quinta-feira, 26 de maio de 2022

TRAVESSIA - Heraldo Lins

 


TRAVESSIA


A cidade começa a se cobrir com o manto da escuridão. Algumas luzes pontuando os caminhos costumeiros já ficaram acesas e os trabalhadores, com suas mochilas a tiracolo, preenchem os assentos. Ali dentro do ônibus, olham-se e nada falam. Um deles, com uma história de batalha interminável, chega em casa e nem é percebido pelos filhos muito menos pela mulher, apenas o cão ainda lhe faz um sinal de reverência estimulado pelas migalhas que ele joga durante as refeições. Para o pai que chegou sem uma calorosa recepção resta-lhe dirigir-se para um banho renovador no chuveiro quente há poucos dias instalado. A água escassa em baldes rouba-lhe a alegria junto com a toalha limpa, porém furada. Pendurada por trás da porta, é “rependurada” na saída para o jantar na mesa menor. A grande está cheia de presentes para serem trocados amanhã à noite, de Natal.  

O barulho do trânsito e os sacolejos não permitem que alguém durma. No assento pouco confortável, vejo um “desmiolado” cantando sem querer dinheiro. Dos fãs de rock nacional escuta-se pedidos sendo feitos, e parece que o cantor de lotação é conhecido de todos. Os que estão cansados e as mulheres de sapatos altos, revoltadas pelo simples fato de estarem ali sem o conforto que acreditam merecer, não aplaudem o cantor.

Em pé viaja Cristol, pedreiro desde os doze anos, que sonha com a comida quente ao chegar ao seu barraco. De madeira, sua mala de ferramentas está servindo de assento para uma desconhecida, no final do veículo lotado. Muito mais cheio ele presenciara em outros trechos de duas horas de viagem. Para casa está indo esperançoso em chegar são e salvo, mesmo quebrado de uma semana inteira levantando peso e fazendo traço de cimento. Sua roupa permanece suja sem que ele possa deixar de escutar o cantor que faz sucesso onde não se tem alternativa de lazer. Nem mesmo um minuto de silêncio é possível obter naquele ambiente. 

Malcheiroso, o cantor levanta-se empolgado para dar o lugar a uma gestante que lhe pede sorrindo uma música nova. Gravada em letras vermelhas a mensagem “Deus ajuda a quem madruga” é lida pelos poucos que sabem ler. Espanhola é a naturalidade de um estrangeiro que entra pedindo ajuda porque perdeu seu passaporte e precisa retornar à terra natal. Longe de casa, o cantor diz que está, e, por isso, precisa descer logo adiante para entrar em uma outra condução que o levará para um destino incerto e não sabido. 

Do lado de fora, alguns estão na mesma rota tentando chegar sentado e no ar condicionado. Sem nenhum tipo de cantor aborrecendo os ouvidos sensíveis acostumados com Mozart e companhia Ltda., os ricaços são avistados pelos que lhe observam do alto cansaço. O luxo do modelo recente recebe a mesma chuva só que sem um pingo pingado dentro. Por fora, a água escorrendo deixa o asfalto brilhante com cores refletidas dos faróis de LED, provocando encanto para os novatos e desespero às vítimas encharcadas antes de casa. Feitas as contas, pelos passageiros obrigados a se pendurarem diariamente, quase dez por cento do salário é investido naquela brincadeira de mau gosto. Para quem viaja segurando o ferro de proteção todos os dias, é muito dinheiro perdido. Mesmo com luzes brilhantes distraindo o sofrimento diário, não dá para ser feliz sofrendo. 

Em frente ao ponto mais movimentado da viagem, há um tecladista rodeado de dançantes. No salão pouco clareado por uma “azul-piscante”, a miséria está sendo maquiada para os mais afoitos. Naquele bar as donas da noite já estão preparadas para convidarem os viajantes que passam sacolejando. No ônibus há muitos sem paciência, principalmente o motorista, mesmo assim, espera Cristol descer no bar da festa. Das mulheres se espera tudo em forma de sorriso pintado, inclusive, responder sem serem perguntadas estar custando trinta, por quinze minutos. Pela festa a dois o preço é combinado com a certeza que não atrapalhará sua rotina em casa.   Mesmo que seja dia chuvoso, Cristol acha-se no direito de ficar se divertindo longe de casa, como um paliativo pela vida que leva. Acostumado em pegar o ônibus que vem em seguida, nem se preocupa com o tempo resumido dentro da meia hora restante. Aproxima-se do quarto do lazer e percebe sua filha entrando no outro vizinho. Sem ter o que dizer, disfarçando que não viu, continua na brincadeira ouvindo ela brincar do outro lado.  Sem graça, segue viagem para o lar esfacelado que o aguarda. Como de costume, depara-se com os demais filhos menores brincando na lama da rua. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.05.2022 – 00:04



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