sábado, 9 de janeiro de 2021

SENTIDO CONTRÁRIO - Nailson Costa

 


SENTIDO CONTRÁRIO

 

            - Não leve a mal, professor, o seu discurso é muito bonito, mas eu não tolero essa palavra 'socialismo, comunismo', tenho nojo, na verdade, desde criança - interagiu Seu Manoel ao meu comentário acerca da atual conjuntura político, financeiro e social do país.

            Há dois anos, uma vez por mês, dou carona a um quase parente até a Unicat de Natal para ele pegar o seu medicamento, uma injeção de mais de 5 mil reais a unidade, que ele tem de tomar para aliviar as fortíssimas dores de sua artrose reumática.

            Seu Manoel, (nome fictício, não vou expor a identidade de um conhecido meu de Santa Cruz), estava lá, na entrada da Unicat, à espera de sua filha. Ela foi pegar o medicamento dela, e eu desci do carro e fui ao encontro dele para prosear. Não fica legal dois conterrâneos, mesmo não sendo amigos, fingir que não se viram a menos de dez metros um do outro. Geralmente fico dentro do carro, pois as árvores da Unicat têm sombras disputadas, e as fumaças de cigarro, o sol e as formigas se acotovelam em cada centímetro delas. Aliás, as formigas são as que menos me incomodam ali naquele espaço, mesmo quando uma desavisada erra a estrada de seu labor e sobe por entre os cabelos de minha perna. Quem me dera poder falar a língua das formigas, para entender seu trabalho coletivo e sua bela organização social!

            Eu e Seu Manoel conversamos um pouco sobre futebol e política. Esse assunto de política é sempre delicado. Futebol a gente discorda, concorda, brinca e vibra com o gol de nosso time, até porque todo brasileiro é um profundo conhecedor e um amante apaixonado dessa arte. Discutir política não! Essa tem uma pedra no meio do caminho; tem sempre um motorista cangueiro, bêbado ou desinformado conduzindo velozmente o seu carro sem seta, sem lenço e lágrimas das consequências. Discutir política é tragar a fumaça de um cigarro doido  que pode ou não manchar o  pulmão. Eu entendo que discutir política deveria ser como beijo de duas formigas que, em sentidos contrários, se esbarram, se beijam e seguem, democraticamente, seus caminhos, para, quem sabe, saborear em comunhão os frutos de seus desejos. É complicado esse tema! Nele, sempre há uma pedra, um motorista, uma fumaça ou uma formiga disfarçada, errante, que toma a estrada dos espasmos de uma face limpa .

            - Seu Manoel, qual o seu entendimento sobre socialismo? - perguntei.

            - Sei não, professor, como disse, nunca me preocupei com essas coisas de gente de esquerda, agitadores, bagunceiros, gente do contra, coisa de comunista, com todo respeito ao senhor, que sei que gosta da cor vermelha. Tenho pensado mesmo na saúde de minha filha e na vacina pra acabar com esse tá de corona, pra gente voltar a "trabaiá" com segurança, né?

            - É, Seu Manoel! Vacina urgente e grátis, como esses medicamentos distribuídos aqui na Unicat para o povo.

            A filha de Seu Manoel apareceu feliz com uma cuba cheia de sua cura, ou alívio, me cumprimentou, entrou no carro e " ramo, pai".

            - Té mais, professor!

            - Té mais, Seu Manoel! Boa viagem e cuidado com a estrada.

            Seu Manoel, homem simples, roupa surrada, odor castigado pelas horas passadas do suor de seu trabalho honesto, carro em estado de depreciação avançado, um homem cansado pela exploração de seu dia a dia, entrou no carro e seguiu viagem, não tolerando o socialismo, ou o comunismo, como ele mesmo disse, mesmo vindo pegar o medicamento de sua filha na Unicat, mesmo desejando vacina grátis para toda a população, enquanto eu fiquei a acompanhar outra formiga que fazia cócegas na minha perna. Dessa vez, deixei-a subir na esperança de que ela chegasse ao meu ouvido e me revelasse o segredo da eficiência do socialismo de sua gente.

(Nailson Costa, em Conto em Dó Maior, 09.01. 2021)


Um comentário:

  1. Bela e necessária crônica. A crise de identidade de Seu Manoel representa a realidade de uns 30 por cento dos brasileiros.

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