No dia dedicado aos cordelistas, (19 de novembro de 2020), alguém me mostrou o seguinte poema, da autoria de Leandro Gomes de Barros:
Se eu conversasse com Deus
Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer pra pagar?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?
Falamos da beleza e da profundidade das estrofes, mas comentamos sobre algumas falhas, imperdoáveis à luz das regras do cordel em seu estágio atual. O poema não é um cordel, devido a extensão, mas o fato dele ter se destacado como o maior cordelista, acaba influenciando o julgamento de tudo que ele escreveu.
Rima, métrica e oração são os 3 pilares que regem a produção de um bom cordelista. Quanto à oração, nada há a se ressaltar de negativo nesses versos. Mas ele "peca" na rima e na métrica, levando alguns a questionarem suas habilidades poéticas e importância.
Enquanto conversávamos, lembrei de outros erros cometidos por ele, por exemplo, em "História do boi misterioso": rima de "lobisomem" com "nome"; "Calixto", rimando com "bonito" etc.
E o amigo interrompeu meu fluxo de pensamentos chamando a atenção para o último verso da primeira estrofe: "Que a gente tem que morrer pra pagar?"
Um verso de pé-quebrado, sem dúvida, à luz das regras da UBT e da essência do cordel. Se no verso apontado temos sílabas demais, no anterior temos de menos: "Que dívida é essa". Rimar "perguntar" com "cá" é inaceitável para um cordelista.
E o amigo, que é xilógrafo e não cordelista, perguntou-me se teríamos como consertar esse verso com dez sílabas. Disse-lhe que sim e ele quis saber como ficaria.
Improvisei uma resposta para o que me pedia (apontei uma possível solução), mas disse-lhe que jamais ousaria mexer num poema do patrono do cordel. Acho positivo, disse-lhe, que tais poemas permaneçam como foram escritos a fim de fazer barreira ao excessivo zelo dos cordelistas que assumem ares farisaicos na defesa da métrica e da rima. Estes, como regra, produzem versos bem rimados e metrificados, mas pobres de sentido.
O problema dos dois últimos versos da primeira estrofe são fáceis de resolver, sem acréscimos de nossa parte. Bastaria deslocar parte do verso final para o penúltimo:
"Que dívida é essa que a gente
tem que morrer pra pagar?"
Não sabemos se essa falha na versificação foi cometida pelo autor ou por quem copiou seus versos.
O que importa mesmo em qualquer gênero poético é a oração. A produção de Leandro é de caráter "naif", reveladora de sua genialidade, bem como das deficiências de seu autodidatismo. Tem a sustentável e equilibrada leveza do ponto de transição entre a oralidade e a escrita. É bom ter em mente que Leandro era "humano, demasiado humano", como nós.
Antes que mal me entendam, sou adepto das ideias favoráveis ao gênero. Não se pode exigir de todos que versejem à maneira de Leandro, pois a produção cordelística de cada um refletirá sua formação diferenciada e personalidade. Nada contra os ideais de perfeição métrica e de rima consoante, a isso também persigo. Só não quero é uma poética vazia.
Viva Leandro Gomes de Barros! Viva a simplicidade do cordel!
Gilberto Cardoso dos Santos
Mestre em Literatura e Ensino, Membro da ANLiC (Academia Norte-rio-grandense de Literatura de Cordel), sócio e fundador da APOESC (Associação de Poetas e Escritores de Santa Cruz - RN), autor do livro Um Maço de Cordéis, Lições de Gente e de Bichos.
Escreveu com maturidade e sapiência.
ResponderExcluirMuito grato, poeta. - Gilberto Cardoso dos Santos
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