SENTIDO CONTRÁRIO
- Não leve a mal,
professor, o seu discurso é muito bonito, mas eu não tolero essa palavra
'socialismo, comunismo', tenho nojo, na verdade, desde criança - interagiu Seu
Manoel ao meu comentário acerca da atual conjuntura político, financeiro e
social do país.
Há dois anos, uma vez
por mês, dou carona a um quase parente até a Unicat de Natal para ele pegar o
seu medicamento, uma injeção de mais de 5 mil reais a unidade, que ele tem de
tomar para aliviar as fortíssimas dores de sua artrose reumática.
Seu Manoel, (nome
fictício, não vou expor a identidade de um conhecido meu de Santa Cruz), estava
lá, na entrada da Unicat, à espera de sua filha. Ela foi pegar o medicamento
dela, e eu desci do carro e fui ao encontro dele para prosear. Não fica legal
dois conterrâneos, mesmo não sendo amigos, fingir que não se viram a menos de
dez metros um do outro. Geralmente fico dentro do carro, pois as árvores da
Unicat têm sombras disputadas, e as fumaças de cigarro, o sol e as formigas se
acotovelam em cada centímetro delas. Aliás, as formigas são as que menos me
incomodam ali naquele espaço, mesmo quando uma desavisada erra a estrada de seu
labor e sobe por entre os cabelos de minha perna. Quem me dera poder falar a
língua das formigas, para entender seu trabalho coletivo e sua bela organização
social!
Eu e Seu Manoel
conversamos um pouco sobre futebol e política. Esse assunto de política é
sempre delicado. Futebol a gente discorda, concorda, brinca e vibra com o gol
de nosso time, até porque todo brasileiro é um profundo conhecedor e um amante
apaixonado dessa arte. Discutir política não! Essa tem uma pedra no meio do
caminho; tem sempre um motorista cangueiro, bêbado ou desinformado conduzindo
velozmente o seu carro sem seta, sem lenço e lágrimas das consequências.
Discutir política é tragar a fumaça de um cigarro doido que pode ou não manchar o pulmão. Eu entendo que discutir política
deveria ser como beijo de duas formigas que, em sentidos contrários, se
esbarram, se beijam e seguem, democraticamente, seus caminhos, para, quem sabe,
saborear em comunhão os frutos de seus desejos. É complicado esse tema! Nele,
sempre há uma pedra, um motorista, uma fumaça ou uma formiga disfarçada, errante,
que toma a estrada dos espasmos de uma face limpa .
- Seu Manoel, qual o
seu entendimento sobre socialismo? - perguntei.
- Sei não, professor,
como disse, nunca me preocupei com essas coisas de gente de esquerda,
agitadores, bagunceiros, gente do contra, coisa de comunista, com todo respeito
ao senhor, que sei que gosta da cor vermelha. Tenho pensado mesmo na saúde de
minha filha e na vacina pra acabar com esse tá de corona, pra gente voltar a
"trabaiá" com segurança, né?
- É, Seu Manoel! Vacina
urgente e grátis, como esses medicamentos distribuídos aqui na Unicat para o
povo.
A filha de Seu Manoel
apareceu feliz com uma cuba cheia de sua cura, ou alívio, me cumprimentou,
entrou no carro e " ramo, pai".
- Té mais, professor!
- Té mais, Seu Manoel!
Boa viagem e cuidado com a estrada.
Seu Manoel, homem
simples, roupa surrada, odor castigado pelas horas passadas do suor de seu
trabalho honesto, carro em estado de depreciação avançado, um homem cansado pela
exploração de seu dia a dia, entrou no carro e seguiu viagem, não tolerando o
socialismo, ou o comunismo, como ele mesmo disse, mesmo vindo pegar o
medicamento de sua filha na Unicat, mesmo desejando vacina grátis para toda a
população, enquanto eu fiquei a acompanhar outra formiga que fazia cócegas na
minha perna. Dessa vez, deixei-a subir na esperança de que ela chegasse ao meu
ouvido e me revelasse o segredo da eficiência do socialismo de sua gente.
(Nailson Costa, em Conto em Dó Maior, 09.01. 2021)
Bela e necessária crônica. A crise de identidade de Seu Manoel representa a realidade de uns 30 por cento dos brasileiros.
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