sábado, 5 de dezembro de 2020

A CAUSA SECRETA DE JOÃO BOSTA - Conto de Nailson Costa

 


A CAUSA SECRETA DE JOÃO BOSTA

 

   Coitado de João Bosta! Sofreu tanto bullying quando criança por causa de seu nome que, na sua vida adulta, parecia repercuti-los estranhamente. Parecia. É que bullying é pior que pesadelo de criança, ou não, quer dizer, acho. Ambos são terríveis! Nenhum estudioso da alma humana bateu o martelo da certeza de suas causas.

   João Bosta era aquele mesmo, bastante conhecido, cantado em verso e prosa por causa de sua desventura de criança, aquela, segundo a qual vozes misteriosas, escondidas por entre as esquinas do seu cérebro ecoavam o irritante  "João Boooosta",  que o faziam chorar muito, a ponto de não querer mais ir à escola e nem de sair de  casa, e, por isso, quando adulto, conseguiu, sabe-se lá através de quem, uma decisão judicial que autorizava a mudança de seu nome, de João Bosta, para José Bosta.

   Pois bem, João - ninguém o chamava de José - parecia continuar  sofrendo depois de  adulto, talvez não mais com a mesma intensidade  de sua pueril incompreensão daquele bullying pretérito.

   Muitas vezes eu o via a mexer os lábios, a ruminar, baixinho, o eco de seu mistério. Era comum ele se afastar das pessoas para exercer esse seu mister. Que espécie de oração era aquela? Quantas contas havia nesse rosário? 

   Órfão de pai e mãe ainda adolescente, andava pelas ruas da cidade mendigando a compaixão de alguns. O Monsenhor Abelardo Ribeiro, que gostava de João, mesmo João não gostando de ninguém, o acolheu, de forma certa, nos trabalhos rápidos de sua igreja. João era franzino, feinho, assustado, e, como já dito, cheio de traumas e cicatrizes de seu passado, um Quasímodo, quase mudo. Não sorria com nada. Vivia a transitar no silêncio de sua escuridão e a sofrer com o barulho de seu espírito. É possível que não conhecesse o tempero do prazer da vida.

   Eu e alguns colegas, como as crianças de seu passado, gritávamos também o "João Bossssta" quando de suas passadas rápidas por entre as esquinas de becos e de ruas da cidade. Ainda hoje me penitencio com aquele meu comportamento, viver atormentando uma mente já tão atormentada. Achávamos que ele era louco e até criávamos inversões de seu caráter, como a de dizer que João se excitava ao contemplar a pobreza, a miséria, a violência, o choro e a dor  dos, assim como ele, marginais da sociedade.

   O sacristão, Seu Everaldo, vivia a espantar a gente, eu e meus colegas, de dentro da igreja quando nela adentrávamos, na ponta dos pés, somente para zoar João, suas manias e seu ruminar de mistérios. João odiava todos, inclusive o sacristão, Seu Everaldo, velho gagá, por causa de sua insistência alcoviteira em querer casá-lo com Nicole, moça velha, funcionária pública federal, carola de caritó,  ranzinza e muito temente a Deus.

    Éramos terríveis, eu e meus coleguinhas! João só saía de junto de um cadáver frio e sem cor de vida, estirado no chão de sua violência ou no féretro de suas flores, quando ele percebia que nós, seus inimigos, estávamos a lhe dirigir o sorriso abafado dos algozes.

   João era presença certa nos cortejos fúnebres - não perdia um - e lá ruminava seu mistério. Diziam que ele rezava e sofria com a dor dos familiares enlutados. O certo é que ele vivia atento aos anúncios de falecimento de alguém. Fazia sala ao morto e a seus parentes. Era o primeiro a chegar na sala de recepções, na missa de corpo presente de sétimo e de trinta dias.  Algumas pessoas estranhavam  aquela dedicação. Era notável o seu transe quando os seus ouvidos atentos captavam a reclamação dos chororô.  João detestava ser elogiado. Deixava claro que gostaria de ser invisível, mas nós, seus novos inimigos, sentíamos prazer em torná-lo real.

   Nós éramos moleques "ruins", e carregávamos toda a energia dessa hiperatividade infantil no DNA de nossa curiosidade, como carregam os bons antropólogos, sociólogos, psicólogos e até de investigadores criminais, nas suas observações, de modo que não deixam em paz o seu apreciável objeto de estudo. João era um em potencial. Vivia na porta do pronto-socorro à espreita de moribundos, vítimas de violência. Queria ouvir o gemido de dor, queria ver a pressa do maqueiro, o "sai da frente", queria ler as frases escritas pelo sangue a escorrer no lençol branco do hospital, queria ver o rosto da morte, ouvir o choro dos parentes e a súplica a Deus pela vida. Mas a morte sempre vence e João sabia disso. E os lábios dele não se comportavam em sua boca, vibravam baixinho o prazer de seu silêncio. João  ruminava o seu mistério! 

   O que dizia? Quais as palavras, frases e orações eram ditas?

  Nicole, sua companheira, entretanto, num dia comum de suas infelicidades, descobriu a causa secreta de João, o seu segredo, o teor daquela oração que levava os lábios vibrantes e a  boca excitada de João a ruminar o seu mistério.

   Com a notícia de uma tragédia na Favela Bosta de Alma, situada nos arredores do Alto do Cruzeiro, peguei minha bicicleta e corri pra lá, para casa de João Bosta. Encontrei Nicole esfaqueada, caída, a esquentar o chão frio com o seu sangue quente. Encontrei João, tranquilo, com a faca na mão, de joelho ao lado dela, a deliciar-se com os últimos suspiros, e a contemplá-la, no transe de seu prazer, e, claro,  a dizer de seu mistério.

   A casa, já tomada de gente, me dificultou a cena, mas João, que não via ninguém, logo me viu e virou-se pra mim, com seus olhos vermelhos do sangue de Nicole, e, sedento de prazer, levantou-se, encarou-me e dirigiu-se a mim, com o interesse dos loucos.

    - Opa! Olhe pra mim não! - pensei.

  Tentei correr daquela imagem monga, não de gorila, mas de demônio,  a se transformar na ira, na ameaça e no rosto da morte, mas os meus pés não me obedeciam. Eu corria sem sair do lugar, eu tentava me distanciar de João Bosta,  a monga, ou melhor, o demônio de chifres, com seus olhos vermelhos de sangue escorrendo por entre seus dentes e garras afiadas. João Bosta se aproximava de mim rapidamente,  com a faca manchada do sangue de Nicole, a ruminar seu mistério descoberto, e eu tentava correr, e corria sem sair do lugar, gritava sem a voz do socorro me ser fiel... ele de mim se aproximava rápido e raivoso, feroz, a dizer as contas de seu rosário, de seu prazer. Quantas contas ainda havia em seu mistério?

  Acordei com o coração tremendo, querendo sair pela boca a ruminar o meu desespero!

   - Ufa! Ainda bem que foi um pesadelo! - disse a mim mesmo ao lado de minha linda esposa, que dormia em paz, sem traumas, sem bullying, sem pesadelos, e sem o tormento das causas secretas. Que bom é dormir e sonhar  o sonho dos justos!

 

(Nailson Costa, em Contos em Dó Maior, p. 13, novembro, 2020)

 

 

 

3 comentários:

  1. Excelente, Mestre Nailson! 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾

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  2. Mestre, é um texto de quem sabe a cor da vida, a antropologia, a psiquiatria e outros mistérios da vida. Sua descrição nada discreta do âmago de alguns que conhecemos, nos brinda com um belo texto como é natural de sua escrita por linhas retas e finas.

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