quarta-feira, 25 de novembro de 2020

VIDA BOA ESCONDIDA - Heraldo Lins

 

 


VIDA BOA ESCONDIDA

 

 

 Conversei hoje com uma pedra. Na verdade não foi bem uma conversa. Foi uma entrevista que transcrevo aqui: bom dia, dona pedra! Ela respondeu: bom milênio. Esqueci que para aquele lajedo um dia nada significa. No início a nomeei de pedra, depois de lajedo... por isso perguntei seu sexo. Respondeu que era hermafrodita e que isso lhe trazia vantagens: não precisava ir à balada nem comprar roupa da moda. Ali mesmo engravidava e paria os pedregulhinhos sem muito esforço. Fazia isso há bilhões de anos. Seus filhotes nasciam do outro lado do planeta. Era fácil perceber quando em trabalho de parto porque no momento do nascimento havia terremoto e tsunami. Você é feliz? Ela respondeu que estava um pouco triste com os seres humanos. O motivo é que estão quebrando seus descendentes para fazer concreto. Isso não se faz. Mas aqui e acolá elas se vingam.  Deixam-se cair em cima de pessoas esmagando-as. E continuou: vocês são tão cruéis que encontraram uma forma de escravizar a pedra que dá origem ao ferro. Levam para o fogo e as transformam em triturador, caçambas e guindastes. Esses nossos parentes se voltam contra nós em forma de britadeira.  Ajudam à dinamite. É um inferno, disse ela. Vocês estão em perigo de extinção? Perguntei-lhe. Na verdade nós não nos preocupamos com isso. O homem jamais irá nos destruir totalmente. Depois do concreto nós ainda podemos nos transformar em areia grossa, depois em areia fina até chegarmos ao tão sonhado pó. Em tom de ameaça ela me disse: nossos irmãos meteoros estão observando a terra. Antes de vocês chegarem existiam uns fulaninhos chamados dinossauros que viviam nos atacando. Foi só um irmão nosso cair na terra para que todos fossem extintos. Vamos fazer o mesmo com vocês. Abram o olho. Eu nem sabia que vocês nutrem tanto ódio contra nós. Não dizem nada. Ficam caladas. Nós nunca ficamos caladas. Lembre-se da revolta que vocês chamaram tempestade de areia. Recentemente nossos antepassados saíram do deserto do Saara reivindicando mais respeito. Lá vocês conseguiram tirar toda a vegetação. Não temos nem sombra para uma soneca depois do século. Ficam nossos avós expostos a um sol escaldante e vocês na praia. Falar em praia peço que proíbam seus filhos de fazer castelo com nosso ancestrais. Estão indignados por servirem de brinquedo para suas crianças. E há as pediatras que dizem: deixem seus filhos brincarem na areia. Só assim pegam anticorpos. Saibam vocês que aqueles são nossos bisavós. Eu realmente pedi desculpas pelos maus-tratos e perguntei-lhe sobre o futuro. O que pensa uma pedra em termos científicos. Ela disse que já chegou ao topo da carreira. Não precisa de mais nada. Não consome alimentos, e consequentemente não defeca. Não sente dor, sono e nem vontade de enriquecer. Para dormir tem o cobertor da noite. Para acordar, o despertador do sol. Hidrata-se com a chuva e se refresca com o vento. Diverte-se com os pássaros e coça-se na vegetação. Assim é a vida de uma pedra. Saí dessa entrevista com uma inveja...pense! Acho que vou estudar para ser pedra.         

 

Autor: Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24/11/2020

 

Heraldo Lins é arte-educador

Zap:  84-99973-4114

Email: showdemamulengos@gmail.com

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