terça-feira, 26 de abril de 2022

CORRESPONDÊNCIA ENTRE AMIGOS ILUSTRES (George Sand e Flaubert )

 


CORRESPONDÊNCIA ENTRE AMIGOS ILUSTRES (George Sand e Flaubert)

Conheci Liliane Mendonça   em 2016. A memória falhou, mas o Gmail auxiliou-me: 30 de maio. Havia encontrado meu contato no Blog da APOESC. No e-mail, pedia-me permissão para usar trechos de uma crônica. Causou-me uma primeira boa impressão pela preocupação que teve em dar os devidos créditos a meu texto. Elogiei-a por isso.

Formada em Letras, havia largado um bom emprego que não mais a satisfazia para dedicar-se à realização de dois grandes sonhos: fazer mestrado e dedicar-se à tradução de clássicos franceses, principalmente dos livros de Aurore Dupin (1804-1876), mundialmente conhecida como George Sand, que foi uma mãe feminista adepta de paradigmas bem à frente de seu tempo. Além do pseudônimo masculino, vestia-se como homem. Escritora prolífica, autora de romances clássicos.

Posteriormente, li um dos livros de Sand, traduzido por Liliane: François o menino abandonado, disponível na editora Kazuá. Ótimo romance, excelente tradução.

 


https://www.editorakazua.net/prosa/francois-o-menino-abandonado-george-sand-liliane-mendonca

 

Li também A Muda, da escritora iraniana Chardortt Djavann, também traduzido por ela e publicado pela Editora Arte & Letra em 2021. Mais um belíssimo trabalho.


Enquanto conclui o mestrado e como objeto deste, Liliane está empenhada na tradução das cartas trocadas entre Flaubert e George Sand. Em breve, novo livro.

Tive acesso a parte dessa correspondência e vi coisas que corroboram a excelente visão que dela tem a tradutora. O autor de Madame Bovary também era fascinado com o caráter de sua interlocutora. Escreveu:

“A senhora nasceu em qual constelação, para trazer em si qualidades tão diversas, tão numerosas e tão raras?” (XXVI. PARA GEORGE SAND)

Nas cartas há trechos interessantes, que nos dão acesso a um Flaubert voluntariamente recluso, que se martiriza em função da escrita, inclinado ao pessimismo. Diz:

“Você pode engordar o gado humano, preencher sua cama com palha e até dourar seu estábulo, ele vai continuar bruto, não importa o que digam. Todo o progresso que podemos esperar é que o bruto se torne menos mal. Mas quanto a elevar as ideias da massa, a lhe dar uma concepção mais ampla de Deus, mais ampla e por isso menos Humana, eu duvido, duvido.” (FLAUBERT a SAND – Croisset, 19 de setembro de 1868 – carta 134)

Do outro lado, vemos uma George Sand otimista. Quinze anos mais velha que Flaubert, busca torná-lo mais esperançoso. Sugere que seja menos rigoroso consigo mesmo, com sua escrita e com os demais. Que se exercite, contemple a natureza e caminhe ao sol. Eis um de seus conselhos, traduzido por Liliane:

"Eu sei, viver em si não é bom. Não há prazer intelectual maior do que a possibilidade de voltar quando saímos por muito tempo. Mas habitar sempre esse eu que é o mais tirânico, o mais exigente, o mais fantasioso dos companheiros, não, não devemos.

Eu suplico, ouça-me! Você tranca uma natureza exuberante numa masmorra. Você tenta transformar um coração meigo e bondoso num misantropo preconceituoso, mas não vai conseguir. Enfim, eu me preocupo com você e talvez esteja falando bobagens, mas estamos vivendo tempos cruéis e não devemos sofrer os maldizendo. É preciso os superar protestando. É isso. Eu o amo, escreva para mim" (CCXXXVIII. TO GUSTAVE FLAUBERT Nohant, 26 de outubro de 1872)

Ao ver Flaubert desanimado com o impacto de suas obras, escreveu ela:

Eu o ouvi dizer: eu só escrevo para 10 ou 12 pessoas. Diz-se numa conversa um monte de coisas que são o resultado de uma impressão de momento. Mas o senhor não foi o único a dizer isso. Era essa a opinião de segunda-feira, ou a tese daquele dia. Eu protestei interiormente.

[...]

Cem vezes na vida, o bem que fazemos parece não servir para nada, e não serve a ninguém imediatamente, mas mantém a tradição do bom valor e do bem fazer, sem a qual tudo pereceria. (XXI. Para GUSTAVE FLAUBERT, em Croisset Nohant, segunda-feira à noite, 1º de outubro de 1866)

A leitura de alguns excertos fez-me ver muitas semelhanças entre o tempo vivido por eles e o nosso. As polarizações que tanto nos assustam e fissuram nossas relações havia na época deles e em maior intensidade. Eles divergiam em muitos pontos, mas a literatura os unia. Quando discordavam, era com respeito. O amor e a amizade falavam mais alto. Graças à admiração, sinceridade e gentileza mútuas, se corresponderam por muito tempo. Doze anos de rico intercâmbio.

Há, nessas cartas, importantes lições para nossas vidas. Encontrei trechos dignos de serem destacados e guardados na memória. Quem as ler se deparará com duas concepções de escrita; para quem deseja aperfeiçoar-se na arte literária, não faltarão estímulos.

Sand e Flaubert tiveram vidas interessantes, impactantes; existiram em momentos decisivos da história francesa, cruciais à evolução democrática europeia. Temos a oportunidade de vê-los na intimidade dessas correspondências; de observar suas índoles diversas; de ver como conciliam a vida com a escrita e as diferentes concepções de mundo.

Já imaginaram o que teria ocorrido se George Sand e Flaubert - à semelhança de mim e de Liliane - dispusessem dos meios tecnológicos que hoje temos? O que teria acontecido caso mesclassem suas conversas com mensagens de áudio, figurinhas e textos que logo seriam apagados? Muito provavelmente não disporíamos de tão rico acervo. Que sorte a nossa!

Gilberto Cardoso dos Santos



 

 

 

 

11 comentários:

  1. Suas palavras me emocionaram e fizeram muita diferença no meu dia.
    A correspondência Sand-Flaubert - tanto nos trechos que você escolheu quanto em todos os outros - traz uma discussão capaz de inquietar e fazer refletir qualquer pensador ou pessoa minimamente sensível contemporâneo a nós dois.
    Muito obrigada, amigo Gilberto!

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  2. Dai tiramos esta conclusão. Tanto os franceses - Sand-Flaubert - quanto os brasileiros - Liliane-Gilberto - têm algo em comum. O gosto é o respeito pela escrita. (Kydelmir Dantas)

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    1. Obrigado, Kydelmir.

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    2. Sim, temos em comum pelo menos a literatura com a dupla Sand-Flaubert, mas na comparação específica com a Sand, temos também alguns valores sociais, como a democracia, igualdade de direitos entre homens e mulheres, a iberdade e o respeito à natureza. ;)

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  3. Os trechos traduzidos das cartas são ótimos. E as questões levantadas no final são mais pertinentes ainda. Ótima leitura. - Theo Alves

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  4. Perfeito. Realmente, o uso das tecnologias tem suas vantagens, mas o escrito no papel é muito importante. Texto rico, com informações de escritores franceses. - Ana Glória

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  5. Que maravilha! Que correspondências, hein! Saber de um Flaubert inseguro, triste, achando não contribuir com seus escritos é uma luz de que podemos contribuir, de um modo ou de outro, podemos, sim. - Nelson Almeida

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  6. Que maravilha ver Flaubert dialogar com a Madame Sand! Parabéns a Liliane e a Gilberto por me permitirem esse banquete!

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    1. Obrigado, Nailson Costa, por seu comentário. Nós também nos banqueteamos.

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