quinta-feira, 15 de outubro de 2020

OBVIAMENTE - crônica de Nailson Costa



OBVIAMENTE (por Nailson Costa) 


Tenho uma saudade crônica do Instituto Cônego Monte, o Ginásio Comercial da minha adolescência! Ouço, ainda hoje, aquele, só seu, "Cuma diche, Zé? ", do eterno Mons. Raimundo, pároco de imaculada biografia, conservador nos preceitos religiosos, pastor fiel de seu rebanho, homem sisudo, correto, pontual, preocupado com a boa formação educacional de seus pupilos, diretor e professor daquela conceituada Escola, nos idos das décadas de 1970/80/90, e esse seu 'Cuma diche, Zé?' era a senha, a hora boa para lhe formular perguntas, como a que lhe fiz, ao querer saber o sinônimo da palavra obviamente, tão usada por ele nas suas aulas de Religião:

- Obviamente que o Senhor vai procurá-lo no dicionário e amanhã vou estar à espera da sua bem elaborada resposta - sentenciou, do alto de sua sapiência, o Monsenhor.

Risadagem geral! Foi um balde de água fria! Não dormi! 5 da manhã, a aula de Educação Física, as 20 voltas no campinho, os 100 abdominais, os polichinelos, as flexões de braço, a tão aguardada pelada de futebol, o banho, o café da manhã, aquelas leituras aprazíveis e motivadoras de cada dia, a boa expectativa da rotina do the day after ficaram insípidas, só por causa da obrigação de levar ao Monsenhor, de forma clara, nítida e convincente, o sinônimo de obviamente. Eu tinha que fazer bonito! O Monsenhor era exigente demais pra só querer de mim o sinônimo daquela palavra, ele sempre exigia uma demonstração do aprendizado. Eu show, uma apresentação sem pecados, era o esperado, por isso, antes de encerrada a aula de Educação Física, saí, e adentrei a biblioteca da própria Escola, mesmo sob o protesto de Beja, o braço direito da confiança administrativo-disciplinar do Monsenhor, por eu estar suado, "fedendo a macaco", segundo ele.

Dicionários espalhados por sobre a mesa longa e sob os olhares curiosos de Beja, de Bené, de Seu Antônio, de alguns curiosos, torcida do Flamengo ... A essa altura dos acontecimentos, todos já me apelidavam de obviamente e queriam saber que mistério havia naquela palavra que até o Mons. Raimundo fingia não saber! Seria uma palavra proibida? Faltei com respeito ao pároco? Coleção Barsa (um pneu de trator), Aurélio, Houaiss e tantos outros mais compunham o rico acervo bibliográfico da Escola. 'Ahaaa, aí está! Finalmente a resposta! Vamos ver, vamos ver', explodia a minha ansiedade! 'Tá aqui", Obviamente: o mesmo que notoriamente, dizia o Aurélio. Correria às páginas à procura do N, de notoriamente. Lá estava: Notoriamente, o mesmo que obviamente, e foi assim daqui pra lá e de lá pra cá! Decepção total! Todos a sair de mansinho, cabisbaixos! Desisti de saber! De manhã ninguém soube, à tarde todos nada sabiam, ou não queriam me dizer. Tomei abuso daquela palavra! Jantei essa sopinha de letras e fonemas desagradáveis, e, em cada passada dada rumo à Escola, o obviamente não digerido fazia coro com o notoriamente na minha angústia.

Pontualmente às 18h, como exigia o Mons. Raimundo, eu estava lá, no portão da Escola, diante dele, de Beja e do sorriso malicioso de uma galerinha barra, meus amigos, todos a levantar a perna para provar, na entrada, o uso exigido das meias pretas a combinar com a calça cáqui, a camiseta branca e os sapatos impecavelmente pretos, inclusive eu, mesmo tendo fracassado na descoberta do famoso sinônimo daquela misteriosa palavra e de meu relatório-show. Passei duro! Ele nem se lembrou de mim! 'Poxa, escapei', pelo menos naquele instante, e pensei o impossível, faltar ao 5º horário, Religião, ministrada pelo rigoroso pároco.

Às 21h55 min, o vento fresco da noite trazia o cheiro delicioso da rolinha assando no Bar 27 e a música, Outra vez, de Roberto Carlos, contrastavam com o rigor confessional daquela conceituada Escola, onde os melhores saberes se somavam às energias reprimidamente acumuladas da adolescência jovial naquele espaço físico-temporal.

Os colegas já soletravam em paráfrase à música a palavra ob-vi-a- men-te, só de sacanagem, para o lembrete do mestre. E o 'apoiado', irônico, do padre me congelou, quando um gaiato lá do fundo da sala perguntou:

- Monsenhor, o Senhor não vai querer saber de Nailson o que é obviamente?

A sirena tocou naquele instante. Fui salvo pelo gongo, literalmente! Saí correndo e nem me dei ao prazer de meu chute diário na porta de aço da Telern naquela noite, praxe da 6ª série de 1976, um descarrego extremamente necessário para a nossa sanidade, nem muito menos me permiti às tradicionais voltas em torno dos olhares doces daquela praça romântica.

Eu queria me enterrar no esquecimento das acontecências daquele dia! Eu queria tapar os ouvidos para não mais ouvir aquela antipática palavra! Eu queria não ter existido naquele dia!

A saudade, às vezes, me obriga a olhar para trás, para ouvir, de novo, os fonemas de um passado bom, que ajudaram a construir os pilares de minha formação. O "Cuma diche, Zé?" está audível na minha mente. O Ginásio Comercial, com as suas cores, sua gente orgulhosa, suas regras, seus desfiles, suas vitórias e conquistas, também, simplesmente porque os sons perfeitos, mesmo pretéritos, se tatuam na alma da gente e ecoam com força por entre os cânions de nosso tempo, de forma notória e nítida, assim como as belas imagens, como a do belo Ginásio Comercial, se mostram, obviamente, muito claras e óbvias nas minhas melhores lembranças!




8 comentários:

  1. Uma crônica muito bela, muito rica em seus detalhes. Nota dez para o cronista. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Uma original e nostálgica narrativa autobiográfica.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Obviamente que esta crônica está eivada de saudades e sutilezas. Notoriamente um belo escrito do Professor Nailson Costa. Parabéns.

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  5. Amigo Nailson, os fatos trazidos por sua crônica nos proporcionou uma bela viagem regressiva nesse DIA DO PROFESSOR.

    Obviamente, o legado do "Professor Monsenhor Raimundo", e Professores do Comercial, posteriormente Instituto, foi marcante para muitas gerações.

    Parabéns pelo sempre refinado texto!

    Roberto Flávio.

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  6. Meu caro mestre, Nailson. Obviamente que nosso vigário leu sua bela narrativa sobre o óbvio que naquele dia não veio. É tenho certeza, ele esta muito orgulhoso da sua obviedade num texto sem reparos- como sempre - sobre uma palavra tão óbvia como ela mesma se apresenta. Tanto é assim que tem apenas um sinônimo. Nosso vigário está lá em cima não perguntando mas dizendo: "diche bem, Ze".

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  7. Quanta destreza,elegância e tudo mais.Pena que o texto acabou. Obviamente que só consigo rabiscos, mas bateu a inspiração.(Maciel)

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