domingo, 6 de dezembro de 2020

O PODER DA PALAVRA - Heraldo Lins

   


 

O PODER DA PALAVRA 

     A voz ganhou um emprego clínico. Estava sendo receitada para salvar vidas. Criou-se uma tribuna no salão da enfermaria e a vez era dela.  O discurso teria que durar turnos de duas horas. As pessoas que ali estavam eram pacientes terminais, e seus remédios era escutar discurso. Se parassem as falas, eles morreriam. O som das palavras animava-os. Eram como velas ao vento. Apagavam-se com o silêncio. Até para beber água o orador teria que ser rápido. Enquanto discursava a equipe já planejava outro para seu lugar. Não havia aplausos nem perguntas. Fala, fala e mais fala. Senhoras e senhores acamados...  começou o orador novato. Se vocês não morrerem hoje, amanhã estarei de volta nesta tribuna. Saibam que sempre foi meu sonho discursar sem ser interrompido. Nem sequer um olhar interrogativo vocês me dirigem. Isso é ótimo.  Fico totalmente à vontade. Nem a porta abrindo-se e fechando eu escuto. Todos já chegaram e nem podem ir. Quando cheguei aqui que vi todas essas camas enfileiradas, pensei: o que direi para uma plateia com tanta experiência que já não aguenta ouvir lengalenga de orador. Mas me enganei. Vocês aguentam sim. É tanto que não morrem. Vejo esse senhor com mais de cento e vinte anos aqui na frente. Se ele pudesse entender que essa enfermeira bonitona ao seu lado quer vê-lo voltar a andar, no mínimo ficaria eufórico. Jamais pensaria em morrer. A enfermeira sorriu e estourou o chiclete que estava mascando. Aquela outra, com um óculos de sol, confessou-me estar doida para abraçar o primeiro que se levantar da cama. Mas isso, acredito eu,  é impossível, meus velhinhos. O estado em que vocês se encontram não permite tal luxo. Nesse momento uns três terminais abriram os olhos. O orador continuou. Mas não basta só isso como estímulo.  É importante também experimentar outras sensações. Vocês que tantas vezes foram impedidos de comer doce, agora terão chocolates e doces de leite o tanto quanto quiserem. E digo mais... poderão ir ao bingo,  apostar no jogo do bicho e loteria;  irão poder passear para onde quiserem; irão esquecer o nome dos filhos e netos, e jamais  serão  repreendidos... antes de meia hora de discurso os idosos já estavam dançando felizes e esperançosos por uma vida mais atrativa.           



Autor: Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04/12/2020


Heraldo Lins é arte-educador 

Tel.:  84-99973-4114

Email: showdemamulengos@gmail.com

Um comentário:

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”