terça-feira, 26 de abril de 2022

ESCONDERIJO - Heraldo Lins

 


ESCONDERIJO


Com passos lentos e concentrado, ele precisa evitar o mal-estar causado por sempre tentar fugir de onde está. Presta atenção ao ligar a torneira do lavabo e se esforça para permanecer olhando para a água. Leva a mão cheia, em forma de concha, ao rosto enquanto a outra se apoia no mármore preto. Não pretende, dessa vez, olhar para o sonho que teve ainda há pouco, onde, com pouca munição, foi colocado em um labirinto para matar leões, ou morrer. 

Lembra-se que tem que voltar para a ação de lavar o rosto, apenas isso, mas o apenas sempre foi complicado. Fecha a torneira observando a própria mão fazendo o movimento horário em cima da estrela de metal. Coisas simples como essas estão lhe salvando da loucura total. 

Vira o rosto para a toalha pendurada atrás. É preciso ter consciência do que está fazendo. Seu pensamento segue, constantemente, as formas e cores que surgem. Já perdeu a conta de quantas vezes aconteceu essas alucinações, e só agora é que está tendo um pouco de controle do que está por vir. 

Puxa a toalha lentamente como se estivesse a evitar barulho. Ela é branca, um pouco desfiada, levando-o para os campos de algodão que viu, na noite passada, em um filme hollywoodiano. 

Congela o movimento para não perder a consciência de estar pensando longe. Sabe que se não combater isso sua tristeza volta, deixando-o à mercê do humor. A aleatoriedade o faz deixar cair o que está nas mãos, perder a visão, por instantes, e desmaiar. Está em constante batalha para evitar o vazio que lhe persegue quando desvia o pensamento da ação. 

Tenta tirar proveito máximo da imagem da toalha. Esse é o seu desafio. Não se importa que alguém lhe chame de lento, pois faz isso para espantar o fantasma do descontrole. 

Percebe que está planejando o futuro buscando soluções para caso se depare novamente com o passado. Ele acha que tudo estar por vir, por isso vive a pesquisar formas de evitar um segundo erro.  

Volta-se para o suporte onde havia deixado o celular. Seu instinto de homem civilizado o leva a teclar para ver as mensagens, entretanto fecha os olhos e apaga a tela. O médico disse  para evitar o vício. 

Caminha como se houvesse uma mina pronta a explodir a suas pisadas. Seu estômago pede comida. Respira lentamente analisando quantas vezes fez e fará aquele caminho até a geladeira. É um animal, e só lhe resta alimentar-se. 

Abre a geladeira e lhe vem a imagem das estações de esqui onde esteve no inverno passado. Volta-se imediatamente para as frutas maduras à sua frente. Ah! vocês estão aí, prontas para serem comidas, diz sem se dar conta da alucinação de vê-las sorrindo. Pelo menos fala baixinho. Tem medo de que o ouçam e façam mal juízo do seu juízo. 

Quando esquece de vigiar-se, o pensamento voa, como agora que lhe vem a imagem da garota que conheceu no aeroporto. Ela queria fugir do seu país e vir com ele, mas ele a deixou frustrada e está arrependido por não ter o seu contato. 

Volta-se para o que está fazendo e se vê jogando frutas dentro do liquidificador. Sussurra que vai torturá-las, transformá-las em uma verdadeira pasta, e sorri. Liga o liquidificador, e o barulho ensurdecedor o deixa desconfortável por achar que é das frutas gritando por socorro. 

Está se sentindo um fracassado em desviar a atenção para um acidente na estrada que presenciou ontem. Estava a recordar os paramédicos levando a criancinha com a metade do crânio exposto.  

Chegou a hora de sair para o expediente. Essa hora sempre chega expulsando-o de casa. Antes de se levantar do sofá, observa um pelo no dorso do seu dedo indicador. Quanta tecnologia envolvida em fazer nascer um pelo. Se fossem duros como metal, teria uma arma mortal em seu corpo. Seria um homem espinho. Seria e foi lhe persegue sem espaço para o presente do indicativo. 

Entra no elevador e conta até quarenta, exatamente quando a porta se abre. Precisa estar falando sozinho o tempo todo para não se perder no que está fazendo. No trabalho também é assim. Consegue falar com as armas, munições, granadas, enquanto está a vigiá-las no paiol em que cumpre o expediente. 

Trabalha e se diverte conversando com seres imaginários. Volta para casa depois de mais um dia de total paranoia. Essa é a sua rotina que ele não conta para ninguém, com medo de que o aposentem por invalidez.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.04.2022 - 06:52



2 comentários:

  1. Bacana, Heraldo. Praticamente todos vivemos esse tipo de realidade interior. Muito pertinente e engraçada a conclusão.

    ResponderExcluir
  2. Pois é... quando estava escrevendo esse texto, à noite, Gilberto passou-me um vídeo sobre fluxo de consciência, aí eu pensei: que coincidência. Acho que é isso mesmo. O fluxo vai a todo instante nos acompanhando, ou será se nós é que o acompanhamos? KKKKKKKK

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”