CORRESPONDÊNCIA ENTRE AMIGOS ILUSTRES (George Sand e Flaubert)
Conheci Liliane Mendonça em 2016.
A memória falhou, mas o Gmail auxiliou-me: 30 de maio. Havia encontrado meu contato
no Blog da APOESC. No e-mail, pedia-me permissão para usar trechos
de uma crônica. Causou-me uma primeira boa impressão pela preocupação que teve em
dar os devidos créditos a meu texto. Elogiei-a por isso.
Formada em Letras, havia largado um bom
emprego que não mais a satisfazia para dedicar-se à realização de dois grandes
sonhos: fazer mestrado e dedicar-se à tradução de clássicos franceses,
principalmente dos livros de Aurore Dupin (1804-1876), mundialmente conhecida como
George Sand, que foi uma mãe feminista adepta de paradigmas bem à frente de seu tempo. Além do pseudônimo masculino, vestia-se como homem.
Escritora prolífica, autora de romances clássicos.
Posteriormente, li um dos livros de Sand, traduzido
por Liliane: François o menino
abandonado, disponível na editora Kazuá. Ótimo romance, excelente tradução.
https://www.editorakazua.net/prosa/francois-o-menino-abandonado-george-sand-liliane-mendonca
Li também A Muda, da escritora iraniana Chardortt Djavann, também traduzido
por ela e publicado pela Editora
Arte & Letra em 2021. Mais um belíssimo trabalho.
Enquanto conclui o mestrado e como objeto deste, Liliane está
empenhada na tradução das cartas trocadas entre Flaubert e George Sand. Em
breve, novo livro.
Tive
acesso a parte dessa correspondência e vi coisas que corroboram a excelente
visão que dela tem a tradutora. O autor de Madame Bovary também era fascinado com o caráter de sua
interlocutora. Escreveu:
“A
senhora nasceu em qual constelação, para trazer em si qualidades tão diversas,
tão numerosas e tão raras?” (XXVI. PARA
GEORGE SAND)
Nas
cartas há trechos interessantes, que nos dão acesso a um Flaubert voluntariamente
recluso, que se martiriza em função da escrita, inclinado ao pessimismo. Diz:
“Você pode engordar o gado humano,
preencher sua cama com palha e até dourar seu estábulo, ele vai continuar
bruto, não importa o que digam. Todo o progresso que podemos esperar é que o
bruto se torne menos mal. Mas quanto a elevar as ideias da massa, a lhe dar uma
concepção mais ampla de Deus, mais ampla e por isso menos Humana, eu duvido,
duvido.” (FLAUBERT a
SAND – Croisset, 19 de setembro de 1868 – carta 134)
Do outro lado, vemos uma George Sand otimista. Quinze anos mais
velha que Flaubert, busca torná-lo mais esperançoso. Sugere que seja menos
rigoroso consigo mesmo, com sua escrita e com os demais. Que se exercite,
contemple a natureza e caminhe ao sol. Eis um de seus conselhos, traduzido por
Liliane:
"Eu sei, viver em
si não é bom. Não há prazer intelectual maior do que a possibilidade de voltar
quando saímos por muito tempo. Mas habitar sempre esse eu que é o mais
tirânico, o mais exigente, o mais fantasioso dos companheiros, não, não
devemos.
Eu suplico, ouça-me! Você
tranca uma natureza exuberante numa masmorra. Você tenta transformar um coração
meigo e bondoso num misantropo preconceituoso, mas não vai conseguir. Enfim, eu
me preocupo com você e talvez esteja falando bobagens, mas estamos vivendo
tempos cruéis e não devemos sofrer os maldizendo. É preciso os superar
protestando. É isso. Eu o amo, escreva para mim" (CCXXXVIII. TO GUSTAVE FLAUBERT Nohant, 26 de outubro de 1872)
Ao ver Flaubert desanimado com o impacto de suas obras, escreveu
ela:
Eu o
ouvi dizer: eu só escrevo para 10 ou 12 pessoas. Diz-se numa conversa um monte
de coisas que são o resultado de uma impressão de momento. Mas o senhor não foi
o único a dizer isso. Era essa a opinião de segunda-feira, ou a tese daquele
dia. Eu protestei interiormente.
[...]
Cem vezes na vida, o
bem que fazemos parece não servir para nada, e não serve a ninguém
imediatamente, mas mantém a tradição do bom valor e do bem fazer, sem a qual
tudo pereceria. (XXI. Para GUSTAVE FLAUBERT, em Croisset Nohant,
segunda-feira à noite, 1º de outubro de 1866)
A
leitura de alguns excertos fez-me ver muitas semelhanças entre o tempo vivido por eles
e o nosso. As polarizações que tanto nos assustam e fissuram nossas relações havia
na época deles e em maior intensidade. Eles divergiam em muitos pontos, mas a
literatura os unia. Quando discordavam, era com respeito. O amor e a amizade
falavam mais alto. Graças à admiração, sinceridade e gentileza mútuas, se
corresponderam por muito tempo. Doze anos de rico intercâmbio.
Há, nessas cartas, importantes lições para nossas vidas. Encontrei trechos dignos
de serem destacados e guardados na memória. Quem as ler se deparará com duas
concepções de escrita; para quem deseja aperfeiçoar-se na arte literária, não
faltarão estímulos.
Sand e Flaubert tiveram vidas
interessantes, impactantes; existiram em momentos decisivos da história francesa,
cruciais à evolução democrática europeia. Temos a oportunidade de vê-los na
intimidade dessas correspondências; de observar suas índoles diversas; de ver
como conciliam a vida com a escrita e as diferentes concepções de mundo.
Já
imaginaram o que teria ocorrido se George Sand e Flaubert - à semelhança de mim
e de Liliane - dispusessem dos meios tecnológicos que hoje temos? O que teria
acontecido caso mesclassem suas conversas com mensagens de áudio, figurinhas e
textos que logo seriam apagados? Muito provavelmente não disporíamos de tão
rico acervo. Que sorte a nossa!
Gilberto
Cardoso dos Santos
Suas palavras me emocionaram e fizeram muita diferença no meu dia.
ResponderExcluirA correspondência Sand-Flaubert - tanto nos trechos que você escolheu quanto em todos os outros - traz uma discussão capaz de inquietar e fazer refletir qualquer pensador ou pessoa minimamente sensível contemporâneo a nós dois.
Muito obrigada, amigo Gilberto!
Que bom que gostou! Abraços.
ExcluirMassa!!
ResponderExcluirDai tiramos esta conclusão. Tanto os franceses - Sand-Flaubert - quanto os brasileiros - Liliane-Gilberto - têm algo em comum. O gosto é o respeito pela escrita. (Kydelmir Dantas)
ResponderExcluirObrigado, Kydelmir.
ExcluirSim, temos em comum pelo menos a literatura com a dupla Sand-Flaubert, mas na comparação específica com a Sand, temos também alguns valores sociais, como a democracia, igualdade de direitos entre homens e mulheres, a iberdade e o respeito à natureza. ;)
ExcluirOs trechos traduzidos das cartas são ótimos. E as questões levantadas no final são mais pertinentes ainda. Ótima leitura. - Theo Alves
ResponderExcluirPerfeito. Realmente, o uso das tecnologias tem suas vantagens, mas o escrito no papel é muito importante. Texto rico, com informações de escritores franceses. - Ana Glória
ResponderExcluirQue maravilha! Que correspondências, hein! Saber de um Flaubert inseguro, triste, achando não contribuir com seus escritos é uma luz de que podemos contribuir, de um modo ou de outro, podemos, sim. - Nelson Almeida
ResponderExcluirQue maravilha ver Flaubert dialogar com a Madame Sand! Parabéns a Liliane e a Gilberto por me permitirem esse banquete!
ResponderExcluirObrigado, Nailson Costa, por seu comentário. Nós também nos banqueteamos.
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