VIDA BOA
ESCONDIDA
Conversei hoje
com uma pedra. Na verdade não foi bem uma conversa. Foi uma entrevista que
transcrevo aqui: bom dia, dona pedra! Ela respondeu: bom milênio. Esqueci que
para aquele lajedo um dia nada significa. No início a nomeei de pedra, depois
de lajedo... por isso perguntei seu sexo. Respondeu que era hermafrodita e que
isso lhe trazia vantagens: não precisava ir à balada nem comprar roupa da moda.
Ali mesmo engravidava e paria os pedregulhinhos sem muito esforço. Fazia isso
há bilhões de anos. Seus filhotes nasciam do outro lado do planeta. Era fácil
perceber quando em trabalho de parto porque no momento do nascimento havia
terremoto e tsunami. Você é feliz? Ela respondeu que estava um pouco triste com
os seres humanos. O motivo é que estão quebrando seus descendentes para fazer
concreto. Isso não se faz. Mas aqui e acolá elas se vingam. Deixam-se cair em cima de pessoas
esmagando-as. E continuou: vocês são tão cruéis que encontraram uma forma de
escravizar a pedra que dá origem ao ferro. Levam para o fogo e as transformam
em triturador, caçambas e guindastes. Esses nossos parentes se voltam contra nós
em forma de britadeira. Ajudam à dinamite.
É um inferno, disse ela. Vocês estão em perigo de extinção? Perguntei-lhe. Na
verdade nós não nos preocupamos com isso. O homem jamais irá nos destruir
totalmente. Depois do concreto nós ainda podemos nos transformar em areia grossa,
depois em areia fina até chegarmos ao tão sonhado pó. Em tom de ameaça ela me
disse: nossos irmãos meteoros estão observando a terra. Antes de vocês chegarem
existiam uns fulaninhos chamados dinossauros que viviam nos atacando. Foi só um
irmão nosso cair na terra para que todos fossem extintos. Vamos fazer o mesmo
com vocês. Abram o olho. Eu nem sabia que vocês nutrem tanto ódio contra nós.
Não dizem nada. Ficam caladas. Nós nunca ficamos caladas. Lembre-se da revolta
que vocês chamaram tempestade de areia. Recentemente nossos antepassados saíram
do deserto do Saara reivindicando mais respeito. Lá vocês conseguiram tirar
toda a vegetação. Não temos nem sombra para uma soneca depois do século. Ficam
nossos avós expostos a um sol escaldante e vocês na praia. Falar em praia peço
que proíbam seus filhos de fazer castelo com nosso ancestrais. Estão indignados
por servirem de brinquedo para suas crianças. E há as pediatras que dizem:
deixem seus filhos brincarem na areia. Só assim pegam anticorpos. Saibam vocês
que aqueles são nossos bisavós. Eu realmente pedi desculpas pelos maus-tratos e
perguntei-lhe sobre o futuro. O que pensa uma pedra em termos científicos. Ela
disse que já chegou ao topo da carreira. Não precisa de mais nada. Não consome
alimentos, e consequentemente não defeca. Não sente dor, sono e nem vontade de
enriquecer. Para dormir tem o cobertor da noite. Para acordar, o despertador do
sol. Hidrata-se com a chuva e se refresca com o vento. Diverte-se com os
pássaros e coça-se na vegetação. Assim é a vida de uma pedra. Saí dessa
entrevista com uma inveja...pense! Acho que vou estudar para ser pedra.
Autor: Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 24/11/2020
Heraldo Lins é arte-educador
Zap: 84-99973-4114
Email: showdemamulengos@gmail.com
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