Pandemia em Mericó
Imagine um cidadão morador de um apartamento, no quinto andar de um prédio, adquirido pelo Programa Minha Casa Minha Vida, encontrando no sofá da sala um elefante. Não um filhote, mas um adulto e bem nutrido elefante. Penso que, num primeiro momento, seria tomado pelo medo. Em seguida, viriam as perguntas: Como isso veio parar aqui? Como vou tirar isso daqui? Algo semelhante aconteceu em Mericó nos primeiros anos da década de 1970.
Não se sabe de onde, nem porque, chegou à cidade um
cidadão com sua família composta pela esposa e três filhas: Maria da Luz, Maria
da Paz e Maria da Glória. Bonita e devotada ao lar, a esposa parecia sofrer de
labirintite ou patologia semelhante. Vez por outra, apresentava hematomas e marcas
no rosto causados por quedas no banheiro, na escada, no quintal...
Filho de soldado e neto de delegado da polícia, autoproclamava-se homem temente a Deus, exemplo de patriotismo, defensor da família, da tradição e da moral. Através dele, Mericó viu, pela primeira vez, marchando em suas ruas, um grupo da TFP com seus megafones e estandartes.
Pensionista da FEB, orgulhava-se de ter pegado em armas para defender a pátria. Após sua morte, soube-se que apenas pegara nas armas. Ao chegar à Itália a guerra havia terminado.
Integradas à vida mericoense, suas filhas
constituíam exemplo paradoxal: bem comportadas, meticulosamente vestidas com
fitas nos cabelos, pareciam bonecas nas idas à missa com os pais. Mas, nas
festinhas, deixavam as mais salientes boquiabertas. O pai não permitia irem às
festas sozinhas. A empregada Nicinha, espécie de escrava
branca, as acompanhava. Contudo, para vingar-se do patrão,
dizia:
— Aproveitem, suas bestas, que a vida é uma só!
E assim, em meio a admiração, invejas e censuras, as três Marias, com seus namoricos amiúdes e apimentados, deram muito o que falar.
Idolatrado por meia dúzia e respeitado e temido por muitos, em função do marketing
que fazia de si próprio, aquele cidadão elegeu-se prefeito de Mericó, pela
ARENA. Sua primeira aquisição para o município foi uma difusora (estrutura
composta por um amplificador, um toca disco e um projetor de som fixado em
local público, que funcionava como uma rádio local). Pessoalmente, a colocava
no ar uma hora antes da Voz do Brasil. Virou rotina aquelas tentativas de
imitar um galã de radionovela, usando Tema de Lara como fundo musical:
— Está entrando no ar, serviço de difusão municipal, órgão oficial pertencente
a minha, a sua, a nossa Mericó: princesinha das ribeiras do Melão!
Durante uma hora, intercalando propagandas do governo federal como “Sugismundo” e “esse é um país que vai pra frente”, falava de tudo. Mas falava, especialmente, mal dos seus adversários. Surpreso com o poder da comunicação, comprou um espaço quinzenal na rádio Brejuí de Currais Novos fazendo-se, assim, ouvir por todos os seus munícipes.
Muitos, de Mericó e de outras cidades, ouviam o seu programa, devido ao linguajar tosco e às ideias estapafúrdias. Uma delas era transformar uma loca de pedra do riacho em cadeia para, nos períodos de inverno, a enchente fazer com os presos o que a lei não permitia.
Devido ao seu comportamento incomum, achava-se a população radicalmente dividida numa relação de amor ou ódio, quando surgiu na cidade uma doença desconhecida: a comichão.
Extremamente contagiosa, era transmitida pelo ar, ou por qualquer objeto infectado. Seu único sintoma era um coceira insuportável que rapidamente se espalhava pelo corpo. O infectado não fazia outra coisa, senão, tentar desesperadamente aplacar os incômodos com água morna e chá de camomila. Chegava a esfregar-se sem camisa numa parede áspera. Falando assim, o leitor poderá achar cômico, mas era um quadro triste de se ver, alguém acometido por aquela patologia.
Diante dos primeiros casos, o chefe do executivo disse tratar-se de uma coceirinha besta que logo passaria. Contudo, em poucos dias o número de contaminados aumentou assustadoramente. Pressionado, ele abordou o tema pela difusora, reconhecendo a gravidade do problema e prescrevendo o remédio que, segundo o próprio, era tiro e queda.
A fórmula prescrita era uma mistura de cresóis e fenóis associados a
hidrocarbonetos². A distribuição seria feita no muro da prefeitura. Bastava
levar um litro vazio para trazê-lo pois, o órgão comprara alguns tambores a um
primo do prefeito.
A princípio, as pessoas não
entenderam o significado daquele palavreado em torno do remédio. Mas, a partir
da compreensão, houve ampla rejeição ao seu uso.
Há muito tempo atendendo em
Mericó, o único médico da cidade foi demitido por discordar da eficácia do
remédio indicado pelo prefeito. E, além de negar-se a prescrevê-lo, orientou as
pessoas a não fazerem uso daquilo sob o risco de morrerem. O prefeito o exonerou,
fez insinuações sobre a sua sexualidade e abordou o assunto na difusora:
— Aquele doutorzinho boçal, comprado pela oposição para desafiar a minha autoridade,
disse que o meu remédio mata. Ainda disse que eu não tenho competência para
passar remédio porque não sou formado. Estão vendo vocês? Eu tenho tanta
autoridade que mandei ele pro olho da rua! E ao contrário do que disse, eu sou
formado, sim: sou formado na gloriosa universidade da vida!
Contrariando suas expectativas, o discurso não reverteu a resistência do povo.
O passo seguinte foi fazer retaliações: professores da cidade foram
transferidos para a zona rural, contratos temporários foram rescindidos e até
as bodegas foram intimadas a não vender a quem se colocasse, publicamente,
contra ele.
A vida em Mericó nunca fora fácil, mas naqueles dias ficou muito mais difícil. Além
do incômodo da patologia, muita gente passou a enfrentar dificuldades devido às
represálias do prefeito.
Passando pela feira livre, onde tinha mais gente se coçando do que negociando, ouviu
ele muitas reclamações e até xingamentos, coisas que, até então, não experimentara
como prefeito. Para demonstrar o seu descaso em relação à comichão, apertou
mãos, abraçou doentes e acabou contraindo a doença.
Nicinha, que a cada dia
aumentava sua oposição velada ao patrão, contou a Biluca³ os detalhes da sua
comichão e os planos para tratamento.
Na manhã seguinte, o motorista da prefeitura seguiu com o chefe para Natal. Transcorrido
menos de um quilômetro de estrada, atravessavam uma ponte, quando um grupo de
pessoas portando foices, facões e facas de mesa, ocupou a cabeceira da ponte
impedindo-lhes a passagem. O motorista gesticulou, acelerou, buzinou. Mas,
irredutíveis, começaram a gritar:
— Tá coçando que dá dó! Vá tomar cresó fenó!
Sem saída, o motorista engatou a marcha à ré, mas, do outro lado surgiu novo grupo
deixando-os cercados. Um que conseguia se fazer ouvir pela turba, colocou três
infectados juntos com o prefeito na cabine da C10 (que só cabia dois) em
seguida, entrou, bateu a porta e gritou:
— Sobe todo mundo que couber na carroceria! E toca pro muro da prefeitura, motorista,
que vamos curar o prefeito!
Silencioso, pálido, trêmulo e se coçando, como os demais, em pouco tempo o chefe
do executivo se viu diante dos tambores azuis do famigerado remédio. Cercado
por uma dezena de homens, o ilustre, mesmo estrebuchando, foi banhado pela
substância que tanto propagara.
Apesar do susto e dos incômodos da doença, apenas uma pessoa foi a óbito, o prefeito.
Segundo o médico, por ele demitido, a causa mortis foi comichão.
O seu sucessor contratou
médicos e a tal substância foi aproveitada na limpeza de banheiros públicos.
Aldenir Dantas
Valeu pela a força, amigos da APOESC. Como diriam os camaradas do Porta dos Fundos: vou aproveitar a oportunidade para eu me auto ler-me a mim mesmo...rss
ResponderExcluirÓtimo conto, Aldenir! - Gilberto Cardoso dos Santos
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