segunda-feira, 11 de outubro de 2021

REFLEXOLOGIA - Heraldo Lins

 


REFLEXOLOGIA


Estava caminhando quando encontrei uma Igreja. Na agitada vida de novato na capital, percebi que ali poderia relembrar algo que me acalmasse. Sentei-me num banco e fiquei. Olhei a igreja vazia e vi no centro um caixão. Uma velhinha contente surgiu, apresentou-se como sendo Amália e perguntou-me se eu estava ali para o velório. Apenas sentei-me para refletir, disse-lhe sem muito entusiasmo. Não pude deixar de notar a felicidade dela em dizer que aquele dia era especial para ela. Depois que se dirigiu ao caixão, caminhou para a sacristia deixando-me, novamente, sozinho. 


No fundo da igreja apareceram pessoas apressadas com flores nas mãos. Vieram até o caixão, pentearam a morta e começaram a rezar. Duas moças queriam saber meu parentesco com a defunta. Falaram que ela era sua avó e que eu parecia muito com o seu avô, falecido há três anos. Comecei a desconfiar que me tinham como parente. Aqui e acolá eu flagrava alguém fixando o olhar em mim. Quando já estava decidido a deixar o lugar, surgiu o padre. 


Nem pude sair daquela igreja antes de começar a missa, e sabia que seria falta de educação ir embora no meio do ritual. Finalmente vi o padre dirigir-se ao caixão e benzer o corpo. Muitos se aglomeravam ao seu redor. Ao me levantar para ir embora, hesitei. Minha atenção foi para o mundo lá fora. As buzinas me levaram para um lugar sem morte, onde as pessoas correm para um futuro que nunca chega. Eu queria ficar preso naquele presente. Como explicar o que senti... Eu estava testemunhando, sem nenhuma relação afetiva, um final de vida. A despedida com lágrimas para mim não passava de uma cena igual a outra qualquer. Não conhecia ninguém naquele velório, mas percebia que queriam que eu tomasse parte do sofrimento. Pensei nas pessoas que não tinham velha morta para enterrar. Pensei nas flores vermelhas que surgem celebrando a vida, e que estavam ali para enfeitar a morte. 


Eu queria fugir daquilo tudo, e ao mesmo tempo ficar. Permanecia servindo de enfeite. Minha aparência com o avô estava estimulando um tipo de aceitação simpática por parte deles. Vi quando alguém colocou uma fotografia junto à morta. Escutei dizendo que era do avô parecido comigo. Minha curiosidade não me deixou ficar parado. Caminhei para perto do caixão tentando ver a foto. Deixaram-me passar como se já esperassem minha ida até lá. Meus olhos voltados para o retrato, observaram, com toda a clareza do mundo, eu naquela fotografia. Espantei-me por alguns momentos, analisei os traços e não tive dúvidas... tudo era igualzinho a mim. Desnorteado, olhei para a defunta: lá estava Amália sorrindo.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04/10/2021 – 10:26



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