domingo, 25 de abril de 2021

TREMENDO DE MEDO - Heraldo Lins



 TREMENDO DE MEDO


O corpo fala através da dor. Foi com a cor avermelhada que o meu olho resolveu denunciar a escassez de banhos. O excesso de gordura lacrimal o fez determinar duas chuveiradas por dia. Mesmo sendo época do frio, exigiu que fosse gelado para evitar a afluência de artérias oftálmicas na região óptica. Eu que já tinha preguiça de executar um no chuveiro quente, agora terei que me adaptar com dois, frios. E não adianta gritar hurra! O chicote gelado é impiedoso para quem é friorento como eu. Um antes do almoço e outro após o jantar. O do meio-dia até que dá para suportar, mas o noturno é de arrepiar as unhas. 


Para conseguir aguentar esse desconforto a solução que encontrei foi ficar pulando dentro de casa por durante meia hora, no mínimo. Às vezes prefiro subir os trezentos e sessenta degraus para o meu apartamento. Durante essa subida encontro outras atletas descendo os vinte andares pela escada. Elas pensam que sou também fanático por exercícios físicos. Nem quis deixá-las tristes contando-lhes o real motivo das minhas escaladas. Fazer flexões e lutar com um batalhão de ninjas invisíveis também ajudou bastante no enfretamento do inimigo comum: a água fria.  


Mudei meus hábitos e fico na rua adiando o momento de adentrar em casa. A porta do banheiro eu já fechei e guardei a chave. Não permito que alguém abra sem minha permissão. Meu inimigo é o chuveiro. Já deixei de passar em frente às lojas de construção porque sei que lá vende essas peças. Não estou traumatizado, apenas cauteloso. 


Ao dormir tenho pesadelos. Lembro-me que estava em um churrasco entre amigos, e os garçons se transformavam em chuveiros. Ofereciam carne e em seguida temperavam com uma chuveirada. Saí correndo de lá perseguido por um carro de bombeiros com jatos em minha direção. 


Enfrentar o desafio dos banhos frios se iguala a trocar pneu em noite de chuva em estrada de barro; está no mesmo patamar de tolerar hemorroida num cerimonial. Além de ter que brigar com o chuveiro, o oftalmologista disse-me que preciso deixar de comer pinha, camarão e banana nanica. Esses alimentos são carregados, e a inflamação pode piorar. 


Depois de dois meses nesse sufoco outro médico descobriu que o problema do excesso de gordura nas secreções lacrimais estava relacionado com a falta d’água no organismo. Inspirado por essa desidratação, comecei a tomar vinte litros d´água por dia. Troquei o sono da noite por idas ao banheiro. Deixei de me alimentar para abrir espaço na barriga e encher de água. Para manter o nível alagadiço no corpo, ando com um botijão para abastecer minhas garrafinhas. Comprei várias.  Em cada canto da casa e do trabalho há uma cheia me esperando. Eu agora estou dividindo a humanidade em quem anda ou não com a garrafinha. Para mim, carregar água passou a ser mais importante do que a própria roupa. Ande nua, mas não sem água. Meu assunto predileto é perguntar, para iniciar uma conversa, sobre a cor da garrafa que ela está carregando na bolsa. Se não tiver, eu já discrimino. Dizem que sou extremista, mas eu nego.       



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 12/03/2021 – 17:46

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