sábado, 15 de janeiro de 2022

DESCANSO AGITADO - Heraldo Lins

 



DESCANSO AGITADO


Acordei com a sensação de que eu não era eu. Uma leveza no pensamento que até estranhei. Estaria vivo? Sim, mas diferente. As minhas preocupações haviam terminadas subitamente. Fiquei um pouco mais de tempo na cama saboreando aquela paz há tanto esquecida. 

Lembrei-me que estava de férias. Que bom foi não ter que acordar alarmado. Escutei uma buzinada lá embaixo. Levantei-me e abri a janela. Vi uma batida. Homens discutindo, agredindo-se, matando-se, morrendo-se. Fechei e abri o guarda-roupa só para conferir se trouxera a bermuda branca. Não, não havia trazido. A mulher esqueceu. Já tinha motivos para começar a briga quando ela acordasse. E a camiseta preta? Vasculhei e não a vi. Ah! ali estava perto da marrom. Essa falta do que fazer me deixou nervoso. 

O celular tocou. Vi que era o supervisor da empresa e, em vez de atendê-lo, estirei o dedo. Depois direi que não vi a chamada. Apesar de ter vontade, assistir jornalistas trabalhando poderia ser que estragasse meu dia. As notícias não geram interessem em quem está desligado do mercado. Quantos quilômetros há de engarrafamento? Estava me divertindo mais por não estar no trânsito do que de férias. 

Saí para a piscina e me renovei em trajes de banho. Acho que vou comprar presentes para aquelas com sorrisos planejados.  

À tarde fui visitar meu amigo cientista. Cheguei por volta das dezesseis horas. Ele estava tocando violão. Pedi que não dissessem meu nome, ele precisava me reconhecer. Eu falei e ele me reconheceu quando ri. Começou a tocar violão de forma esfacelada. É como se o cérebro dele tivesse se transformado em uma gelatina. Saí de lá com a sensação de que vira um fantasma. A mania dele é se achar um cientista. Nunca mais havia lhe visitado. Nossa juventude se cruzou à época das serenatas, depois veio a doença... 

Logo em seguida fui à casa dos meus primos. Soube que dois deles vieram a falecer recentemente. A irmã agora é irmão, disse que se libertou das amarras sociais. Está mais contente. Na volta encontrei uns universitários fazendo movimentação contra o aumento das mensalidades. 

O jantar foi servido. Pessoas de outros países compartilham o buffet. O rapaz, no pequeno palco, tocava desanimado. Acho que já o conhecia fazendo aquela mesma música burocrática. Sem interpretação. Deve ser chato ser um artista sem plateia. A plateia, estávamos mais interessados no que havia em cima das mesas do que aplaudir músico de restaurante. 

Por vício, abri o site de notícias. Uma mulher casou-se com um boneco de pano. No pátio do hotel estava havendo uma apresentação cultural de falsos indígenas. Corpos suados, cerimônia sintetizada para turista ver. Desenhos nos corpos seminus de homens e mulheres que dançam sem os espíritos dos antepassados. Ah! quantas pessoas trabalham para que eu possa trocar os pensamentos.   


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 12.01.2022 - 06:46




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