Tenho uma saudade crônica do Instituto
Cônego Monte, o Ginásio Comercial da minha adolescência! Ouço, ainda hoje,
aquele, só seu, "Cuma diche, Zé? ", do eterno Mons. Raimundo, pároco
de imaculada biografia, conservador nos preceitos religiosos, pastor fiel de
seu rebanho, homem sisudo, correto, pontual, preocupado com a boa formação
educacional de seus pupilos, diretor e professor daquela conceituada Escola,
nos idos das décadas de 1970/80/90, e esse seu 'Cuma diche, Zé?' era a senha, a
hora boa para lhe formular perguntas, como a que lhe fiz, ao querer saber o
sinônimo da palavra obviamente, tão usada por ele nas suas aulas de Religião:
- Obviamente que o Senhor vai
procurá-lo no dicionário e amanhã vou estar à espera da sua bem elaborada
resposta - sentenciou, do alto de sua sapiência, o Monsenhor.
Risadagem geral! Foi um balde de
água fria! Não dormi! 5 da manhã, a aula de Educação Física, as 20 voltas no
campinho, os 100 abdominais, os polichinelos, as flexões de braço, a tão
aguardada pelada de futebol, o banho, o café da manhã, aquelas leituras
aprazíveis e motivadoras de cada dia, a boa expectativa da rotina do the day
after ficaram insípidas, só por causa da obrigação de levar ao Monsenhor, de
forma clara, nítida e convincente, o sinônimo de obviamente. Eu tinha que fazer
bonito! O Monsenhor era exigente demais pra só querer de mim o sinônimo daquela
palavra, ele sempre exigia uma demonstração do aprendizado. Eu show, uma
apresentação sem pecados, era o esperado, por isso, antes de encerrada a aula
de Educação Física, saí, e adentrei a biblioteca da própria Escola, mesmo sob o
protesto de Beja, o braço direito da confiança administrativo-disciplinar do
Monsenhor, por eu estar suado, "fedendo a macaco", segundo ele.
Dicionários espalhados por sobre
a mesa longa e sob os olhares curiosos de Beja, de Bené, de Seu Antônio, de
alguns curiosos, torcida do Flamengo ... A essa altura dos acontecimentos,
todos já me apelidavam de obviamente e queriam saber que mistério havia naquela
palavra que até o Mons. Raimundo fingia não saber! Seria uma palavra proibida?
Faltei com respeito ao pároco? Coleção Barsa (um pneu de trator), Aurélio,
Houaiss e tantos outros mais compunham o rico acervo bibliográfico da Escola.
'Ahaaa, aí está! Finalmente a resposta! Vamos ver, vamos ver', explodia a minha
ansiedade! 'Tá aqui", Obviamente: o mesmo que notoriamente, dizia o
Aurélio. Correria às páginas à procura do N, de notoriamente. Lá estava:
Notoriamente, o mesmo que obviamente, e foi assim daqui pra lá e de lá pra cá!
Decepção total! Todos a sair de mansinho, cabisbaixos! Desisti de saber! De
manhã ninguém soube, à tarde todos nada sabiam, ou não queriam me dizer. Tomei
abuso daquela palavra! Jantei essa sopinha de letras e fonemas desagradáveis,
e, em cada passada dada rumo à Escola, o obviamente não digerido fazia coro com
o notoriamente na minha angústia.
Pontualmente às 18h, como exigia
o Mons. Raimundo, eu estava lá, no portão da Escola, diante dele, de Beja e do
sorriso malicioso de uma galerinha barra, meus amigos, todos a levantar a perna
para provar, na entrada, o uso exigido das meias pretas a combinar com a calça
cáqui, a camiseta branca e os sapatos impecavelmente pretos, inclusive eu,
mesmo tendo fracassado na descoberta do famoso sinônimo daquela misteriosa
palavra e de meu relatório-show. Passei duro! Ele nem se lembrou de mim! 'Poxa,
escapei', pelo menos naquele instante, e pensei o impossível, faltar ao 5º
horário, Religião, ministrada pelo rigoroso pároco.
Às 21h55 min, o vento fresco da
noite trazia o cheiro delicioso da rolinha assando no Bar 27 e a música, Outra
vez, de Roberto Carlos, contrastavam com o rigor confessional daquela
conceituada Escola, onde os melhores saberes se somavam às energias
reprimidamente acumuladas da adolescência jovial naquele espaço
físico-temporal.
Os colegas já soletravam em
paráfrase à música a palavra ob-vi-a- men-te, só de sacanagem, para o lembrete
do mestre. E o 'apoiado', irônico, do padre me congelou, quando um gaiato lá do
fundo da sala perguntou:
- Monsenhor, o Senhor não vai
querer saber de Nailson o que é obviamente?
A sirena tocou naquele instante.
Fui salvo pelo gongo, literalmente! Saí correndo e nem me dei ao prazer de meu
chute diário na porta de aço da Telern naquela noite, praxe da 6ª série de
1976, um descarrego extremamente necessário para a nossa sanidade, nem muito
menos me permiti às tradicionais voltas em torno dos olhares doces daquela
praça romântica.
Eu queria me enterrar no
esquecimento das acontecências daquele dia! Eu queria tapar os ouvidos para não
mais ouvir aquela antipática palavra! Eu queria não ter existido naquele dia!
A saudade, às vezes, me obriga a
olhar para trás, para ouvir, de novo, os fonemas de um passado bom, que
ajudaram a construir os pilares de minha formação. O "Cuma diche,
Zé?" está audível na minha mente. O Ginásio Comercial, com as suas cores,
sua gente orgulhosa, suas regras, seus desfiles, suas vitórias e conquistas,
também, simplesmente porque os sons perfeitos, mesmo pretéritos, se tatuam na
alma da gente e ecoam com força por entre os cânions de nosso tempo, de forma
notória e nítida, assim como as belas imagens, como a do belo Ginásio
Comercial, se mostram, obviamente, muito claras e óbvias nas minhas melhores
lembranças!
Uma crônica muito bela, muito rica em seus detalhes. Nota dez para o cronista. - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirObg, Mestre Gil!
ExcluirUma original e nostálgica narrativa autobiográfica.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObviamente que esta crônica está eivada de saudades e sutilezas. Notoriamente um belo escrito do Professor Nailson Costa. Parabéns.
ResponderExcluirAmigo Nailson, os fatos trazidos por sua crônica nos proporcionou uma bela viagem regressiva nesse DIA DO PROFESSOR.
ResponderExcluirObviamente, o legado do "Professor Monsenhor Raimundo", e Professores do Comercial, posteriormente Instituto, foi marcante para muitas gerações.
Parabéns pelo sempre refinado texto!
Roberto Flávio.
Meu caro mestre, Nailson. Obviamente que nosso vigário leu sua bela narrativa sobre o óbvio que naquele dia não veio. É tenho certeza, ele esta muito orgulhoso da sua obviedade num texto sem reparos- como sempre - sobre uma palavra tão óbvia como ela mesma se apresenta. Tanto é assim que tem apenas um sinônimo. Nosso vigário está lá em cima não perguntando mas dizendo: "diche bem, Ze".
ResponderExcluirQuanta destreza,elegância e tudo mais.Pena que o texto acabou. Obviamente que só consigo rabiscos, mas bateu a inspiração.(Maciel)
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