permanecia desinteressante para quem catava pedras menores para colocar no estilingue. Nunca se via um matinho sequer nos pés das paredes externas, nas internas, muitos baús. 

Confesso que somente íamos por lá porque nos mandavam com um pouco de pão de milho, pinha, caju... mas evitávamos. Distante um quilômetro e meio, tínhamos que atravessar a sequidão do rio que à época das cheias nos deixava longe dos passarinhos caçados a baladeira.

Não conheci dois dos seus netos que morreram da doença grande, como era popularmente nomeado o câncer. Ela morreu de escuridão, pensava eu quando menino.  

Na casinha branca por fora e negra por dentro, tínhamos medo dos baús fechados que preenchiam os cantos. Duas lamparinas a gás e as achas queimando no fogão de barro faziam a vez de luz elétrica. Nunca fui lá à noite. Diziam que a velha era macumbeira. Não sei se isso era verdade, mas bicheira em animal bastava relatar que no outro dia nem vestígio da doença.   

Ela nos deixou a herança de gostar de viver sozinhos. Netos e bisnetos ainda preservam essa herança a ponto de quando uma prima se mostrou interessada em adquirir um trabalho escrito sobre o meu fazer artístico, só pude ir até à portaria do seu prédio. Era um domingo e ela queria ficar longe da raça humana. Entendi a herança manifestada naquele momento e, assim mesmo, relutante, fui.  

Contando esse fato a alguns parentes, muitos se posicionaram que jamais se sujeitariam a tal capricho e, naquele momento, identifiquei também o resquício da brabeza dela.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 10.07.2022 - 08:20



2 comentários:

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